Fanfic: LIÇÃO DE VIDA AYA finalizada

O que não adiantou muito, porque Grace a ignorou e seguiu em frente:

— Prazer em conhecê-la, Anahí. — Inclinou-se um pouco mais para perto de sua atual vizinha, sussurrando: — Eu ouvi quando a enfermeira falou seu nome. É lindo, por sinal.

Anahí  teria virado para o outro lado e dado as costas para Grace, se tivesse energia suficiente para tanto, ou se achasse que aquele movimento poderia empurrar aquele monstruoso aparelho de cima de seu tórax. Como nada disso era possível, permaneceu calada.

— E duro estar num hospital nesta época do ano.

— Ahã... — Foi tudo que Anahí murmurou, embora soubesse muito bem o que Grace estava querendo dizer.

Era véspera de Natal, e a senhora idosa se encontrava sozinha, na certa desejando poder estar rodeada por sua adorável família. Dez filhos e vinte netos, no mínimo, Anahí imaginou, fechando os olhos por um momento.

— Sabe Anahí, amanhã será meu aniversário.

Ouvir aquilo fez Anahí erguer as pálpebras e notar o brilho cintilante nas pupilas de Grace.

— Feliz aniversário — falou, por educação.

Grace ficou em silêncio por um abençoado momento, antes de começar a tagarelar de novo:

— Você tem família? — perguntou, com delicadeza.

— Claro. Minha filha vende o corpo para poder sustentar seu vício em heroína, meu filho mais velho está numa cadeira de rodas por causa de um acidente de carro caracterizado como tentativa de homicídio e meu caçula foi parar em algum lugar do Centro-Oeste, sem que eu tenha notícias dele.

Pronto. Aquela descrição horrorosa e verdadeira deveria fazer com que Grace parasse de falar e lhe desse o sossego de que tanto necessitava. Afinal de contas, a mulher devia levar uma vida nor­mal e feliz, dentro das regras estritas da sociedade, e ficaria muito chocada com tanta desgraça junta.

— Oh, pobre Anahí... — balbuciou Grace num tom de tristeza tão sincero que quase fez Anahí se sentir culpada e se arrepender por ter trazido à tona sua existência patética. — Lamento muito, minha querida. Peço perdão por não ter sido sensível o bastante perguntando-lhe isso, mas é que gosto de comentar a respeito da família das outras pessoas, porque as minhas próprias lembranças são muito preciosas.

Eu entendo — disse Anahí, com frieza lógico que as recordações de Grace eram preciosas. Anhaí já sabia disso antes de ela ter anunciado.

— Afinal, nem todos nós temos vidas perfeitas, não é mesmo?

Mas a vida de Anahí já fora perfeita uma vez. Tinha sido ma­ravilhosa, cheia de risadas e de reuniões familiares, assim como de natais de que ainda poderia se recordar se estivesse sóbria o suficiente... Ou embriagada o bastante.

Ah, os natais! Anahí experimentou um forte sentimento de nos­talgia. Eles, antes que tudo tivesse caído num buraco negro, num abismo profundo e absoluto, costumavam ser datas encantadas, tão especiais que uma pessoa guardaria na memória para sempre.

Todavia, era melhor deixar de lado esse sonho melancólico.

— A minha tem estado muito longe de ser perfeita, ultimamen­te. Mas não vou reclamar. — Grace passou as mãos enrugadas sobre o cobertor. — Tenho quatro filhos adoráveis e ainda posso ver a imagem deles descendo a escada na manhã do dia de Natal, com olhinhos sonhadores e cheios de esperança em seus rostos angelicais. Se cerrar as pálpebras, conseguirei até mesmo ouvir seus gritos excitados quando abriam os presentes e encontravam o que queriam.

Ela fez uma pausa.

— Algumas vezes, desejo tanto voltar àquela época e assistir a tudo aquilo de novo... Nós não tínhamos essas incríveis filmadoras de vídeo que existem hoje em dia. Como eu gostaria que já exis­tissem, então! Tudo que possuo do passado são algumas fotos em preto-e-branco. Mas tenho uma porção de boas memórias guarda­das aqui dentro.

— Grace bateu a ponta do dedo indicador na cabeça. — Você alguma vez já desejou poder voltar no tempo?

Anahí virou a cabeça, desviando o foco da mulher num movi­mento rápido, porque, por alguma terrível razão, seus olhos co­meçavam a queimar com lágrimas, e, se não fosse de fato cuida­dosa, iria começar a chorar a qualquer minuto.

Não que lhe faltassem motivos para isso, mas não podia se lembrar da última vez em que chorara pelo que perdera.

Lágrimas tolas. Elas não adiantavam para nada. Não reparavam o irreparável.