Fanfic: A Escrava Isaura
Capitulo 3
Falta‑nos
ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de
Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte
anos, frívolo, estouvado
e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens,
mormente
quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai
rico. Não
obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e
bastante dignidade e
nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como
estava‑se em
férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e
passar alguns dias em sua
fazenda.
Os
dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a
véspera linha ido ao encontro do cunhado.
Só
depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves
estadas fizera na casa paterna, começou a prestar
atenção à extrema
beleza e às graças incomparáveis de Isaura. Posto que
lhe coubesse em
sorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia
casado por amor,
sentimento esse a que seu coração até ali parecia
absolutamente
estranho. Casara‑se por especulação, e como sua mulher
era moça e bonita,
sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos
prazeres
sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à
infeliz Isaura fazer
vibrar profunda e violentamente naquele coração as
fibras que
ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da
devassidão.
Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de
dia em dia ia
crescendo na razão direta dos sérios e poderosos
obstáculos que
encontrava,
obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava
para superar. Mas nem por isso desistia de sua
tresloucada empresa, porque em
fim de contas, - pensava ele, - Isaura era propriedade
sua, e quando
nenhum outro meio fosse eficaz, restava‑lhe o emprego
da violência.
Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus
instintos e da brutal
devassidão do comendador.
Pelo
caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem
de Isaura, Leôncio conversara longamente com seu
cunhado a respeito
dela, exaltando‑lhe a beleza, e deixando transluzir
com revoltante cinismo
as lascivas intenções que abrigava no coração. Esta
conversação
não agradava muito a Henrique, que às vezes corava de
pejo e de
indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar‑lhe
viva curiosidade
de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.
No
dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da
manhã, Isaura, que acabava de espanejar os móveis e
arranjar o salão,
achava‑se sentada junto a uma janela e entrelinha‑se a
bordar, à espera
que seus senhores se levantassem para servir‑lhes o
café. Leôncio e
Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta
do salão
puseram‑se a contemplar Isaura, que sem se aperceber
da presença
deles continuava a bordar distraidamente.
-
Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. -
Uma escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável?
Quem não
diria que uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?...
-
Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique
maravilhado; é uma perfeita brasileira.
-
Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos
e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre,
teriam feito virar o
juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende com
instância, que eu a
liberte, alegando que essa era a vontade de minha
defunta mãe; mas
nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem
menos de
uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de
criá‑la com
todo o mimo e de dar‑lhe uma primorosa educação, não
foi decerto
para abandoná‑la ao mundo, não achas?... Também meu
pai parece
que cedeu às instâncias do pai dela, que é um pobre
galego, que por ai
anda, e que pretende libertá‑la; mas o velho pede por
ela tão
exorbitante soma, que julgo nada dever recear por esse
lado. Vê lá,
Henrique, se há nada que pague uma escrava assim?...
-
É com efeito encantadora - replicou o moço, - se estivesse
no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita.
Mas devo notar‑te,
Leôncio, - continuou, cravando no cunhado um olhar
cheio de
maliciosa penetração, - como teu amigo e como irmão de
tua mulher,
que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma
escrava tão
linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente
e talvez
perigoso para a tranqüilidade doméstica...
-
Bravo! - atalhou Leôncio, galhofando, - para a idade que
tens, já estás um moralista de polpa!... mas não te dê
isso cuidado, meu
menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela
mesma quem mais
gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E
tem razão; Isaura
é como um traste de luxo, que deve estar sempre
exposto no salão.
Querias que eu mandasse para a cozinha os meus
espelhos de Veneza?...
Malvina,
que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre
como uma manhã de abril, veio interromper‑lhes a
conversação.
-
Bom dia, senhores preguiçosos! - disse ela com voz argentina
e festiva como o trino da andorinha. - Até que enfim
sempre se levantaram!
-
Estás hoje muito alegre, minha querida, - retorquiu‑lhe sor‑
rindo o marido; - viste algum passarinho verde de bico
dourado?...
-
Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje
aqui em casa seja um dia de festa para todos. Isto
depende de ti, Leôncio,
e estava aflita por te ver de pé; quero dizer‑te uma
coisa; já devia
tê‑la dito ontem, mas o prazer de ver este ingrato de
irmão, que há
tanto tempo não vejo, me fez esquecer...
-
Mas o que é?... fala, Malvina.
-
Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes,
promessa sagrada, que há muito tempo devia ter sido
cumprida?... hoje
quero absolutamente, exijo, o seu cumprimento.
-
Deveras?.., mas que promessa?... não me lembro.
-
Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me
prometeste dar liberdade a...
-
Ah! já sei, já sei; - atalhou Leôncio com impaciência. - Mas
tratar disso aqui agora? em presença dela?... que
necessidade há
de que nos ouça?
-
E que mal faz isso? mas seja como quiseres, - replicou a moça
tomando a mão de Leôncio e levando‑o para o interior
da casa; -
vamos cá para dentro. Henrique, espera aí um momento,
enquanto eu
vou mandar preparar‑nos o café.
Só
depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos
dois mancebos, que a certa distância a contemplavam
cochichando a
respeito dela. Também pouco ouviu ela e nada
compreendeu do rápido
diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu marido.
Apenas estes se
retiraram ela também se levantou e ia sair, mas
Henrique, que ficara só,
a deteve com um gesto.
-
Que me quer, senhor? - disse ela baixando os olhos com humildade.
-
Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer‑te, - replicou o
moço, e sem dizer mais nada colocou‑se diante dela
devorando‑a com
os olhos, e como extático contemplando‑lhe a
maravilhosa beleza.
Henrique sentia‑se acanhado diante daquela nobre
figura radiante de beleza,
e de angélica serenidade. Por seu lado Isaura também
olhava para o
moço, atônita e tolhida, esperando em vão que lhe
dissesse o que
queria. Por fim Henrique, afoito, e estouvado como
era, lembrando‑se que
Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não
passava de uma
escrava, entendeu que fazia um ridículo papel,
deixando‑se ali ficar diante
dela em muda e extática contemplação, e chegando‑se a
ela com todo
o desembaraço e petulância travou‑lhe da mão, e...
-
Mulatinha, disse, - tu não fazes idéia de quanto és feiticeira.
Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão
linda não seja
mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre,
serias incontestavelmente
a rainha dos salões.
-
Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando‑se da mão
de Henrique; se é só isso o que tinha a dizer‑me,
deixe‑me ir embora.
-
Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero
fazer mal algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua
liberdade, se
com ela pudesse obter também o teu amor!... És muito
mimosa e muito
linda para ficares por muito tempo no cativeiro;
alguém impreterivelmente
virá arrancar‑te dele, e se hás de cair nas mãos de
algum desconhecido,
que não saberá dar‑te o devido apreço, seja eu, minha
Isaura, seja o irmão
de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma
princesa...
-
Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; - o
senhor não se peja de dirigir esses galanteios a uma
escrava de sua
irmã? isso não lhe fica bem; há por aí tanta moça
bonita, a quem o
senhor pode fazer a corte...
-
Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro.
Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas
circunstâncias de
conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar
Leôncio a te libertar,
porque, se me não engano, já lhe adivinhei os planos e
as intenções, e
protesto‑te que hei de burlá‑los todos; é uma infâmia
em que não posso
consentir. Além da liberdade terás tudo o que
desejares, sedas, jóias,
carros, escravos para te servirem, e acharás em mim um
amante
extremoso, que sempre te há de querer, e nunca te
trocará por quanta
moça há por esse mundo, por bonita e rica que seja,
porque tu só
vales mais que todas elas juntas.
-
Meu Deus! - exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; -
tanta grandeza me aterra; isso faria virar‑me o juízo.
Nada, meu senhor;
guarde suas grandezas para quem melhor as merecer; eu
por ora estou
contente com a minha sorte.
-
Isaura!... para que tanta crueldade!... escuta, - disse o moço
lançando o braço ao pescoço de Isaura.
-
Senhor Henrique! - gritou ela esquivando‑se ao abraço, -
por quem é, deixe‑me em paz!
-
Por piedade, Isaura! - insistiu o rapaz continuando a querer
abraçá‑la; - oh!... não fales tão alto!... um beijo...
um beijo só, e já te
deixo...
-
Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar
um momento, que não me venham perturbar com
declarações que
não devo escutar...
-
Oh! como está altaneira! - exclamou Henrique, já um tanto
agastado com tanta resistência. - Não lhe falta
nada!... tem até os ares
desdenhosos de uma grande senhora!... não te arrufes
assim, minha
princesa...
-
Arre lá, senhor! - bradou a escrava já no auge da impaciência.
- Já não bastava o senhor Leôncio!... agora vem o
senhor também...
-
Como?... que estás dizendo?... também Leôncio?... oh!... oh!
bem o coração me estava adivinhando!... que
infâmia!... mas decerto tu
o escutas com menos impaciência, não é assim?
-
Tanto como escuto ao senhor.
-
Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que
tanto te estima, não te permite que dês ouvidos àquele
perverso. Mas
comigo o caso é diferente; que motivo há para seres
cruel assim?
-
Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de
Deus!... Não esteja assim a escarnecer de uma pobre
cativa.
-
Não! não escarneço... Isaura!... escuta, - exclamava Henrique
forcejando para abraçá‑la e furtar‑lhe um beijo.
-
Bravo!... bravíssimo! - retumbou pelo salão uma voz acompanhada
de sardônica e estrepitosa gargalhada.
Henrique
voltou‑se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação
tinha‑se‑lhe gelado de súbito no âmago do coração.
Leôncio
estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e
olhando para ele com sorriso do mais insultante
escárnio.
-
Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! - continuou Leôncio
no mesmo tom de mofa. - Está pondo em prática
belissimamente as
suas lições de moral!... requestando‑me as
escravas!... está galante!...
sabe respeitar divinamente a casa de sua irmã!...
-
Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os
dentes de cólera, e seu primeiro impulso foi investir
de punho fechado, e
responder com cachações aos insolentes sarcasmos do
cunhado.
Refletindo porém um momento, sentiu que lhe seria mais
vantajoso
empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se
servira contra ele, o
sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar
de modo vitorioso
e decisivo. Acalmou‑se, pois, e com sorriso de
soberano desdém:
-
Ah! perdão, meu cunhado! - disse ele não sabia que a
peregrina jóia do seu salão lhe merecesse tanto
cuidado, que o levasse
a ponto de andá‑la espionando; creio que tem mais zelo
por ela do que
mesmo pelo respeito que se deve à sua casa e à sua
mulher. Pobre de
minha irmã!... é bem simples, e admira que, há mais
tempo, não tenha
conhecido o belo marido que possui!...
-
O que estás dizendo, rapaz? - bradou Leôncio com gesto
ameaçador; - repete; que estás dizendo?
-
O mesmo que o senhor acaba de ouvir, - redargüiu Henrique
com firmeza, - e fique certo que o seu indigno
procedimento não há
de ficar por muito tempo oculto à minha irmã.
-
Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?...
-
Faça‑se de esquerdo!... pensa que não sei tudo?... enfim.
adeus, senhor Leôncio: eu me retiro, porque seria
altamente
inconveniente, indigno e ridículo da minha parte estar
a disputar com
o senhor por amor de uma escrava.
-
Espera, Henrique... escuta...
-
Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor. Adeus! -
disse e retirou‑se precipitadamente.
Leôncio
sentiu‑se esmagado, e arrependeu‑se mil e uma vezes de
ter provocado tão imprudentemente aquele leviano e
estouvado rapaz.
Ignorava que seu cunhado estivesse ao fato da paixão
que sentia por
Isaura, e dos esforços que empregava para vencer‑lhe a
isenção e lograr
seus favores. verdade que lhe havia falado sem muito
rebuço a esse
respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em
tom de mera
chocarrice, não constituíam base suficiente para que
sobre ela Henrique
pudesse articular uma acusação contra ele em face de
sua mulher.
Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e
isto o fazia espumar
de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe
importava a
perturbação da paz doméstica, o que o enfurecia era o
perigo em que
se colocara de ver desconcertados os seus perversos
desígnios sobre a
gentil escrava.
-
Maldição! - rugia ele lá consigo. - Aquele maluco é bem ca‑
paz de desconcertar todos os meus planos. Se sabe
alguma coisa, como
parece, não porá dúvida em levar tudo aos ouvidos de
Malvina...
Leôncio
ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio,
carrancudo, com o espírito entregue à cruel
inquietação que o fustigava.
Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os
olhos em Isaura, a
qual, desde que Leôncio se apresentara, corrida,
trêmula e anelante,
fora sumir‑se em um canto da sala; dali presenciara em
silenciosa ansiedade
a altercação dos dois moços, como corça mal ferida
escutando o
rugir de dois tigres, que disputaram entre si o
direito de devorá‑la. Por
seu lado também se arrependia do intimo d`alma, e
raivava contra si
mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um
assomo de
impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua
imprudência ia ser
causa da mais deplorável discórdia no seio daquela
família, discórdia,
de que por fim de contas ela viria a ser a principal
vítima. A desavença
entre os dois mancebos era como o choque de duas
nuvens, que se encontram
e continuam a pairar tranqüilamente no céu; mas o raio
desprendido de
seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da
infeliz cativa.
Autor(a): remakes
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Capítulo 4 - Ah! estás ainda ai?... fizeste bem, - disse Leôncio mal avistou Isaura, que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que se abrigara, e onde fazia mil votos ao céu para que seu senhor não a visse, nem se lembrasse d ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 2
Para comentar, você deve estar logado no site.
-
lauren Postado em 13/03/2011 - 19:32:07
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saulo Postado em 13/03/2011 - 19:05:13
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