Fanfic: A Dinastia Do Sol | Tema: Magic Campus
Cinco
Estava arrumando seus documentos na escrivaninha quando um funcionário do palácio irrompeu no quarto. Com a brecha da porta, a umidade lá de fora entrou vinda como uma brisa, chamuscando as velas no interior do recinto.
— O senhor Li-Yang mandou chamá-lo. — disse o guarda, bem direto.
— Avise que estou a caminho. — respondeu o homem que estava no quarto.
Não tardou e estava andando pelo corredor rumo ao quarto do senhor Li-Yang, mestre do Clã Li-Yang. Dois guardas guardavam a porta dupla, com tecido feito de fibras de bambu e madeira nas bordas. O homem abriu apenas uma porta, bem devagar. O quarto fedia, um cheiro de enfermidade e morte. De cabeças baixas estavam também alguns intendentes do palácio e outro guarda. O senhor mestre do clã jazia na cama, enfermo, com talas na cabeça e com o corpo coberto por dois grossos mantos de lã. O local estava completamente fechado e ainda, a lareira ardia.
Com muito esforço, o senhor Li-Yang levantou um dos braços, acenando para que o homem se aproximasse. Esse mesmo homem não se lembrava de quando o Mestre da Casa adoeceu de tal maneira. Há alguns dias atrás estava perfeitamente bem, tendo recebido até alguns cavalheiros da dinastia do sol, perdidos entre os territórios da mesma. Pelos trajes, o rapaz era um Pangeano, um graduado da academia Pangea. Sentou-se na beira da cama, perto do senhor do clã.
— Diga meu mestre, de que precisas e o providenciarei já.
— Não precisa mais me chamar assim, Holly. – respondeu o senhor Li-Yang, com certa dificuldade — estou lhe dispensado de seus serviços. Sua demanda foi... Foi concluída.
HollyHands mal conseguia acreditar.
— Mas mestre, digo, senhor, ainda não... O prazo... Preciso...
— Ah, para o inferno com o prazo e com o contrato. O senhor, soldado, provou ser muito mais digno do que um mero mercenário, como havíamos o julgado quando decidi contratá-lo. Você pode voltar para Pangea ou para Dong, que seja. Seu dinheiro, como prometido, aguarda na carruagem. Ambos estão... Fey-Ji, onde está a carruagem?
Um guarda carrancudo respondeu:
— Próxima aos estábulos, como nos foi ordenado, senhor.
O mestre da casa fez uma pausa para respirar. Sua respiração estava ofegante, realmente padecera de alguma doença grave.
— O senhor... Não posso deixá-lo, senhor Li-Yang.
Mas o velho apenas segurou sua mão e tentou apertá-la, mas a força o abandonou. Seus lábios se curvaram no quer parecia ser um sorriso, e agora, o senhor do clã adormecera.
Holly levantou-se silenciosamente. Então é assim que morrem os heróis. Doentes, fedendo e jazendo enfermos. Pelo menos não estava sozinho. Havia sua esposa, uma bela mulher. Seu filho falecera na guerra, certo tempo atrás. Sua filha mais velha estuda medicina na academia Liao Yun e a mais nova, com pouco menos de dez anos, vive no palácio.
Pouco antes de deixar o quarto, triste e cabisbaixo, deparou-se novamente com Fey-Ji.
— Deve deixar o palácio até amanhã. — disse o guarda.
O Pangeano não respondeu. Apenas franziu o cenho e continuou andando até seu quarto.
Pouco depois, foi até a cozinha para o jantar. Agora não estava mais a serviço, não um oficial ao menos, do clã Li-Yang, então não tinha mais tantas mordomias. Mas não era por causa do Senhor Li-Yang. O velho era uma boa pessoa e foi amigo do pai de Holly. Sempre simpático e bem humorado, sábio e amigo. O soldado apegara-se muito a ele.
Agora comia sozinho, a fria refeição das cantinas. O horário da janta já havia passado e agora precisava comer assim mesmo. Mas não se importava. De repente, tudo pareceu não importar mais. Ficou abalado ao ver o senhor mestre da casa naquele estado. Estava ciente de que o velho havia padecido de algum resfriado havia poucos dias, mas assim... Com problemas respiratórios, sem força nem para se manter acordado...
Não, não podia abandoná-lo agora. Justamente quando o velho mais precisava! Não era honrada tal atitude. Como disse o próprio senhor, para o inferno com prazos e contratos.
Naquela madrugada, preparava alguns frascos de poções, quando Fey-Ji, novamente apareceu.
— O que está fazendo?
Holly não olhou para trás, mas ainda sim, respondeu:
— Algumas poções fortificantes. Sabe, para dar adrenalina.
Poções fortificantes ajudavam bastante na hora dos combates. Sempre trazia de volta a energia do corpo, que se enfraquece com o uso excessivo da magia. Em geral, vem em frascos azuis e contem um liquido de mesma cor.
— Holly, eu sei que pretende ficar. Mas não pode. Ouviu meu senhor. Deves deixar o palácio e a vila antes da alvorada.
Agora o Pangeano interrompeu o que estava fazendo e virou-se.
— Não entendo por que não posso ficar. O senhor Li-Yang precisa de toda a ajuda possível.
Fey-Ji suspirou.
— Nem toda a ajuda do mundo o salvará, sejamos realistas. Sei que não o convencerei facilmente. — suspirou de novo, olhou para os lados e tornou a falar — venha comigo.
Andaram para fora do palácio, e pouco depois já caminhavam fora dos territórios da vila. A madrugada úmida e fria da floresta congelava seus ossos. Holly conhecia bem o perímetro. Não havia ali nada além de grandes árvores e mata fechada. Mas enfim, pararam, em frente a um enorme salgueiro desfolhado. Fey-Ji aproximou-se da árvore gigante e com um toque preciso, abriu o que deveria ser uma porta na casca da arvore. Era uma espécie de despensa. O guarda acendeu um archote dentro do tronco e Holly pode ver uma coleção de antigos artefatos. Fey-Ji tirou um mapa, enrolado e agora o desenrolava.
— Tome. Dê uma olhada nisso — disse entregando o papel ao Pangeano.
O soldado olhou por um tempo, desentendido, mas depois levantou as sobrancelhas e disse:
— Loras está no norte, enquanto Dong Xuen está no Sul.
— Antigamente era costume por no norte a cidade onde o mapa foi confeccionado.
— Então este deve ser de Loras, não é?
— Gostaria de ser otimista como o senhor, Pangeano. Creio eu que é de algum lugar nas Terras Prósperas. Encontramos isso aqui faz duas semanas.
— Então eles estiveram aqui...
— Acredito que sim. — agora se aproximou do soldado e começou a sussurrar. — Olhe este mapa, olhe bem. Alguma coisa grande está para acontecer. E isso diz que começará aqui, na nossa Vila do Sol. É por isso que deve deixar esse lugar. Não precisa morrer conosco.
Holly impressionou-se.
— Não acredito que tenham aceitado a morte assim, tão facilmente. O senhor Li-Yang...
— Ele já sabe de tudo. As ordens partiram dele. Ele mandou que deixássemos a vila, mas somos de seu clã, de sua família, e morreremos com ele.
— Mas a garota, ela não deve nem ter dez anos! Isso não é certo!
— Pare de gritar ou vai acordar os Ladrões do Lago. Volte para a vila e pegue sua carroça. Suma daqui ouça bem, vá para longe. Deixe-nos.
Holly ainda esta inconformado. Fey-Ji ficou olhando para o salgueiro enquanto o cavaleiro afastava-se ainda descrente, em direção à vila.
Já era possível ver a primeira luz da aurora, além das montanhas ao leste, quando Holly terminou de por suas coisas na carruagem. Acendeu os lampiões na lateral, dois na frente, dois atrás e um no acento do guia. Estava tudo pronto para partir e deixar para trás aqueles com quem serviu, a vila onde morou na infância... Não era possível acreditar... Tudo seria destruído em breve e o grande senhor Li-Yang não faria nada. Não queria fazer nada, simplesmente aceitou a morte. Fey-Ji já havia se despedido dele, mas ele não teve tempo para dizer um último adeus aos outros, tampouco ao mestre da casa.
Os cavalos, quatro corcéis negros, estavam em trote lento. Até eles pareciam tristes. Já havia saído da pequena cerca que demarcava os limites da vila quando brecou a carroça e pensou melhor no que estava fazendo.
Saltou do banco de guia, abriu a porta da carruagem e pegou sua espada. Deixou a carroça ali mesmo e correndo, voltou à vila.
Misturou-se às sombras da noite e se infiltrou no palacete. Ligeiro, logo estava no corredor onde dormia a pequena Li-Yang, que segundo boatos, também padecera de uma doença. Havia dois guardas na porta. Já era sabido de que Holly Hands, o cavaleiro mercenário, não estava mais a serviço do mestre do clã, Senhor Li-Yang. Se fosse visto ali, certamente seria atacado. Preferiu tornar tudo mais rápido. Sacou duas adagas de arremesso, e com precisão, acertou o pescoço dos dois homens que ali estavam postados. O sangue espirrou no tecido da porta corrediça. Holly avançou e adentrou o quarto. A pequena dormia docilmente sobre um manto quente. O quarto estava abafado e a lareira ardia, assim como no quarto do pai. Era uma garotinha, loira e com a íris verde escura nos olhos, típica dos Li-Yang. Calmo, ele foi puxando o cobertor de lã. A garota vestia apenas roupas intimas, apesar da manta quente. Ela fervia enferma, era uma febre terrível. Não acordou quando Holly a segurou em seus braços e a levou pra fora dali.
No corredor principal, que dava no salão comunal, o cavaleiro foi visto por cinco guardas que desciam as escadas, provavelmente dispensados do quarto do senhor da casa. Não ousariam atacá-lo com a garota no colo.
— Deixe a garota, mercenário traidor! — rosnou um dos guardas.
A coisa mais sensata era correr. E foi o que o mercenário fez. Correu para a saída, mas com os gritos dos guardas, mais homens armados irromperam por ela, bloqueando a passagem. Holly voltou para o corredor principal, estendeu um dos braços, gritou uma magia e da ponta da mão voou uma esfera roxa de energia concentrada, que botou a parede abaixo numa explosão de raios lilases. Os guardas impressionaram-se. Quando viram que não iriam parar o homem, deram ordens para atirar, Bestas foram sacadas. Agora estava perto da cerca da vila, iria conseguir!
Vinda da escuridão da noite, uma flecha atravessou sua canela e este, caiu derrubando consigo, a pequena garota.
Mais flechas choviam sobre eles. Rapidamente sacou a espada, se pôs de pé como pode e defendeu a garota caída, ainda adormecida, das setas que vinham em sua direção.
Sentiu um calor repentino e então viu que incendiaram a cerca da vila. Sua saída seria, em breve, tomada pelo fogo.
Quando sentiu um pequeno cessar das flechas, agachou e tirou a seta atravessada em sua canela. De um dos bolsos, sacou um pequeno frasco vermelho, do tamanho de um dedo que continha um liquido de mesma cor. Tomou o frasco e poucos segundos depois, a ferida na canela sarou e parou de arder. Quando se levantou, viu, a poucos metros, Fey-Ji, com o braço esquerdo estendido, segurando uma besta, armada e apontada em sua direção.
— Não faça isso, Fey... Não está certo.
— É a ordem do mestre, Holly. É seu último desejo.
— ESTAMOS FALANDO DE SUA PROPRIA FILHA! — vociferou Holly.
— Me desculpe mercenário. Apenas sigo ordens. — e disparou a flecha, que voou invisível nas sombras até ser iluminada pelo fogo da cerca. Por uma fração de segundo, Holly viu a seta indo na direção de seu peito, mas com a espada, defendeu-se. A flecha fincou no chão, perto de seu pé. Não queria ferir Fey-Ji, pois eram amigos. Mas se baixasse a guarda para pegar a garota no chão, levaria uma flechada no peito. Precisou agir. Saltou dali e sumiu no céu. Caiu sobre os guardas na entrada do palácio, desarmou todos cortando suas mãos em rápidos reflexos. Fey-Ji preparou outra flecha, mas Holly sumiu novamente.
Num breve momento de tensão e silencio, o soldado sentiu uma presença perto de si, e disparou a arma, ouvindo, logo depois o retinir de aço em aço. Era Holly, defendendo-se com a espada.
Fey-Ji sacou sua adaga, feita de ferro ordinário, e avançou contra Holly. O soldado do palácio era tão hábil quanto o mercenário. Um podia sentir o movimento do outro. Um previa o próximo golpe do outro. E ainda, conheciam suas táticas, pois juntos, já partiram em incontáveis patrulhas em busca de selvagens arruaceiros na floresta que cobria a vila.
Foi tudo tão rápido... O soldado estava com a besta armada em uma das mãos e com a outra mão, segurava a espada. Sentiu o golpe veloz de Holly sobre suas pernas, então se defendeu e com ligeira vantagem, desarmou o mercenário. Sacou à besta e atirou à queima roupa contra o cavaleiro, mas este segurou a flecha já sentindo uma fisgada na pele. Desarmado, Holly segurava a espada de Fey-Ji com as mãos e um imobilizara o outro naquela situação. Um movimento em falso e um dos dois morreria. Sua mão esquerda sangrava e a direita segurava a flecha, enquanto Fey-Ji tinha uma besta e uma espada imobilizada, limitando seus movimentos.
Rapidamente, Holly levantou a flecha e a fincou no olho de Fey-Ji. O homem se afastou com a cara rubra de sangue, gritando horrendamente.
O mercenário pegou a garota e novamente a segurou em seus braços. Estava pronto para passar pelo portão da cerca, em chamas ardentes, prestes a desabar, quando sentiu algo prender seu tornozelo. Era Fey-Ji.
— VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO! — gritou o homem no chão. Seu olho esquerdo estava vermelho, sua voz estava alterada. O que quer que os demônios fossem fazer ali, já deveria ter começado. Pobre Fey-Ji.
O mercenário pisou em seu rosto até soltar seu tornozelo. Então correu e passou da cerca. Foi até a carroça, que não estava muito longe, sem olhar para trás, e colocou a garota entre várias mantas de lã, protegida dentro do carro. Pouco depois de fechar a porta, algo novamente o agarrou por trás e o jogou no chão. O guarda ainda não desistiu.
Impressionado com o estado monstruoso do rosto desfigurado do guarda, que avançara agora contra ele tentando agarrar seu pescoço, Holly decidiu por fim à briga. Com a espada na mão, cortou os dois braços de Fey-Ji em um único golpe, e com um chute poderoso, jogou o guarda nas chamas. Antes que o mesmo tentasse sair de lá, revirando-se no fogo, Holly fincou-lhe a espada nas costas, pondo fim a seu sofrimento.
— Que Bess tenha piedade – disse removendo a arma do corpo em chamas. Voltou para a carroça, e saiu dali, os cavalos a trote rápido.
À medida que se afastava da vila, parecia sentir mais frio, embora, agora quase toda a floresta estava banhada pelo sol da manhã. As altas montanhas a leste impediam que a luz chegasse até a trilha para Dong Xuen antes de meio dia.
Decidiu parar um pouco, para ver como estavam as coisas na carruagem. Saltou do banco de guia, abriu a porta e olhou a pequena Li-Yang adormecida. Subiu no carro e pousou a mão em sua testa.
“Interessante” pensou. A garota já não ardia mais em febre. Sua pele parecia ter esfriado, a cor voltou ao corpo, às olheiras se foram. Estava novamente com as lindas feições da família e acordaria bem.
Estava fechando a porta da carruagem, já do lado de fora, quando se virou e viu cinco ou seis selvagens, alguns segurando armas improvisadas, cercando-o. Entendeu então, porque não se deve parar na tal trilha. Não era a estrada ruim, mas o grande grupo de selvagens que se aglomerara na região. Um deles tinha o corpo atarracado e segurava uma maça de guerra. Sua cara horrenda babava com os dentes à mostra. Os outros eram mais parecidos com o que se pode julgar selvagens. Quase humanos, vestiam roupas esfarrapadas e seguravam pesados bastões de ferro e madeira. Um deles tinha apenas um olho, outro tinha apenas um braço.
O selvagem parrudo foi o primeiro a avançar contra o mercenário, depois de um breve momento de tensão. Sem postura, levantou bruscamente a arma para lhe golpear de cima para baixo, e nessa vantagem, o mercenário foi rápido, desembainhado sua espada fina e cumprida e atravessando-a por entre o corpo gordo do monstro. Ele não cedeu com o primeiro golpe e a espada permaneceu fincada em seu peito. O cavaleiro ouviu dizer que alguns selvagens têm dois corações, então ter um deles perfurado nem sempre é fatal. Abaixou-se para desviar do segundo golpe, ao mesmo tempo em que sacava a adaga de metal dourado. Um selvagem tentou atacá-lo por trás, mas desviou-se dessa investida também. Passou correndo entre outros dois monstros, e agora que escapou do circulo de inimigos, se posicionou em postura de combate. O primeiro veio golpeá-lo com um bastão vagabundo de madeira quase podre, e foi desarmado com facilidade, tendo em seguida, eu estômago aberto pela adaga do mercenário. O próximo atacou rapidamente, mas errou o golpe. Bastou esse erro fatal para que Holly o atirasse ao chão, e na queda, perfurasse sua nuca com a arma. Sangue negro escorria pela cabeça do individuo, que morria em convulsões no chão. Dali pôde ver que a pequena princesa acordara. Correu de volta para a carroça, desviando de mais dois golpes. Abriu a porta e ouviu a pequena enche-lo de perguntas inocentes. “Onde estamos? , Quem é você ?”.
— Li-Yang, querida princesa, peço para que feche os olhos e tape os ouvidos. Cubra as janelas com cortinas. Eu já volto certo? Confie em mim, vai ficar tudo bem, sou um grande amigo do seu pai. — fechou a porta rapidamente, antes que a garota pudesse fazer mais perguntas e voltou-se para os inimigos. O selvagem parrudo tirara a espada de seu peito e agora a empunhava. Tentou atacar o mercenário, mas teve seu braço mutilado quase na mesma hora, e antes que o braço pudesse tocar o chão, Holly tirou a espada daquelas mãos nojentas. No mesmo golpe, com a adaga e a espada, fatiou o selvagem parrudo em três e depois, decapitou os outros dois selvagens em dois ataques incrivelmente rápidos e sucessivos. Era uma tática, nomeada pelos lutadores de Forças Das Montanhas e Do Mar. As montanhas representavam o primeiro golpe, onde o lutador usava mais força e mais poder, enfraquecendo completamente, se não matando, o adversário, e no segundo golpe, representado pelo Mar, o lutador finaliza o adversário em um golpe não tão forte e poderoso, mas rápido e destro.
Os dois golpes tinham sido tão rápidos que o sangue das criaturas nem teve tempo de sujar a espada do mercenário. Agora, voltou para a carroça, tendo certeza de que todos os selvagens estavam mortos.
— Você está bem? — perguntou para a garota. Ela assentiu com a cabeça. — Está passando mal? Alguma dor? Na cabeça, no corpo?
A garota conhecia poucas palavras, mas respondia como podia. Estava bem, perfeitamente bem, apenas um pouco impressionada com o que vira.
— Onde está papai? Quero ir para casa, Lara iria me levar para ver os filhotes de lobo...
O mercenário sentiu-se comovido.
— Olha, vai ficar tudo bem... Estamos... Estamos indo para casa, confie em mim.
Foi enquanto dizia isso que se deu conta do que estava fazendo. Rumando para Dong Xuen com a filha mais nova dos Li-Yang na carroça. O que pensariam? Um mercenário renomado, com certeza, seqüestrou a garota. Definitivamente não podiam ir para Dong Xuen. E quanto a Loras? A Cidade Da Saudade seria um lugar seguro. Não, estava muito longe. Teria que cruzar meio mundo. Mas tinham os mensageiros. E agora, o que fazer?
Então se lembrou de seus amigos. Menos de duas semanas atrás, passaram na vila, vindos de Pompéia. Estavam rumando à Dong Xuen. Talvez pudessem ajudá-lo. Eles confiariam nele, estava certo disso. Voltou a olhar para a pequena Li-Yang. Ela lembrava muito sua irmã mais velha, Lara. Existiam antigos boatos no palácio da Vila do Sol que diziam algo a respeito de uma relação amorosa entre Lara e o Mercenário.
A pequena tinha olhos verdes intensos, lindos, e cabelos muito loiros, vivos.
— na sua idade eu sempre quis conhecer Dong Xuen — disse apenas. Fechou a porta e voltou para o banco de guia, retomando as rédeas e pondo os cavalos a trote rápido.
A luz do sol em breve banharia a trilha para a Grande Cidade Do Sol, como é conhecida a capital Dong Xuen.
* * *
— Que sol insuportável. – disse uma voz masculina — Acho que aqui não chove faz duas semanas.
— O deserto do Mar Vago nunca foi famoso por chuvas freqüentes.
A cabana não cobria os dois. Por isso devem ter puxado aquele pequeno toldo, que cobria um deles que estava do lado de fora. Mesmo assim, as pernas esticadas eram atacadas pelo sol forte. Estavam ambos vestidos de preto. Sobretudos pretos pendurados sobre o fio do toldo, camisetas de malha preta, calças pretas, cintos pretos. Um deles usava grossas lentes, presas na testa por um couro castanho. O outro usava uma bandana preta, cobrindo quase todo o cabelo, se não fossem as mechas curtas e rebeldes que fugiam para a testa.
Ouviram um barulho do outro lado daquela duna enorme que estava adiante deles. Depois viram uma fumaça preta pairando ali perto. Outro barulho. Era um rugido. E agora, fogo. Viam labaredas dançando lá no alto, vindas do chão, como se alguém estivesse soltando fogos de artifício.
— E lá vêm eles. — disse o homem da bandana, enquanto vestia o sobretudo e tirava a espada fincada da areia. O outro puxou um mosquete do tamanho de dois braços de dentro da cabana e o apoiou sobre o ombro, passando por trás do pescoço.
Então, dois homens surgiram lá em cima, no topo da duna, correndo desesperadamente areia abaixo. Com um estrondo ensurdecedor, a duna se desfez em fogo e areia voou para todos os cantos, revelando um monstro gigante e alado, completamente marrom. A criatura horrenda cuspia enormes raios de fogo enquanto planava ali perto deles. Havia um arpão preso no nariz da criatura, e a linha se enroscara em suas enormes patas.
— Erraram a porra do tiro? — disse o homem com uma estranha calmaria na voz. — Sarkan, onde está o arpão reserva?
Sarkan apontou para o dragão, e o homem viu que perto de seu dorso havia outra seta fincada na coisa.
— Que ótimo. — disse irônico.
O monstro estava pronto para mais uma rajada de fogo e o homem da bandana começou a correr na direção oposta.
— TOKET TUMSI — gritou, e do chão de areia, surgiu um cavalo negro vindo de uma nuvem de sombras. O homem montou e correu dali. Seu companheiro também estava montado num cavalo sombrio, e segurava o que deveria ser outro arpão.
— SE ERRARMOS ESSE, JÁ ERA, ELE VAI FUGIR — gritou arremessando o gancho para o homem da bandana — BOA SORTE, HAZEN. — separou-se de Hazen e com seu mosquete, deu alguns tiros na criatura, atraindo sua atenção. Logo à frente, havia um precipício. A areia transformara-se em terra dura. Logo abaixo, o deserto continuava, e em breve, Sarkan passaria lá, correndo do dragão. Não tardou muito e Hazen viu os dois passando quase abaixo de si, quando se jogou do penhasco e preparou o arpão. O cavalo converteu-se em sombras e sumiu. Hazen disparou e conseguiu acertar a extensa cauda do monstro. Segurando a corda com toda sua força, em breve iria se chocar contra o chão, mas o dragão deu um impulso para o alto sentindo a fisgada na cauda. Hazen foi arremessado no ar e aproveitou a manobra do monstro alado para conseguir trepar-se em seu dorso. Ainda segurava a corda do rabo da criatura, mas acabou soltando-a, visto que seu plano mudara. Removeu o segundo gancho das costas da criatura e nesse momento ela deu um mergulho para atacar Sarkan, que corria lá embaixo. Hazen segurou firme. Prendeu a espada e o gancho no comprido pescoço do dragão. O mergulho que ele havia feito jogou a corda do arpão preso em seu nariz para trás, e Hazen conseguiu agarrá-la. Amarrou-a na espada e agora tinha uma espécie de rédeas. Puxou com toda força, fazendo o dragão abrir a boca completamente, interrompendo a cusparada que ele estava prestes a dar.
— SARKAN! ATIRE! AGORA! — gritou.
Lá embaixo, o homem preparou o mosquete, que criou uma aura azul e precisamente disparou contra o monstro. O projétil estava coberto por uma poderosa energia e com a força de um meteoro, entrou na boca do dragão. No momento em que a criatura engoliu o chumbo da bala, começou a perder altitude. Estava caindo rapidamente, quando Hazen levantou-se e correu contra suas costas, dando um ultimo mergulho em direção à sua cauda, segurando na corda do gancho que nela estava fincado. Agora conseguiu abafar sua queda, e quando estava perto do chão, saltou do monstro para o cavalo negro de Sarkan.
Estremecendo o chão, o impacto da criatura com certeza a matou.
Eles se aproximaram do cadáver cavalgando.
Sarkan olhou com desconfiança.
— E então... De onde sai o... O ovo?
— Creio que teremos que abri-lo...
Mais dois cavalos negros se aproximaram dali. Eram os outros homens de Hazen.
— Agora vem a parte boa. — disse um deles, rindo — Perto do estômago do dragão existe um... Uma espécie de órgão sabe? — estava subindo no corpo do dragão, e andava por cima do cadáver como se estivesse procurando um ponto certo — Que fica perto do estômago... Bom, isso depende do dragão... O dragão de luz tem no pescoço, sabe... Mas aqui temos um... Dragão de terra, isso, um dragão de terra. Então... Deve estar mais ou menos... Aqui. – fincou uma poderosa lâmina na barriga do monstro – Esse órgão guarda uma esfera de fogo... A energia vital do dragão, que produz aquelas chamas fantástica — seus olhos brilharam — vale tanto... Ah, tanto... Mas não está pensando em vendê-la, está?
— Na verdade, não. — disse Hazen. Os homens ao redor se surpreenderam.
— COMO ASSIM NÃO? É O TERCEIRO DRAGÃO QUE CAÇAMOS ESSA SEMANA, E VOCE ME DIZ QUE NÃO VENDEREMOS A ESFERA?
— Calma Sarkan. De vez em quando, um domador de Dou Dings aparece em Dong. Ouvi dizer que coleciona ovos, esferas, que seja. Um homem trocou sete esferas diferentes com ele e ganhou um tesouro... Bom, muito maior do que podemos imaginar. O preço de uma esfera separada é apenas merda perto do que podemos conseguir com sete diferentes.
— Sete esferas? — Sarkan parecia mais calmo — Mas demoramos dois meses pra achar três! E tenho certeza de que duas são iguais.
— Tanto faz. É o que faremos. — os outros dois se entreolharam e assentiram com a cabeça. — agora, vamos voltar para Ta Ke, estou morrendo de fome.
A cantina era mais hostil que o Deserto do Mar Vago, era o habitat de homens brutos, violentos, e mercenários, aventureiros e vez ou outra, caçadores de dragões. Quando cinco homens irromperam cantina adentro, vestindo roupas pretas e cobertos pelo sobretudo negro, todos de cara souberam que os caçadores estavam de volta.
— Será que conseguiu a tal pérola dessa vez? — riu um dos homens — Perda de tempo, seu moleque.
Hazen ignorou o comentário. Seus homens sentaram numa mesa ali perto e pediram algo para comer. Hazen foi para o bar. Do seu lado estava um homem parrudo, com o rosto coberto por uma bandana. Parecia não ter olhos e sua boca era atrofiada, horrenda. O maxilar fazia um barulho de ossos triturados toda vez que o mexia para mastigar.
Hazen evitou dar atenção para tal aberração. E então, no banco a sua esquerda, um homem comum se sentou. Estava desarmado, ou pelo menos era o que queria que parecesse.
— Soube que conseguiu mais uma esfera — disse o homem.
— Croy. Ainda está procurando cogumelos verdes por aqui? – caçoou Hazen.
— Não fale assim. Quando eu os encontrar, farei fortuna em Dong.
— Quando você os encontrar, Dong terá caído. – Dong era dada como uma cidade abençoada, que jamais cederia sobre as mãos inimigas. E desde que foi fundada, há meio milênio, isso nunca aconteceu.
— Vou me alistar. – disse, mudando de assunto — O exército de Dong Xuen está recrutando novamente. Parece que querem marchar para o Sul.
Hazen tomou um gole e respondeu:
— Bom, seja o que for não é problema meu – e se levantou.
— Também ouvi noticias da sua putinha – Croy respondeu com desdém.
O caçador se virou.
— O que disse?
— Miyasa. Ouvi dizer que está grávida. Grávida de um guerreiro da dinastia do sol. Um ex-general na verdade. Pelo visto ela foi dessa para uma melhor, não é?
Hazen estava se irritando. Os punhos se fecharam e o rosto começara a se avermelhar. De longe, seus homens perceberam que logo haveria ali alguma confusão. Por isso, nem se mexeram, apenas se acomodaram mais. Uma briga naquele bar é a melhor diversão na hora do almoço. Acontece que ambos estavam desarmados, pois as armas são deixadas num guardador, perto da entrada.
— Agora me ouça bem, — o caçador estava cuspindo de raiva — o que acontece ou deixa de acontecer com ela, é problema dela. Mais uma palavra e...
— E o que? – Croy estava discretamente tomando nos dedos um copo de vidro.
— Acabo com você!
— Você queria que ela tivesse seu sobrenome, não é? Ah, sinto muito, pode chorar no meu ombro.
— O que aqueles dois têm? – perguntou um dos homens de Hazen para Sarkan, lá na mesa ao fundo.
— Se odeiam desde a academia. Não sei explicar bem. Ainda vão dar um jeito de matar um ao outro, é isso o que os mantém vivos.
A coisa estava esquentando. Croy preparava-se para atirar o copo de vidro no rosto de Hazen, quando um braço forte o segurou e o copo caiu no chão. O homem estranho levantou-se do banco, ainda segurando o braço de Croy. Puxou-o para perto de si, segurou seu outro braço e com um chute poderoso, arremessou-o longe. A força do golpe foi tanta, que Croy voou pela parede, abrindo nela um enorme buraco e depois, chocando-se no chão de terra. O homem encarou Hazen e depois cobriu a boca com os lenços pretos do rosto e então, tornou a sentar.
— E aquele, quem é? – o homem perguntou a Sarkan.
— Não faço idéia. — disse sem se importar, tomando um gole da bebida que estava sobre a mesa.
Estavam voltando para sua morada. Não era grande coisa. Trata-se de uma pequena fortaleza abandonada no deserto. O comboio, de três carroças e quatro mulas, estava parado num pequeno mercado. Precisavam repor seus suprimentos. Hazen esperava encostado na primeira carroça, quando um homem coberto de varias mantas finas surgiu por entre os estandes da feira na entrada do mercado.
— Então você é o caçador de dragões? — Hazen ouviu uma voz muito gasta, velha.
Não respondeu.
— Existem muitos caçadores de dragões... Em florestas e montanhas, mas nunca vi caçadores no deserto... E pelo comboio que tens ai, vejo que são muitos.
— Somos cinco. – disse Hazen, sendo direto.
— Ah, cinco... Sabe, sei muito sobre dragões... posso te dizer algo por uma moeda de ouro.
O caçador riu.
— Vai passear, velho. Não pago uma moeda de ouro nem pra salvar minha mãe.
— Talvez essa moeda se transforme em mais ouro do que você poderá gastar em toda a vida.
Imagine.
Falar em mares de ouro era com Hazen mesmo. Foi até a carroça, onde estavam várias malas. De uma delas, abriu um pequeno compartimento e puxou uma moeda de ouro.
— Espero que não minta pra mim, posso pega-la de volta com a mesma facilidade que estou lhe dando.
O velho pegou a moeda sorridente.
— Entre as montanhas do mar vago e o Oasis do Céu, vive um dragão negro. É o dragão da escuridão. Suas chamas são azuis, seus olhos são dourados. É o mais poderoso dragão. Alguns acham que é uma lenda, mas eu o vi. Essa coisa tem todas as sete perolas de dragão, mas é sete vezes maior e sete vezes mais rápido. E ainda existe uma esfera extra. O domador de Dou Dings daria a vida por ela. Você é jovem, e em sua alma vejo tanta energia... — quando o velho saiu da frente do sol, Hazen pode ver que seus olhos eram dourados e havia mechas azuis quase imperceptíveis escapando sobre o turbante vermelho na cabeça. — Mas vou lhe cobrar algo muito importante pra mim.
O caçador levantou as duas sobrancelhas.
— Quero um olho desse dragão. — foi se afastando de costas de Hazen, quando uma carroça passou por eles e quando o cavalheiro olhou novamente, o velho já havia sumido.
— Um dragão negro, — pensou — podia jurar que estavam extintos.
* * *
— Não posso acreditar mestre. Acabamos de chegar!
Shanks suspirou. De certa forma, o garoto não iria questioná-lo por muito mais tempo.
- Flyper... Estou prestes a mudar minha vida, novamente. E isso poderá te beneficiar. Lembra quando você tinha me pedido para visitar as montanhas Yun-Lu? Então! Quando tudo acabar, poderemos morar lá! Ou quem sabe em Dong Xuen! Você vive me pedindo para te levar lá...
O mestre pos a mão em seu ombro e prosseguiu:
— Você ficará com dois excelentes tutores. Ah, não faça essa cara, eu não demorarei...
Os dois tutores se aproximaram para pegar o garoto e levá-lo para a academia temporária. Shanks se levantou e com um olhar de despedida, virou-se e foi andando para a saída da cidade. O sol da manhã iluminava toda a montanha e de lá de cima era possível ver toda a região, até mesmo Pompéia, com certo esforço.
O caminhar de Shanks foi interrompido pela voz de Flyper.
— Mestre Shanks... gostaria de fazer uma última pergunta.
O homem voltou-se para Flyper.
— Vá em frente, garoto...
O pequeno demorou um pouco para perguntar, parecia pensar bem no que estava fazendo, escolhendo as melhores palavras... E então:
— Mestre Shanks, quem é o senhor?
Aquilo pegou o mestre de surpresa. Os tutores aguardavam pacientemente.
— Certo, certo. Acho que essa é uma boa hora... – Flyper parecia ter perguntado sem esperança alguma de obter resposta, pois a surpresa foi tanta quando o mestre realmente foi responder, que o garoto deu um salto de ânsia. — Sabe, há muito tempo atrás... Deve fazer uns... Cinqüenta anos... — o garoto arregalou os olhos, e o mestre notou, pois logo foi explicar — olha, quando terminamos as academias, aprendemos a controlar nossa energia vital para... Viver mais... Durante o curso avançado, os alunos tomam doses de uma poção feita do sangue de uma espécie de boi loraniano, o Puro Sangue. É claro que tudo tem seu preço. O aluno toma do sangue do boi que ele mesmo deve matar. Enfim... A antiga guarda estava em crise. Depois da guerra, a população não via motivos para os gastos absurdos do império em belicismo, principalmente conosco. Estavam prestes a decretar o fim da Guarda Imperial, a Irmandade dos Guardiões de Bei Si, quando descobrimos uma conspiração poderosa. Eu descobri... Um amigo muito próximo de mim foi o único a acreditar no que eu havia lhe falado. Artemes, a antiga Mestra da Cura, uma das mais poderosas anciãs da guarda, tinha planos para assassinar Bei Si e nós não podíamos ficar parados. Acontece que nos meses que se passaram, ela tomou um lugar de honra no Conselho Imperial. Ela era a própria Mestra do Conselho, a suprema excelência. Era tão poderosa que poderia por fim aos outros oito guardiões. E ela bem que tentou. Caçou Sym, a Mestra das Armas, que conhecia seus planos, e nunca mais a vimos desde então. Artemes chegou muito perto de tomar o poder. Se ela assassinasse Bei Si, poderia roubar sua essência vital e ser tão sábia e poderosa quanto ele. Na época, eu era mestre de uma mulher... Majta... Pelo nome, você já deve saber que ela é do Sul. Eu pretendia fazer a coisa mais lógica no momento. Matar Bei Si antes de Artemes. Mas, claro, com a ajuda da Cura Vermelha, feita por duendes em Cídia, a Cidade dos Duendes, eu o traria de volta. Majta ouviu outra história. Alguém deixou escapar o que faria, e ela ficou sabendo. Tornou-se obcecada, paranóica... Não posso deixar de contar que nos amávamos. Foi difícil ela aceitar isso. Essa... Mentira. Ela faria de tudo para que eu não fizesse o que ela julgava a maior besteira da minha vida. Então ela mesma o tentou fazer.
Eu não soube ao certo o que ela fez para conseguir mais poder, mas ouvi uma história sobre demônios. Ela entregou nossas almas e nosso amor para um clã de demônios em algum lugar e... Ah, não é importante, apenas baboseira de homens supersticiosos. Ela não chegou a matar Bei Si, mas tentou. E Artemes fez o joguinho dela para me incriminar. A Antiga Guarda finalmente foi desfeita e eu fui condenado à forca. Nunca mais vi Majta... dizem que a mataram, e... bom, minha família não importa agora. No dia em que eu deveria ter morrido, fui solto por um... amigo. Desde então, passei a ser procurado nas cinco grandes capitais. Pompéia, Xian Duo, Dong Xuen, Loras e Cídia... Condenado ao exílio, fui para o Caminho do Bambu, onde vivia até você aparecer. Eu preciso... preciso rever minha família, preciso recuperar minha honra. Preciso ser perdoado para caçar Artemes e terminar tudo isso, mas antes, tenho que trazer um Lazuli pra cá. Meu nome é Shanks, e fui da Antiga Guarda.
O mestre levantou-se ao ver que seu dragão acabara de pousar na muralha da cidade. Estava esperando para voar, ansioso por sinal. Deve ter ficado confinado durante muitos dias, pois agora esticava ao máximo suas enormes azas vermelhas carmesim, e rugia o som de trovoadas, como se estivesse chamando seu dono.
O mestre se levantou e olhou os dois tutores encaminhando Flyper para a Academia de Loras. E agora preparava-se para montar seu dragão divino.
Flyper olhou por cima do ombro e viu seu mestre sumindo nas nuvens, montado num magnífico dragão divino. Ele não sabia que nunca mais veria o homem que conheceu.
* * *
Era quase meio dia. Selenium estava abanando numa cadeira de balanço, no quintal do palacete dos rapazes. Estava pensando na conversa que tivera com Kyshme, pouco antes de sua partida.
— Ouvi dizer que Feng o desafiou para um duelo. O que você fez na casa de sombras foi uma... loucura.
Selenium não havia respondido. Kyshme estava apertando um dos cintos, o qual segurava a bainha da adaga menor.
— Sabe — continuou — se você ganhar esse duelo... As coisas vão piorar. Feng vai vê-lo como inimigo e...
— Feng já me vê como um inimigo. – respondeu Selenium, sem rodeios.
Kyshme pensou um pouco.
— As pessoas vão comentar...
— Pelo amor de Bess, Kyshme! Está me pedindo para perder o duelo!
— Não estou pedindo para perder. Estou pedindo para fazer o certo. E ganhar não será o certo.
— Acha que Feng vai me poupar caso eu perca? Acha mesmo? – Selenium estava ficando irritado.
— Você é da Dinastia. Ele não se atreveria.
— Feng é doente. – respondeu o Lazuli, sem dizer mais.
Ainda era bem cedo quando o cavaleiro partiu, Nick dormia, então se despediu apenas de Selenium. Pouco depois, Kyshme, antes de encontrar o Mensageiro que o enviaria para Pompéia, a cidade mais próxima do Templo De Arafa, passou no Lago do Sol, para ver sua amada uma última vez. E se não retornasse da guerra? Em breve terá uma família... Prometeu que quando voltasse, desposaria Miyasa e prometeu também tantas outras coisas...
“E quando tudo acabar, meu amor, estaremos numa linda casinha nas montanhas Yun-Lu... Só eu, você e nosso querido filho”.
Mas agora estava só. Kyshme era, dos três, o mais sensato. Sempre sabia tomar a decisão certa, sempre avaliava bem suas ações. Por isso, concluíram que era o melhor para comandar as legiões no Sul.
E agora? Confrontar Feng e perder seria humilhação, mas ganhar só iria piorar sua má reputação. Os membros do conselho já não olhavam no rosto do Lazuli, imagine quando souberem que seu capitão de proteção foi derrotado.
Quase meio dia, não parava de pensar.
Já estava pronto. Preferia que ninguém visse o duelo, mas soube através dos corvos do palácio, que foi marcado na Arena de Dong Xuen. Mais de vinte mil expectadores veriam o confronto.
Pelo menos o garoto está a salvo.
Nick e Selenium estavam a caminho da arena. Muitas pessoas apontavam para o homem do cabelo azul.
“Ei, seu demônio imbecil, está pronto pra morrer hoje?”, “Lazuli medíocre, não tem chances contra o Capitão de Proteção”, “Vai pagar por seus crimes, aberração”. Todos a sua volta estavam caçoando, xingando, jogando pragas. Nick pôs a mão em seu ombro.
— Não os culpe. São meros idiotas de visão limitada.
Por mais atrapalhado que fosse, Nick sabia confortar seus amigos. Selenium estava decidido. Sabia exatamente como seria o desfecho desse duelo.
A arena estava cheia. Duelos acontecem todos os dias, o tempo todo, mas um duelo tão importante não acontecia desde que um membro da Antiga Guarda confrontou Artemes, a Mestra do Conselho Imperial de Dong Xuen. Nick foi para um camarote privado, de onde tinha direito de assistir a luta. Selenium se preparava no pátio perto da entrada da arena. Pelos gritos e vivas repentinos das arquibancadas, Feng deve ter se apresentado no campo.
O corredor tinha um estranho cheiro de sangue. Quantos homens passaram por ali, rumando para a morte? Era quase sempre um caminho sem volta. Pensar assim deu calafrios no Lazuli. As portas douradas com leões-serpentes esculpidas aproximavam-se. O guarda que ali estava abriu-as e quando o cavaleiro passou por ele, ouviu um sussurro. “Boa sorte”.
Deparou-se com toda a platéia. Estava ainda mais cheio do que imaginara. Os vivas transformaram-se em vaias e pragas. Selenium descia as escadas em direção ao campo da arena, sendo recebido com pedradas, as quais conseguia desviar facilmente, e ainda, frutas podres eram arremessadas contra ele.
Puma estava no camarote oposto ao de Nick. Seu sorriso cheio de malicia estampado no rosto, postado ereto, triunfante, já sabendo o final do duelo. Feng tinha a mesma expressão de satisfação.
— Então, — disse o Capitão — o demônio tem mesmo a coragem que ouvi dizer que tem. Vai morrer por tal ousadia, Lazuli imbecil!
Selenium permaneceu calado. As vaias abafavam as arrogantes palavras do Senhor Capitão.
“Não estou pedindo para perder, apenas para fazer a coisa certa”.
— Eu vou fazer a coisa certa, Kysh. – sussurrou para ninguém além dele ouvir.
Os adversários estavam frente a frente, esperando a bandeira negra ser levantada, dando inicio ao duelo. As cortesias e reverências foram deixadas de lado. A arrogância do Capitão de Proteção falava mais alto.
Quando a bandeira estava prestes a ser levantada, ambos levaram as mãos aos cabos de suas montantes presas nas costas. Cada um tinha a sua, era normal um Lutador Artista ter uma montante, pois para tal profissão, era a arma mais apropriada.
Encararam-se por cinco segundos que parecuma eternidade. Selenium não mostrou a mínima fraqueza perante o olhar intimador e confiante de Feng.
A bandeira foi levantada.
Feng não começou usando um ataque físico, mas uma mágica, uma poderosa lança de luz laranja, lançada na direção de Selenium, que sem se mover, abafou o golpe. A energia arrebatadora da magia que lhe rodeou parecia queimar seus ossos, mas logo, a luz se dissipou. Feng avançou como um cachorro raivoso usando ataques aéreos, pulando e assaltando, pulando e assaltando. Selenium apenas se defendia com a espada, enquanto Feng agitava-se tentando encontrar um ponto para atingir a espada. Então usou outro famoso golpe dos Lutadores. Lançou sua espada para o ar, e sozinha, ela se posicionou em cima da cabeça do Lazuli, e começou a cair coberta de energia e luz, e se multiplicou em mais quatro espadas de energia, emanando uma aura rosada ao mesmo tempo em que Feng atacava pela arena. Selenium defendeu a primeira espada à cair, e abafou o golpe de Feng. Em seguida, defendeu as outras duas e esquivou de mais golpes de Feng. Irritado, o Capitão estremeceu o chão com mais um golpe, que lançou uma onda de energia, dessa vez azulada, na direção do cavalheiro. Ele tombou, mas desviou-se das duas últimas espadas que vinham a cair sobre si, rolando no chão. Antes de ter tempo de olhar, Feng já caía novamente brandindo a espada, pronto para mais um golpe poderoso. As arquibancadas se enchiam com as milhares de vozes gritantes, que pediam por sangue e morte, por justiça. Gritavam o nome de Feng. Nick olhava atentamente. Estava apreensivo no início, mas agora comia uma maçã tranquilamente.
O capitão caiu sobre o Lazuli, mas ele defendeu o golpe da espada com a sua montante. A ponta da lâmina estava quase roçando em seu rosto, mas estava segurando toda a brutalidade do Senhor Capitão. Então o empurrou para longe dali e postou-se rapidamente de pé. O capitão voltou a atirar lanças de energia, esferas de fogo e raios ardentes, seguidas de uma tormenta de Penas Voadoras, um poderoso golpe típico de atiradores. Dispararam três, quatro, cinco vezes contra Selenium, que conseguiu defender todos os disparos.
Foi tudo muito rápido. Olhou para Nick, lá em cima, no camarote. Ele retribuía o olhar com certa aprovação, e então, assentiu algo com a cabeça.Selenium notou o gesto do amigo.
Quando Feng avançou para um novo ataque físico, fingiu ter sido pego de surpresa e então foi desarmado. A montante voou para longe dali, e sua aura de luz azul se apagou.
“Morte! Morte! Morte!” gritavam as vozes. Feng disparou outra pena voadora, que trespassou o peito do Lazuli. Seu sangue, perfeitamente normal e vermelho, escorreu pelas vestes negras e pingou no chão. Ainda lutava para manter-se de pé. Então outra fisgada. Sentiu algums costelas sendo estraçalhadas e um feixe de luz saiu de seu dorso. Havia levado outro golpe da Pena Voadora. Caiu de joelhos. O sorriso de Puma se fechou. Uma coisa era humilhar o Lazuli, mas matar o membro da dinastia era outra coisa completamente diferente. Significava guerra. Uma guerra que o Império não podia ganhar.
“Morte! Morte! Morte!”
“Apenas faça a coisa certa”
— Não deveria ter me desrespeitado, Lazuli nojento. Se eu joguei o pirralho na casa de sombras, é problema meu. Não devia tê-lo tirado de lá. – Feng preparou um novo golpe, dessa vez, físico. Ergueu a espada e a preparou para acertar bem no pescoço.
— Últimas palavras? – perguntou Feng, sorridente e malicioso.
Selenium fechou os olhos.
— Papai, posso caçar ursos-raposas com o senhor?
Sentiu seus cabelos serem afagados por uma mão adulta.
— Filho, ursos-raposas são perigosos... Por que não ajuda sua mãe com as ervas sálias?
— Porquê é muito chato! – disse o pequeno, de cara feia. Mas seu pai não lhe deu ouvidos. Apenas afagou mais seu cabelo e foi-se embora com um poderoso conjunto de arco e flecha em mãos. Dois homens de cabelo azul o esperavam montados em Bois com pelagem lilás. Rapidamente, sumiram dali.
O garoto foi para os fundos da casa. Sua mãe, uma linda mulher, também de cabelos azuis e olhos dourados, estava a plantar algumas ervas no jardim.
— Mamãe... Azyro me chamou para pescar com o tio dele... Posso ir?
A mãe de um sorriso.
— Pode, mas volte antes da janta! — o garoto deu meia-volta, correndo em direção à porta – Seleno! – ouviu a voz de sua mãe novamente – Leve a capa! Daqui a pouco fará frio!
O garoto voltou e vestiu uma capinha azul escura, prendendo-a em adornos nos ombros.
Correu para a casa de seu amigo. A pequena aldeia tinha casinhas fofas, não muito grandes, feitas de madeira. Não havia nenhuma construção singular, realmente significativa. Cruzou a aldeia toda e se afastando por uma trilha de pedras ralas, viu uma casinha isolada na mata aberta. Havia um pequeno garoto segurando algumas varas de pescar na mão, os cabelos azuis escorriam até os ombros. Um homem mais velho estava montado num Boi lilás, também com cabelos azuis. Aliás, todos ali pareciam ter cabelos azuis e olhos dourados.
— Seleno! Pensei que não fosse vir. — disse o garoto.
— Mamãe deixou que viesse. Hoje está de bom humor. Ah, oi tio Élet.
O boi puxava uma carroça onde eles estavam junto com todo seu equipamento de pesca. Pouco depois de adentrar ainda mais a floresta aberta, através da trilha de pedras, viram o lago de águas cristalinas e abundância de peixes.
Perderam a noção do tempo pescando. O sol já estava baixando quando começaram a sentir um cheiro esquisito, de queimado. Cabelo queimado. O tio Élet adormecera, mas os garotos saíram dali mesmo assim. Voltaram a pé para a casinha e então o medo tomou conta deles. Estava pegando fogo. Azyro parecia que ia desabar em lágrimas, mas correu na direção da casa, trespassando fogo e a madeira queimada das paredes. Poças de sangue se estendiam por todo o chão, não encontrou sua mãe. Seleno gritou de lá de fora:
— AZYRO! SAIA DAÍ, A CASA ESTÁ CEDENDO!
O garoto estava em choque. Não tinha nenhuma reação. Seleno não sabia se tentava tira-lo de lá ou se voltava pra chamar tio Élet. Mas não teve tempo. A casa em chamas desabou sobre o garoto. Seleno cobriu o rosto com as mãos.
— Não, por Bess, não... Não... — estava desesperado. Correu de volta à vila. O que antes era um lugar pacato e fofo transformara-se num inferno. As casas ardiam em chamas vivas, gritos de terror, homens e mulheres queimando, crianças mutiladas nas ruas. Corpos e mais corpos. Seleno correu mais, até sua casa. Ainda não queimava, acreditou que seus pais estivessem a salvo. Mas ao chegar ao jardim, encontrou sua mãe. Estava sem uma das pernas, o rosto coberto de sangue, a barriga aberta.
— Mamãe... Mamãe, não, por favor...
— Seleno... Fu... Fuja... — a moça estava morta. E seu pai? Saíra para caçar, talvez estivesse vivo. Mas não conseguia pensar em mais nada a não ser sair desse inferno. Correu para a floresta. O desespero domava seu corpo, o medo, a tristeza, o choque. Correu muito tempo, até não sentir mais o cheiro de queimado.
Abriu os olhos, a multidão gritando por morte.
Feng preparava-se para o golpe final. A espada caiu rapidamente sobre o ombro do Lazuli, mas á centímetros de seu pescoço, o golpe foi parado com a mão do cavaleiro. Segurou seu braço e o apertou até Feng soltar a arma. Os ferimentos sangravam, mas não era problema. Poderia ter o corpo perfurado por dez penas voadoras e ainda agüentaria abater o Capitão de Proteção. Mas a melhor alternativa era dar-se por vencido e acabar logo com isso. O capitão recuou, soltando-se. Finalmente, o Lazuli cedeu e caiu de frente ao chão. A platéia se calou por uns segundos e logo voltaram a gritar comemorando e jogando rosas ao Capitão, que permanecia de pé.
Acordou em seu palacete, com os ferimentos limpos, sarados e fechados, roupas limpas e sobre o olhar atento de um garoto que não deveria ter mais de dezesseis anos.
— Não acredito que fez isso tudo por mim — disse.
Selenium estava fraco demais pra responder. Parecia realmente ter ficado desacordado. A cama era quente e confortável, e no momento, sentia frio, muito frio. O sol estava se pondo, finalmente. Deveria ser umas seis horas da tarde. Os archotes da cidade começaram a ser acesos.
Nick entrou no aposento.
— Quando você disse que faria a coisa certa, pensei que fosse partir Feng em dois.
— Temos... Diferentes pontos de vista sobre... — estava fraco — sobre o que é certo. — respondeu — preciso resolver um... Um problema...
— Tome mais uma dessas ou não vai a lugar algum. — sobre a mesa de cabeceira, havia um frasco contendo um liquido rosa - avermelhado. Aquilo devia curar os ferimentos quase instantaneamente, e dar força ao corpo.
A Antiga Taberna estava com os dias contados. A Guarda Imperial voltava lá a cada três horas, mas Nakato recusava-se sempre de fechar o local, mesmo sobre as ameaças de Sargento Zero. Mas o movimento ainda aumentou mais. Com quase todas as tabernas da cidade fechadas, a antiga taberna tornou-se um dos lugares mais movimentados de Dong Xuen. Pouco sabiam que era o último dia de farra. A barulheira do lugar era ouvida ao longe. Selenium estava lá, dessa vez, mais perto da mesa de jogos onde a morena que vira tempos atrás vivia apostando ao lado de homens brutos e lindas amigas.
Depois de certo tempo, a garota saiu dali. Foi para os fundos da Taberna. Selenium seguiu-a. Nunca tinha saído por ali. Viu-se num armazém ao ar livre, onde litros e mais litros de bebidas estavam armazenados.
— Procurando algo? — disse certa voz sensual e suave.
— Acho que já encontrei. — respondeu Selenium, fechando a porta.
— E então, o que veio fazer aqui?
— Apenas conhecer a adega... – disse fingindo desdém.
— Jura? Não foi você quem ficou me olhando nos últimos quarenta e cinco minutos? Ah... Eu esperava mais agora...
O homem dos cabelos azuis se aproximou da moça. Ela estava encostada na parede, vestindo roupas finas. Um vestido de seda, aberto no lado esquerdo, deixava uma de suas coxas á mostra.
— Existe algo... Muito interessante em você — disse o Lazuli. Ele se aproximou da moça, seu braço passou pelas suas costas e aproximou o rosto como se fosse beijá-la. A mão se aproximava do rostinho meigo e então... Segurou seu pescoço e a jogou com força contra a parede. — Acha que sou idiota, demônio? Por Bess, uma garota? Acha que não consigo acabar com você?
A garota riu.
— Então... Acha que sou um demônio... Diga-me Lazuli... — estava fazendo força para falar, pois o homem estava praticamente estrangulando-a. — Acha isso só por que... Por que não consegue interpretar minha... Alma?
— Sim, acho — e levantou a garota com a mão.
Ela parecia estar rindo novamente. Um clarão de luz saiu de seu corpo e Selenium sentiu-se cego por um momento.
— Nem sempre tudo é o que parece ser...
* * *
Estava sentado numa tora grossa, no topo de uma árvore alta, dentro do pátio da academia. O manuscrito que estava lendo há poucos dias jazia no seu colo, com as páginas marcadas. A lua cheia pairava no céu noturno. Tudo andava tão silencioso desde que o Professor Heilin foi embora... Tudo estava mais calmo. Douglas suspirava encarando a lua. Estava linda hoje. Nas costas já não levava mais o tal bastão que o professor tinha. Descobriu que o instrumento pode se desmaterializar até só restar o pequeno cabo, que preferiu manter coberto sobre os panos e esconder sobre as vestes. Mestre Mattos, O Mestre dos Livros da Academia Estrela De Fogo deu conta de encobrir o que havia acontecido no Palácio de Soray. O monitor que havia sido atacado com magia negra. Acabou não dando em nada. Mestre Mattos era habilidoso em ocultar fatos que não deveriam ter acontecido.
O Palácio de Soray dormia num profundo silencio, onde não se via nenhum movimento dentro do complexo de corredores e salões. Faltando agora menos de um mês para a formatura — Que havia sido adiada por causa do garoto demônio — Esse com certeza era um clima estranho. Geralmente, em ocasiões normais, tudo estaria alegre e festivo, mas agora, os alunos e os professores estavam muito quietos. Os monitores nem saíam de suas salas e gabinetes e mestre Wu não era visto fora de casa há quatro dias.
Dessa vez, Douglas pôde entrar pelos portões principais. Vagou pelos corredores, com os passos ecoando. Sempre aquele lugar foi barulhento, mas agora era possível ouvir o eco dos próprios passos.
Agora olhava fixamente para a porta do quarto de Heilin. Estava trancada. Douglas teria ficado meia hora ali, sentado de frente à porta, fitando-a.
Um pergaminho de magia negra e um bastão enfeitiçado. Ótimo. Podia ter sido mais especifico quando disse sobre o que não se ensinam aos alunos. Você e o mestre Mattos.
Olhou para os lados. Não havia ninguém ali e se houvesse, deveria estar dormindo. Levantou-se. A porta estava protegida contra magias. Não daria para destrancar assim. Douglas então certificou-se novamente se estaria alguém olhando, e certo de que estava sozinho, jogou-se de ombro contra a porta, compensando seu peso, arrombando-a.
Fez um bocado de barulho, mas nada parece ter mudado nos corredores. Olhou ao redor do quarto. Estava completamente vazio. O baú sumira também, os móveis, tudo. Heilin realmente não voltaria mais. Não era mais professor da Academia. Douglas deu um suspiro e sentiu uma presença atrás de si.
— Mestre Mattos — disse sem olhar para trás. — gostaria de ver uma ultima vez... Sabe, ele foi um bom professor.
O homem não respondeu.
— Sim, foi. Douglas. Olhe pra mim. — o garoto se virou, fitando o rosto do mestre – Já começou.
— O quê? O quê já começou?
— Me acompanhe até a biblioteca. Está com a pedra que eu te dei?
— A pedra mágica da sabedoria. Sim.
— Ótimo. Vai precisar dela. — estavam andando apressados, saindo do Palácio. — A Vila do Sol... Antes do amanhecer foi atacada. A notícia ainda não deve ter se espalhado, mas muito em breve a população de Dong Xuen saberá. A Vila do Sol era parte das Terras da Dinastia do Sol, a poderosa anciã da capital.
Douglas não pretendia perguntar como o Mestre sabia daquilo, pois o homem sempre sabia das coisas, fosse o que fosse.
Chegaram à biblioteca, entraram e como sempre, a habitual escuridão do interior frio e úmido. Douglas seguiu os passos do mestre até a Sala do Silencio. Entraram.
— Onde estão os outros? — perguntou o aluno.
— Não têm outros.
— Como assim não têm outros?
— Não temos tempo para isso. Se eu tivesse avisado mais alguém seria pior.
— PODERIAM DEFENDER A ACADEMIA!
— Não existe salvação. Ainda não. – o mestre estava estranhamente calmo.
— Então por que eu?
Antes de responder, o Mestre dos Livros encarou o garoto por alguns segundos.
— Você tem uma ligação interessante com a magia. Esse é o lugar errado para você. Isso que carrega no bolso... É uma poderosa fonte de magia negra. Você precisa aprender a controlá-la, e rápido, ou então, isso controlará você. Vá para a Terra Da Luz Perdida e lá poderá aprender a ser quem você deve ser.
— De tantos alunos, por que eu sou... O mais apto?
— Não me faça essas perguntas. Existem coisas que nem mesmo eu sei e compreendo. Mas deve sair daqui imediatamente. Não use o portal. Os anciões de Loras sentem a aproximação de magias negras. Você deve rumar a pé.
— O QUÊ? MAS AS TERRAS PRÓSPERAS ESTÃO A MEIO MUNDO DE DISTÂNCIA.
— O mensageiro mais próximo está na Academia Lioo-yun. Isso te adiantará um pouco. Não vá para Dong Xuen e nem para nenhuma capital.
Douglas estava cada vez mais confuso. Tantas perguntas...
* * *
O navio mercante ancorado ao longe no mar completava a paisagem glacial. A ilha estava coberta de gelo e nevava um pouco, as águas estavam gélidas e com pedaços soltos de gelo fino. O céu estava sem uma nuvem sequer, e lindamente estrelado. No leste parecem existir ainda mais estrelas e ainda podiam-se ver auroras boreais.
Com ela, foram quinze homens. Estavam levando alguns suprimentos, pois pretendiam passar dias em terra. Andaram por horas numa trilha dentro da floresta de gelo. As árvores eram baixas, então às vezes era possível contemplar o templo de vidro que se erguia não muito longe dali. Era enorme, colossal.
Finalmente chegaram numa pequena vila aconchegante com casinhas de madeira e por todos os cantos, fogueiras ardendo.
Havia ali duas mansões de madeira, uma bem perto da outra. Na frente, algumas boas carruagens estavam estacionadas. A porta da frente estava aberta e uma senhora esperava postada ali.
— Sejam bem-vindos – disse – aguardávamos vocês.
— Mile, arrume os quartos que vou pagar nossa estada.
Pouco depois estavam acomodados. Mah havia pagado toda a hospedagem. Alugaram seis quartos e mais dois para deixar os suprimentos. Não tardou muito e a garota já havia saído dali. Alugou um cavalo e foi para as proximidades do templo de vidro. Ali era um famoso centro de comércio que cresceu em volta do templo. O lugar era controlado por selvagens da neve, também conhecidos como selvagens Azuis, e incontáveis monstros. Uma grande estalagem, na margem de um rio bastante extenso, cruzava parte desse mercado. Ali construíam pequenas galés mercantes. Mah, com roupas grossas e o rosto tampado pelo capuz do casaco de peles e mais alguns lenços, estava indo na direção dessa estalagem. O lugar era cercado por um pequeno muro de tijolos e madeira e o portão era metálico, feito em pequenas vigas e barras de ferro. A moça havia sido barrada por dois seguranças que a revistaram, mas viram que estava limpa.
Lá dentro já não era tão frio. Um cheiro de madeira queimada tomava conta do lugar, mas isso não era problema algum. Sua presença nem foi notada e os homens trabalhavam feito animais.
Um homem usando terno branco e mais outro, segurando um bloco de notas apareceram ali perto e foram cumprimentar a garota.
— Vejo que realmente pretende cumprir a promessa. — disse o homem do terno branco. — me acompanhe até a minha sala.
— Não pode estar falando sério.
— Estou sendo seriíssima. O galeão... Realmente gostei muito dele. – disse Mah.
— Vou repetir: ele não está à venda.
— Ouça. Tenho uma galé mercante com quatro toneladas de cargas valiosas. Ainda ofereço mais quinhentas moedas de pratas Cidianas. Valem muito aqui.
O homem assumiu uma expressão pensativa.
— Eu sei que não é da minha conta, mas não consigo deixar de perguntar o que pretende fazer com um galeão de guerra. Vento De Bess é o mais poderoso galeão dos mares do leste.
— Eu sei. Preciso terminar algo que... Comecei muitos anos atrás.
— Acho que temos um negócio. Mas, veja bem, estou fazendo isso por consideração a você e a seu pai. Aliás, como vai ele?
— Morto. – a garota respondeu sem cerimônia, secamente.
— Ah... Meus pêsames... Ele foi... Um bom homem... — agora, meio sem graça, voltou-se para uma estante de armários e gavetas. Procurou um pouco alguma coisa e depois apareceu com um rolo de papel amarelo na mão. — Isso é a carta de posse do navio. Rubrique aqui... E aqui... É um documento oficial, se os Guardas Imperiais aparecerem aqui de novo, terão de revisar alguns documentos importantes e blá blá... Essa palhaçada toda.
— Muito obrigada, Nontes. Preciso de mais um favor.
— O quê seria?
— Quero que você recrute minha tripulação. Com um navio maior, precisarei de mais gente. Ofereça duas mil moedas de prata para cada um que quiser se alistar. E tente ser rápido... Quero partir em três dias. Estou com quinze homens e minhas irmãs em uma hospedaria cara, na Vila de Duo-La.
— Aposto que está pensando naquele idiota.
— Não fale assim Mah, ele é uma boa pessoa. — respondeu Mile. — Já estou com saudades.
— Não me interessa. Ele é da Guarda do Império, está perdendo o juízo? Quando ele se cansar da sua boceta, vai entregar a todas nós.
Mah às vezes a irritava profundamente. Estavam agora sentadas na calçada de mármore da hospedaria. Mile fitava as estrelas, que iam surgindo no céu limpo. O cheiro de carne assada alcançou suas narinas, levadas pela suave brisa da terra de inverno. Estava ficando com fome. A hospedaria servia os banquetes em horários fixos e faltavam duas horas para a janta.
Nas Ilhas do Leste está sempre frio. Sua capital é Xian Duo, uma gigante do comércio marinho. As cidades mais importantes são Duo-La Neve e o Paraíso da Sakura Dançante. Ambas as regiões possuem uma história um tanto curiosa. Duo-La Neve era uma região de campos. A terra era um mar de neve e ali, nada mais havia alem de fazendas de criação de ovelhas azuis. As ovelhas azuis são muito apreciadas nas cidades do Leste. Embora tenham aspecto de ovelhas, esses animais são cobertos por uma pelagem de tigre azul, animal ancião oriundo das Terras Prósperas que chegou aqui por via do comércio ilegal da época. Hoje, foi extinto e seu legado foi passado a essa raça de ovelhas, principal preza dos antigos felinos. Depois da rebelião dos selvagens azuis, a região cresceu descontroladamente. Um misterioso templo de vidro foi erguido perto da entrada da cidade e ao seu redor, um mercado negro onde se podia encontrar de tudo. Esse comércio ilegal gera muitos conflitos com a guarda de Duo-La Neve. Todos os dias os soldados do Império matam criminosos em praças ou os levam para a capital e estes, nunca retornam. Mas e aquele templo de vidro? Suas vidraças cristalinas que o erguem desde sua base até seu topo, à meio quilometro de altura chamam a atenção de longe. O topo da torre do templo pode ser vista do mar, muitas vezes servindo até de farol, mediante a habitual neblina das águas rasas, já que o sol bate e reflete a luz. Pelo que se ouve, ali é onde administram as finanças do mercado. As forças desse magnífico prédio de vidro mantêm as tropas da capital afastadas, mesmo que os homens já tenham perdido parte do medo e agora freqüentam o mercado junto com monstros e selvagens.
Um galeão de guerra. O que será que uma garota, filha de contrabandistas mortos pelo Império, pretende fazer com um galeão de guerra? Era o que todos se perguntavam. Nontes era dono de quase toda a armada de Duo-La Neve. Mas aquele galeão de guerra era diferente e não era a toa que Mah demonstrava tanto interesse nele.
Como combinado, ao meio dia do dia seguinte, a garota estava no cais da oficina. A estalagem era tão grande, que cruzava o mercado e se instalava nas margens de um rio muito largo que cortavam aquelas terras. Era um caminho que facilitava bastante, já que as águas fundas permitiam o acesso tanto de pequenas barcas e galés quanto de grandes navios e galeões. A garota estava parada ali na beira do cais de pedra.
Nontes apareceu certo tempo depois, quando o Sol estava ainda mais forte e agora Mah precisava tapar o rosto com as costas da mão.
— Desculpe, estive almoçando.
Ela não respondeu. Ficaram ela e Mile ali olhando o rio passar vagarosamente até a garota perder a paciência.
— E então? Não vejo nada alem de água.
— Ah sim, me desculpe. — Nontes sacou uma pequena ripa de madeira, do tamanho de uma pena de corvo. — VISEK SÓLET TENEBROSA — disse o homem, com a ripa esticada em direção ao rio. Depois, recuperou a postura e guardou a ripa no robe amarelado. Mah continuava impaciente, mas sabia que com essas palavras, algo aconteceria. Poucos segundos depois, o chão começou a tremer, as águas se agitaram. A garota estava ficando cada vez mais surpresa e arregalara os olhos em direção ao rio. Algo estava tomando forma lá embaixo, no fundo das águas escuras. Então uma lança dourada emergiu. Seu cabo era negro. Continuou a subir e seu corpo se engrossava cada vez mais, até estar na circunferência de um homem adulto. Agora eram três lanças saindo da água, as outras duas eram bem menores e mais finas, e em seguida, mais duas, ainda menores e ainda mais finas. Agora já se via o casco, a popa e a proa, onde estava escrito Vento de Bess em letras douradas e gigantes.
Quando o navio estava ali, totalmente emergido e à vista de todos no cais, o sol já nem conseguia alcançar a estalagem, tamanhas eram as velas que se materializaram vindas de ventos negros. O casco era de madeira roxa e nobre, e antes de Mah perder a conta, pode ver que eram mais de cinqüenta canhões de ferro com a boca de fora nas portinholas abertas do colossal navio. A água ainda escoava casco afora, agora com menos intensidade. Era lindo. Lindo, magnífico e poderoso.
— Acho que vamos precisar de mais homens do que eu esperava – disse a garota.
— Este, minha querida, é o Vento de Bess, o mais poderoso galeão dos mares dessas terras mágicas. Ele pode te levar para o oeste em menos de um mês.
— Oeste? Não, não quero ir para aquelas terras problemáticas. Meus assuntos são aqui mesmo, nas Ilhas do Leste. Bom, vejo que cumpriu sua promessa. Mile vai te levar até a galé. Acho que o preço se compara, não? Se vender o que eu lhe trouxe naquele navio mercante lá no norte, ficará rico, muito rico.
— Não vejo o porque de você ter aberto mão de tal fortuna.
— Ah, Nontes, nem tudo é dinheiro. Minha vida tem outros propósitos enquanto a sua é apenas fazer fortuna. Bom, está feito. Agora... Poderia me fazer um último favor?
O homem teve receio de responder, mas acabou cedendo:
— O quê seria?
— Quero que equipe o galeão com arpões. Muitos, muitos arpões. E por favor, não faça perguntas. Muito obrigada, Nontes. Não sei o que faria sem você.
* * *
— Um dragão escarlate? Tem certeza de que não era um dos nossos?
— Nossos batedores estão certos disso General Youko. Os guardas nas torres falam a mesma coisa. Um dragão divino escarlate. Veio do Sul e rumava para o norte.
— Interessante. Está dispensado.
O batedor saiu ainda meio eufórico. Youko estava sozinho com seus relatórios em sua sala. A vidraça da janela estava fechada, pois lá fora no deserto fazia frio, e a torre era uma das mais altas.
Na sala, além da aconchegante lareira, quatro archotes estavam acesos, dispostos em posições estratégicas para iluminar a maior parte do recinto.
Os dias já não eram mais tão sufocantes. A cidade estava novamente protegida. A dinastia do sol guardava as muralhas e o Templo de Arafa, no centro da pequena cidade na região do Caminho dos Raivosos. Essas regiões, próximas da capital Pompéia, se resumem em extensos desertos.
Saber que um novo general está para chegar com uma tropa enérgica e preparada tranqüilizava os pensamentos de Youko. Levantou-se e caminhou até a janela. De lá, fitou a torre inimiga, tomada na tarde de ontem, com a bravura do General Horus e seus cavaleiros de lanças douradas. A bandeira da Dinastia do Sol estava agitada hoje. Os ventos frios da noite de deserto traziam maus presságios.
O sul enfrentava um período de guerra civil. A poderosa Dinastia de Lenço Preto costumava atacar as academias do norte, Pangea e Estrela de Fogo. Esse exército de monstros, que habitam o Sul acabou recebendo a declaração de guerra como resposta a um covarde atentado na academia Pangea, que, depois da resistência dos bravos Engenheiros Pangeanos, ou Soldados Engenheiros, se retiraram. Agora era a vez de o norte invadir o Sul. A Dinastia do Sol é a suprema autoridade da capital Dong Xuen, que representa todas as terras para lá. Também são os protetores da Estrela de Fogo e Pangea, por isso existe tamanha afinidade com seus alunos e mestres.
Ao mesmo tempo em que essa guerra, que hoje completa oito meses, se desenrola no Sul, o Império de Pompéia, antes a maior potencia econômica do continente, enfrenta uma crise terrível. Os desertos do Pantanal Proibido e Caminho dos Raivosos decidiram, cerca de dois anos atrás, aderir a um regime separatista. Estavam querendo ser independentes do império. Pompéia nada fez para impedir isso e agora, sem seus dois principais desertos, o império perdeu incontáveis minas de metais raros e preciosos. A Dinastia do Sol concordou em reunificar esses territórios ao Império Pompeano, mas este teria que ajudar a combater a Dinastia de Lenço Preto, fornecendo suprimentos, armas e homens. Acontece que o ultimo contingente armado que Pompéia enviou para assistir a dinastia, foi há meio ano. As novas tropas, recém formadas, estão para chegar, sobre o comando de um novo general, vindo de Dong Xuen.
Youko, Horus e Koga eram os mais renomados generais em operação no Sul. Por serem da Dinastia, já tinham ouvido falar num tal de Kyshme. Kyshme. Não é um nome muito comum.
Terminado um de seus relatórios, Youko rubricou seu nome com a pena de fênix, precioso artefato que dão aos generais e intendentes da sociedade, e saiu da sala com o papel na mão. A torre tinha uma escada no centro, que descia em espiral. Ao redor, as inúmeras salas, quase todas de homens de alta patente. Receber uma sala particular na torre era uma honra. Quase todo o exercito estava estabelecido no acampamento lá embaixo e nos incontáveis quartéis que construíram com essa finalidade. As muralhas também estavam lotadas, com arqueiros a cada posto de vigia.
Deu dois toques na porta. Ouviu uma voz vinda do outro lado da porta dizê-lo para entrar e obedecendo-a, entrou.
— Youko... Eu não... O esperava a essa hora. Pedi para que descansasse.
— Senhor intendente — fez uma reverência — eis o relatório pedido.
— Ah, o relatório. Essas bobagens burocráticas... Se não cobrassem isso nas sedes do norte, eu não faria um sequer. — disse tentando rir. — Youko, está carta acabou de chegar da torre. — disse puxando um papel de uma gaveta embaixo da mesinha de mogno. — Horus precisa de suprimentos. Será que pode levar duas carroças para lá?
— Claro senhor. — disse saindo.
— Ah, mais uma coisa. Koga andou a tua procura. Há essa hora deve estar nos Domos.
Domo é uma espécie de celeiro, só que muito maior feito para abrigar os gigantes. Ocupavam tanto espaço que eram construídos sempre perto das muralhas.
— Está certo. Vou atrás dele também. Boa noite senhor.
Ali estava uma total algazarra. Enquanto lá em cima, em sua sala privilegiada na torre tudo era sereno e silencioso, aqui embaixo era quase um inferno. As ruas da cidade eram bem iluminadas por altos postes de fogo amarelo, uma energia concentrada que deve ser manipulada manualmente para acender os archotes. Cavalos relinchavam, homens gritavam e gigantes eram domados. Era apenas a rotina do dia a dia nos Domos. De quando em quando, um gigante se estressava e se soltava das correntes, causando alguns danos. São precisos mais de vinte homens para acalmá-los. Também tinha alguns dragões domesticados e mansos, que às vezes se soltavam dos Riveros, as cabanas dos dragões, e voavam por ai assustando a população. Varias carroças estavam paradas no meio das ruas, mercadores passavam vendendo de tudo o tempo todo, cavalos corriam descontrolados e gigantes rugiam espantando os corvos dos mensageiros. Youko sentia-se perdido ali. O Bairro dos Domos era chamado de Zona da Ferragem. É uma comparação às barulhentas casas de ferragens e estalagens. Numa cabana perto do Domo Maior, Youko encontrou Koga, também escrevendo relatórios como se tudo ao redor fosse tão calmo...
— Koga. Soube que esteve me procurando.
— Ah, sim... Sabe, a noticia de que o cerco foi quebrado deve ter tido uma grande repercussão. Hoje cedo, duas trupes itinerantes chegaram à cidade. Isso é sinal de que as pessoas estão perdendo o medo do deserto. E, sabe, faz muito tempo que não saímos como homens para curtir vidas normais. Nosso intendente está liberando alguns homens para ir ao centro da cidade ver algumas atrações. Gostaria que fosse comigo.
Eis um comportamento interessante. Koga, um general durão, quer passar a noite na cidade vendo atrações circenses. Deve estar com saudades da família. O general tinha duas filhas pequenas, uma jovial mulher e uma casinha nas lindas montanhas do norte. E ainda tinham um pequeno Doug Ding de estimação.
Koga continuou a escrever freneticamente no seu papel amarelo, quando parou de repente e deitou sua pena de fênix. Deu um suspiro forte e se levantou. Youko continuou sem reação e assim permaneceu quando foi abraçado por Koga.
Os alazões trotavam sem pressa alguma. A areia perto da cidade era rasa e a terra estava apenas a um palmo abaixo dela. A lua parecia gostar da torre negra. Desde que a torre móvel foi posta ali, todas as noites se escondia atrás dela, na sua forma mais cheia e mais bela. O campo de terra e areia, agora com menos corpos e monstros abatidos, estava azulado, iluminado pela serena luz da lua. O cheiro de sangue e de morte já não pairava mais naquele terreno, onde, pouco tempo atrás, estavam milhões de feras negras sedentas. Mesmo assim, pra onde quer que olhem, veriam o reluzir de luz em aço, das armas caídas e abandonadas no campo de batalha.
Chegaram à torre, onde o cheiro de pólvora era forte. Horus ordenou do terceiro andar que abrissem os portões, e assim foi feito. Os Generais entraram, seguidos por três carroças ordinárias, carregadas de suprimentos.
Ali dentro fedia. E como fedia. Era um cheiro empesteado de cadáveres. As paredes ainda estavam pichadas de sangue, o chão estava negro e ainda havia corpos em alguns corredores.
Como sempre, desobedecendo a ordens Horus.
— Não pretende limpar este lugar? — disse Youko.
— Se o quer limpo, faça você mesmo. — respondeu Horus. — Estamos a dois dias vivendo de pão e ovos. Trouxeram comida? Armas?
— Está tudo na carroça. — Koga notou que não deviam estar passando bons momentos.
— Ótimo. Vou cuidar para que preparem uma seita agora. Fomos vitoriosos e ainda não cumprimos com a tradição.
A seita dos vitoriosos era uma antiga tradição da Dinastia, onde os soldados comemoravam as vitórias comendo e agradecendo ao Sol e a Bess.
— Vão ficar para comer? — continuou Horus. — Tudo bem, não importa. Venham comigo, precisam ver a vista daqui.
Para Youko, a maior torre do deserto era a do Templo de Arafa. Mas ainda não havia subido no topo daquele prédio negro. Estava no topo de uma duna colossal. O mar de areia se erguia de tal forma naquela região que parecia um morro. Não se via do outro lado e no seu ponto mais alto, estava a torre móvel. Dali de cima o grupo pôde ver todo o restante do deserto. A lua os iluminava de tão perto que Youko esperava ouvir seus sussurros. E como o deserto estava limpo ali. Podiam acompanhar a extensão da areia até o horizonte.
— Se olharem fixamente para lá — disse Horus, apontando — poderão ver as montanhas do abismo. Abismo da Calmaria... A última fronteira do Sul. Nossa última guerra será travada lá. Esse lugar... Ficar olhando me dá calafrios.
— Nossa última guerra? — perguntou Koga.
O general da torre mudou o olhar e agora se virou de costas, apoiando os cotovelos no muro de pedra do terraço da torre. Fitou a lua, seus olhos brilhando.
— A dinastia de lenço preto precisa ser... Exterminada. Não adianta fazer pactos, monstros não respeitam as leis dos homens. — esse discurso era muito familiar para os três generais da dinastia. — Não foi isso que Bei Si disse quando ordenou a invasão às Terras das Ilusões e o extermínio dos Lazulis? Quanto tempo já se passou? Cinqüenta? Sessenta anos? Não importa.
— Os lazulis não queriam guerra. Agora é diferente. Essas... Coisas... Elas lutam até o fim... E estão em maior numero. Não vejo possibilidade de uma invasão ao Abismo. – contrariou Youko.
— Ainda sim, é isso o que nos será ordenado, podem apostar. Assim que o Exército Imperial de Pompéia chegar com o tal general, deixaremos Arafa e rumaremos para o Abismo. Essa é a nossa política de guerra. – prosseguiu Horus.
— Acabar com toda uma raça, em nome dos homens.
—Nem tudo é perfeito, Koga. Nem mesmo nossa Dinastia. Agora não importa mais. Soube que algumas trupes chegaram à cidade hoje. Estão a fim de curtir nossos últimos dias?
— Não seja pessimista, Horus. Essa não será a batalha final. Vamos ganhar.
O general da torre riu suavemente.
— É mais do que certo de que vamos ganhar.
Ele sabe de algo. Aliás, sabe de muitas coisas. Abismo da Calmaria... Não é um bom lugar para morrer.
* * *
Enfim, um novo dia. Um novo Sol sobre o céu azul de Dong Xuen. De um dia para o outro tantos boatos surgiram nos cinco Impérios... Um Lazuli confrontou o capitão de proteção de Dong Xuen. As pessoas ficaram pasmas por todos os cinco cantos. Quase sempre caiam na gargalhada quando contavam de sua humilhante derrota. E um novo general estava para chegar a Pompéia, com um exército novo em folha. A população acordou com uma nova esperança de sair dessa crise horrorosa. E como os boatos se espalham rápido, muito rápido. Um dragão divino escarlate muito maior do que o normal foi visto em varias regiões do sul, voando para o norte.
As pessoas estão ficando preocupadas. Tantas coisas estranhas têm acontecido... Demônios e Lazulis, dragões solitários, crises e guerras... Algo grande está para acontecer. Algo que vai mudar a vida como os homens conhecem. Esse era o tipo de pensamento que dominava a mente das pessoas nas grandes e pequenas cidades.
Dessa vez a praça amanheceu sem nenhum corpo pendurado em postes. Tudo parecia ter voltado ao normal depois do confronto entre o Lazuli e o Capitão de Proteção, pelo menos em Dong Xuen. Mas algo ainda intrigava parte da população: o misterioso Sargento Zero. Esse homem estranho, desconhecido, tem comandado a Guarda Imperial à mão de ferro. Intolerante e radical fechou todos os bares e tavernas da cidade, exceto uma: A Antiga Taberna. Natako é um homem teimoso. Não cederia. Quando falou que era apenas sobre seu cadáver que a taberna seria fechada, não estava brincando.
Não chovia em Dong Xuen fazia três semanas, quando o clima fez seu desjejum naquela tarde. O céu estava totalmente nublado e chovia de fininho no centro da cidade. O comércio ainda não tinha sido totalmente aberto, pois a virada do tempo pareceu desanimar as pessoas. A antiga taberna estava silenciosa.
Natako polia um copo de vidro atrás de seu balcão. Andreza estava sentada em cima de uma das mesas escondidas nas sombras do recinto, comendo uma maçã. Nenhum dos dois dizia uma palavra. Havia um silêncio, uma quietude oca e repleta de ecos, feita das coisas que faltavam. Se houvesse vento, ele sussurraria por entre as árvores e faria a taberna ranger em suas juntas e sopraria o silêncio estrada afora, como folhas de outono arrastadas. Se houvesse a habitual multidão, ou pelo menos um punhado de homens na taberna, eles encheriam o silêncio de conversa e risadas eufóricas, do burburinho e do clamor esperados de uma casa em que se bebe até nas horas sombrias da noite. Se houvesse música... Mas não, não havia música. Não havia nenhuma dessas coisas, e por isso, o silêncio persistia.
Esse era o silencio do homem que espera a própria morte.
Estava cercado por seus próprios suspiros de frustrações, um conjunto de mágoas que vieram à tona nessa manhã, trazida junto com sua consciência ao despertar, e esta junto com a alvorada.
Os minutos se transformaram em horas e os segundos em minutos. O tempo corria tão devagar. E então, finalmente chegaram. Eram apenas duas horas da tarde. Dois vagões negros puxados por bois dourados pararam em frente à entrada da Antiga Taberna. O local abrangia todo o quarteirão da Avenida Imperial, era a maior, mais agitada e mais lucrativa taverna da cidade.
— Suma daqui — disse o homem do balcão para a moça escondida nas sombras. — Vá. Já está na hora.
E então, como resposta, Natako ouviu um sussurro nas sombras:
— Que Bess tenha piedade de sua alma. Ainda nos reencontraremos, meu amigo, sei disto. — sua voz acalmava o coração do dono da taberna. E então, um sopro gelado percorreu toda a sala e agora a garota de cabelos negros já não estava mais lá.
Dos vagões, duas dúzias de homens armados com mosquetes desceram. Todos trajando o uniforme da Guarda Imperial. O primeiro a entrar na taberna foi o próprio Sargento Zero, vestindo um sobretudo negro, com os botões de avelã grossos fechando o casaco por completo. Estava frio lá fora. Junto com o sargento estavam seus auxiliares, Yohan, Mota e Junior, todos com a mesma roupa.
O capitão da guarda segurava um panfleto enrolado. Desenrolou-o na frente de Natako.
— Foi advertido durante toda a semana para fechar a hospedaria. Sabe que agora, não será admitido qualquer desrespeito às leis do Império do Sol. Esta é a última chance que estou lhe dando. Entregue as chaves da taverna e saia, ou seguirei minhas ordens e ordenarei a estes homens que atirem contra o senhor.
— Eu dei meu sangue para moldar este lugar. Será com ele que o tirarão de mim. — cuspiu na cara do Sargento logo em seguida — Verme imundo.
O capitão olhou seus auxiliares nos olhos e assentiu com a cabeça. Olhou de volta para Natako, enrolou o panfleto e virou-se. Saiu silenciosamente, os homens ajoelhados em fileiras com os mosquetes apontados no dono da taberna. A chuva apertou. Quando passou pela porta, sussurrou no ouvido de Yohan, que ali estava.
— Fogo.
Ouviu mais de vinte disparos quando já estava sentindo as gotas da chuva, do lado de fora da taberna. Subiu os degraus do vagão e quando já estava em seu acento preferencial, acendeu um shyroio, uma espécie de fumo legalizado no norte.
— E assim terminam os tempos sombrios — sussurrou enquanto estava sozinho — espero que acreditem nisso.
Autor(a): Selenium
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Prólogo. Sonoras gargalhadas ecoaram pelo estreito corredor de pedra. A umidade tomava conta do lugar, o musgo crescia nas paredes de tal forma que nelas a água escorria em filetes. - o bar Ou Yang? Ah, como fui subestimá-lo... - agora não importa mais. O garoto foi libertado. Sentado numa poltrona de veludo vermelho ao lado de uma ...
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