Fanfic: Alem da Sedução (terminada)
Londres: 31 de dezembro, 1875
Poncho Herrera, artista célebre e libertino
infame, estava afundado na poltrona de couro como se não tivesse a intenção de
levantar-se jamais. Usava um robe marrom de seda atado firmemente em torno de
sua cintura magra e firme. Por debaixo, estava nu. Para dar-se um pouco de
calor, tinha uma pequena taça de conhaque quase cheia apoiada contra o peito.
Atrás do ferro sobre o qual descansava os pés embainhados em sapatilhas, ardia
um fogo alimentado por carvão. O fulgor constante iluminava uns traços vivos e
taciturnos. Seus olhos eram cor fumaça, sua mandíbula afiada como o aço. Um
pianista não teria desprezado suas mãos. Sua voz era outra coisa. Em contraste
com aquela elegância esbelta e escura, era rouca, como se tivesse passado a
vida gritando nos cais.
Aquela impressão era errônea. Poncho Herrera mal
tinha que murmurar para atrair a atenção. Havia quem declarasse que era um
gênio da pintura, superior a Leighton ou a Alma-Tadema, embora nenhuma dessas
luminárias teria cedido seu lugar voluntariamente. Em qualquer caso, quando Poncho
falava, as pessoas escutavam, fosse por respeito a seu talento ou porque temiam
sua mordaz imaginação que nunca media. Ele só desejava que o deixassem em paz
quando estava cansado.
Como essa noite.
Tinha acabado seu último trabalho. O broto de
frenética atividade, de momentos de excitação e frustração, de noites em claro
com os pincéis entre os dentes e dedos manchados de tinta os quais depois
arrancava o pêlo, tudo isso tinha acabado como se tivesse segurado o badalo de
um enorme sino de bronze. Sentia vibrar o corpo com os efeitos do cansaço,
vazio e extenuado. Mas agora descansaria. Tinha acabado o retrato. Monmouth
tinha vindo buscá-lo aquela manhã e se declarou satisfeito, embora Poncho
duvidasse que o duque visse mais que uma ínfima parte do que aquele quadro
expressava.
Tinha sabido captar a alma daquele homem.
Diabos tinha sabido captar a alma da metade dos
nobres ingleses, tinha visto seu desconcerto com as mudanças de tempos, sua
ostentação e sua indolência, sua sincera convicção de que os ingleses eram
capazes de salvar o mundo... Sempre e quando o mundo queria ser salvo como eles
propunham.
A boca se torceu em uma careta irônica de
desprezo de si mesmo. Não tinha sentido olhá-los por cima do ombro. Pouco
importava como vivesse Poncho, porque seu sangue continuava sendo tão azul como
o deles.
Tampouco se tratava de esgrimir aquilo como causa
de seus pecados.
Virou-se para olhar pela janela, para a verde
espessura que ocultava sua acolhedora casa no bosque do St. John`s. Uma névoa
invernal, grossa como a pelagem de um gato, deslocou-se de Londres para engolir
a guarida do artista, situada mais ao norte. Poncho mal distinguia os arbustos
que cresciam do outro lado da janela, que ficavam totalmente obscurecidos pela
névoa cinzenta. A mescla de chocolate e prata era extraordinária, suave como o
veludo. Se Poncho não sentisse tanta preguiça, teria procurado seus bolos. Que
algo tão feio pudesse ser tão belo despertava nele um sentido do maravilhoso.
Contemplava seriamente a possibilidade de levantar-se
quando uma batida na porta da biblioteca economizou o esforço. Respondendo a
seu grunhido, entrou Farnham, o mordomo, com uma bandeja de comida e café. Como
de costume, Poncho tinha dado o dia livre aos criados em meio da baixa maré
emocional que padecia depois de seus arranques criativos com a pintura. Ao
declarar-se aquela maré baixa durante as festas, Poncho era um homem popular.
Com ou sem festas, como era habitual, Farnham não tinha abandonado suas funções
Aquele homem já velho tinha sido sargento na
guerra da Criméia. Seu sentimento do dever era mais forte que o de outros
criados, mais forte, de fato, que o de seu amo.
-Seu jantar, senhor - anunciou, tal como Poncho o
tinha ordenado. Tirou a garrafa de conhaque para deixar a comida na pequena
mesa junto a Alfonso, e esperou. Poncho sabia que o mordomo não iria até que o
visse comer.
Agarrou o enorme sanduiche de rosbife e pepinos
japoneses e deu uma dentada.
- Já está - disse-. Satisfeito?
Sem fazer comentários, Farnham serviu café quente
em uma xícara e a deixou sobre o prato. Só o aroma foi suficiente para limpar a
cabeça de Poncho, ao menos até que Farnham deslizou um envelope branco e
volumoso entre os pratos.
- Quererá olhar seu correio, senhor.
Por toda resposta, Poncho soltou um grunhido
enquanto mastigava o saboroso pão com carne. Farnham sabia tão bem quanto ele
que aquilo era uma vulgar mentira. Essa carta em concreto o tinha açoitado pela
casa toda a semana, aparecia junto a seu prato no café da manhã, ou aparecia do
bolso de sua jaqueta. Poncho o tinha ignorado com uma tenacidade forjada por
anos de prática. Por desgraça, diferentemente de Poncho, Farnham não acreditava
em deixar para amanhã aquilo que um não se atrevia a enfrentar hoje.
Com uma careta de desagrado, Poncho deixou o café
e segurou o envelope. Tinha passado uma semana. Tinha acabado seu trabalho, seu
espírito estava tudo quão sereno podia estar. Sem dúvida, estava preparado para
abrir o maldito envelope agora. Afinal, o que podia temer? O conteúdo das cartas
de sua mãe era sempre o mesmo.
- Então o deixarei em suas mãos - disse Farnham,
quando viu que Poncho introduzia o polegar na dobra do envelope.
A carta era o que esperava. Umas breves frases
com desejos de bem-estar para Poncho, omitindo, certamente, qualquer menção ao
seu trabalho, para logo proceder a um resumo das inumeráveis tarefas que tinha
empreendido desde seu último relatório. Os rebanhos de ovelhas, os campos, a
drenagem dos canais de irrigação da aldeia, de tudo se ocupou sua mãe com a
eficiência que a caracterizava.
Era a pessoa mais forte e a melhor administradora
que Poncho conhecia e, entretanto, atrás de cada demonstração de sua
competência havia uma acusação não dita. São responsabilidades suas Alfonso.
Suas. A verdade era que ela se sentia ofendida até com a menor interferência,
mas de qualquer maneira seguia comportando-se como se a incapacidade de Poncho
para agir com brio fosse uma afronta para ela. «Além disso», continuava, «o
menino necessita a influência estável de um homem. Tem quase quinze anos e já
não posso orientá-lo como se deve. »
Orientá-lo. Poncho lançou um bufo. Parecia-se
mais a lhe pôr regras. Leu entre linhas até o final, enrugou a folha e a lançou
ao fogo. Ficava uma nota pequena que tinha sido introduzida dentro da primeira.
Poncho a abriu. Contra sua vontade, o coração
começou a pulsar com força no peito. A nota era do menino, com as notícias
habituais sobre seu progresso na escola postas ao dia. O tom era formal. O
menino sempre o chamava «senhor». Nunca se aventurava a algo mais que o
impessoal, nem formulava perguntas que, conforme tinha aprendido, não obteriam
resposta. A diferença da marquesa viúva, o menino era muito perspicaz para
perguntar quando o visitaria Alfonso. Este o tinha visto só duas vezes em sua
vida. A primeira, pouco depois de nascer, e a segunda, aos quatro anos. Naquela
ocasião, sua semelhança com Bess provocou em Poncho uma dor muito intensa para
repetir a experiência.
Era preferível deixar que algumas lembranças
mentissem.
Percorreu com o dedo os enérgicos cachos de
cabelo que desenhava a tinta. Apesar daquela linguagem rígida, Poncho teve a
sensação que era capaz de ler o caráter do menino em sua caligrafia. Agudo.
Impaciente. Fiel aos seus amigos. Mais aficionado ao esporte que à escola mas,
aparentemente, por um comentário que deslizava, um admirador em amadurecimento
de Trollope.
A idéia o fez sorrir. Com um movimento impulsivo
muito diferente da frouxidão em que estava perdido, abriu a gaveta da mesa
junto a ele. Tal como esperava, Farnham tinha se ocupado de manter uma provisão
de papel e tinta. Utilizando o braço da cadeira como apoio, rabiscou uma
resposta.
Querido Christopher,
Estou bem, embora ocupado com o trabalho. Se
necessitar algo que prefere não pedir à marquesa, tome a liberdade de escrever
a meu administrador.
Mordeu o extremo da pluma e voltou a ler o
escrito. Seu olhar se desviou até a estante mais próxima. Sentiu um leve bater
de asas de satisfação que desentorpeceu o peito. Sim, tinha um exemplar encadernado
em couro do diamante de Eustaquio. As páginas, que brilhavam com suas bordas de
ouro, ainda não tinham sido manuseadas. Certamente, era possível que o menino
tivesse lido a novela, mas não em um exemplar tão belo. Levantou-se, tirou o
primeiro volume e o abriu a página de rosto. Ainda sustentava a pluma na mão.
Deveria escrever algo, não? De outra maneira, o presente pareceria muito frio.
Refletiu um momento.
«Pensei que você gostaria disto», escreveu, e
depois vacilou no momento de assinar. «Seu pai» certamente agradaria ao menino,
mas Poncho não estava seguro de poder arrancar esse apelativo à pluma. Supôs
que podia assinar « Northwick", mas isso também parecia insofrível. Ao final,
simplesmente escreveu: «Alfonso» e, por via de dúvidas, adicionou uma nota de
vinte libras. Não se podia dizer que era uma nota quente. Mas ele não desejava
de maneira nenhuma prometer o que não podia dar.
Autor(a): annytha
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 416
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elizacwb Postado em 21/12/2012 - 15:31:40
amei o final dessa web, amei, que lindos...envolvente, excitante, emocionante, aiai muito boa mesmo
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biacasablancasdeppemidio Postado em 20/12/2012 - 00:55:16
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jl Postado em 20/01/2012 - 16:31:52
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jl Postado em 20/01/2012 - 16:31:51
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jl Postado em 20/01/2012 - 16:31:50
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jl Postado em 20/01/2012 - 16:31:50
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