Fanfics Brasil - 1 - Tempo Fechado, Uma Nova Vida se Aproxima Encontro - Legado

Fanfic: Encontro - Legado | Tema: Medieval


Capítulo: 1 - Tempo Fechado, Uma Nova Vida se Aproxima

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Acordei, sentindo-me o garoto mais sortudo do mundo.



             Olhei pela janela, através da qual as nuvens ocupavam o céu de minha grande cidade; pequenas gotas batiam no vidro, fazendo aquele barulho agradável de chuva de manhã. Vesti-me todo de preto, da calça ao casaco com capuz. Desci as escadas animado, e do último degrau saltei até o chão. Entrei na cozinha, dando bom-dia a Morris e a Tyke. O primeiro preparava com esmero meu café da manhã e o segundo balançava o seu longo rabo branco ao me ver acordado. Morris não vestia roupas de servo, apesar de ser um. Também não vestia roupas de nobre, apesar de meu pai insistir. Ele tinha cabelo grande, já grisalho, a franja beirando os olhos negros. Ele não era alto nem baixo, como também não era magro nem gordo. Por mais idade que aparentasse, ele ainda podia fazer muita coisa. Já Tyke era um cachorro enorme, branco, e com as orelhas mais aveludadas que já vi. Ambos pertenciam à família há mais tempo que eu pudesse me lembrar. Nunca tive mãe.




             Mas isso não importava naquele dia. E não importaria no próximo dia...


− Aqui está, Faon. – Ele me estendeu o prato com pão, ovos e uma caneca de leite, que consumi rapidamente na sala. Sua voz vinha carregada de um sotaque que nunca ouvi em lugar algum de Astranimus. Mais jovem, talvez ele conquistasse muitas mulheres.
               Embora nossa casa fosse grande, até ostensiva, eu não diria que meu pai era rico. Afinal, ele não contava com todos os possíveis luxos, e certamente não tinha o gosto refinado, porém exagerado e até ridículo dos ricos. Apenas primava por uma vida boa, além de possuir alguns artigos de decoração que passariam por exagerados até mesmo pelos mais excêntricos nobres. As paredes eram de mármore, presente em toda a cidade. Mas não qualquer mármore: ele era mais negro do que ébano; e olhe que já vi os dois de perto e lado a lado para comparar. Havia uma grande lareira para espantar o frio que essas paredes produziam. Uma tapeçaria mitológica, entre vários outros adornos, reproduzia de maneira estupenda a criação do nosso mundo. Velas por todos os cantos... Meu pai adorava velas. Falando nele...


− Onde está meu pai? – perguntei enquanto terminava de me arrumar para sair na chuva daquela manhã.


− Disse que ia preparar algo. Imagino que tenha a ver com o seu renascimento, amanhã. – Morris disse, com a sua habitual formalidade.


− É claro que é... Meu pai sempre faz alguma coisa assim. Enfim, eu quero esticar as pernas um pouco, vou caminhar pela praia.


− Volte para o almoço – ouvi-o ainda dizer, conforme eu saía pela porta lateral, que levava até a estrebaria, onde ficava o meu pônei. Ele era a minha montaria pela cidade, enorme demais para que qualquer um pudesse andar a pé. Mesmo os mais pobres possuíam cavalos, ainda que sem raça. Infelizmente a chuva me impossibilitava de usá-lo, mas eu gostava de vê-lo todo dia mesmo assim.
            Uma leve névoa ocultava boa parte da cidade, impossibilitando-me de apreciá-la como de hábito. Caminhei com alegria pela calçada larga e escorregadia, pensando em quanto tempo demoraria até chegar ao meu destino a pé. Meu pai só me daria um garanhão quando eu fosse mais velho, ele me disse.
            Eu adorava esse clima úmido; por mim, se não houvesse o risco de adoecer, ficaria até nu na chuva. Então, dirigi-me até o meu lugar preferido em toda a cidade, mesmo naquele tempo. Na verdade, a chuva talvez o fizesse ficar mais bonito. O único tempo que eu não gostava era o nublado: nem sol, nem chuva... Associava-o à espera por algo, como se o clima estivesse prestes a anunciar alguma coisa, escondida nas nuvens.


− Ei, plebeu!


Essa voz... Virei-me na direção de sua fonte e fitei o filho mimado de uma família nobre aparentemente íntima do nosso reinante. Do alto de sua sacada, os olhos da cor do mar profundo me encaravam. Suspirei.


− O que é agora, Roderick?


Roderick Maynor era um garoto da minha idade, cuja arrogância não tinha limites. Ele fora educado para tudo, menos para ser uma pessoa de caráter.


- Só estou lembrando-o de sua condição de vida, Faon! Você sabe bem que seu pai ganhou um título de nobreza do regente faz muito tempo, não sabe? - Ele apontou o seu nobre dedo para mim. – “Me dizes com quem andas, e falarei quem és”.


Eu senti o meu rosto ficar vermelho, mas me reprimi o máximo possível. Não ia dar ouvidos para aquele metido a príncipe. Sorri.


− Por isso você acha que é a melhor pessoa do mundo, mas não é. Por sinal, cuidado para não se molhar com a chuva, ou você acabará sobrecarregando os seus empregados se eles tiverem que te dar outro banho.


Voltei a rumar o meu trajeto, satisfeito e sem dar atenção às pragas que Roderick, cada vez mais longe, soltava, impotente e isolado em sua sacada.
            Nobres. Pessoas como Roderick os faziam assumir uma péssima imagem. Lembro-me quando meu pai decidiu que era hora de eu começar a fazer jus ao meu nome, e me levou para conhecer as várias famílias de fidalgos e vassalos que compunham Astranimus. Eu me lembro de uma das mãos apoiada em minhas costas,  empurrando-me suavemente de encontro a pessoas com o dobro da minha altura. Algumas eram gentis, outras ficavam surpresas comigo, e outras praticamente me ignoravam. Até que o meu pai me levou a um lugar ao qual eu nunca fora antes, mas, com certeza, vira de longe: uma torre enorme, austera, que se destacava em direção ao céu.


“Venha, filho, vamos nos atrasar.” – Com sua voz grossa e firme, não havia rodeios. Estávamos trotando em seu eqüino negro, ao meio-dia.


            “Mas eu não quero conhecer mais nobres! Eles são chatos.” – Cruzei os meus braços.


Meu pai riu e olhou para mim:


“Não se preocupe, esse é diferente. Deve ser o único que eu gosto de verdade. Acho que você sentirá o mesmo.”


Aquilo continuava sendo chato para mim, e eu continuava sendo forçado.


            Os guardas, vestidos inteiramente de branco, exceto por um pentagrama vermelho com um ponto da mesma cor no centro, na altura do peito de sua vestimenta; não esboçaram reação alguma quando meu pai amarrou seu enorme cavalo em uma estaca do lado deles e empurrou as grandes portas duplas para adentrarmos. Dois corredores davam a volta na torre, sendo que um sinalizava um caminho reto. Fomos por esse. Não havia janelas nessa passagem; assim, conforme a luz natural abandonava o interior, tochas começaram a aparecer. Chegamos a mais portas, que meu pai foi abrindo uma a uma. E, finalmente, entramos no salão.


             Nenhum fidalgo que eu visitara antes conseguiria atingir a majestade presente nesse aposento. Não havia janelas e, sim, fendas, que deixavam toda a luz do sol entrar sem obstáculos. Como se não bastasse, ao ver o homem, e o trono por detrás dele, quase caí para trás.


             O trono, de prata, não muito alto nem muito baixo, simulava modéstia. Como se alguém desse nível pudesse ser modesto. O homem sentado nele vestia um longo manto dourado, com o mesmo símbolo dos guardas; e tinha o cabelo castanho desarrumado. Ele não parecia nem jovem, nem velho. Como se estivesse na idade perfeita entre eles. E então me surpreendi com a sua guarda, como se este homem não tivesse nada que eu já havia visto.
            Havia cinco deles. Pelo que eu logo percebi, eles representavam cada um dos Deuses, pois cada um portava uma cor diferente sobre seus tabardos: vermelho, roxo, azul, verde e branco; todos ainda com o mesmo símbolo, no entanto da cor cinza. Mas cada um vestia algo completamente diferente por debaixo dele, e em cada um deles um ponto da estrela estava destacada em dourado. O guardião de vermelho vestia um capa com capuz, junto de uma armadura leve de couro escondida: eu podia ver pela forma como o tecido envolvia seu corpo. O homem de azul vestia um simples manto preto. O de verde vestia uma cota de malha, e segurava uma lança mais alta que ele ao seu lado. O de roxo usava uma vestimenta estranha, marrom; e podia ver uma lâmina curva envolta por madeira, afivelada ao seu cinto. E finalmente o branco que ostentava uma enorme armadura de aço que escapava para além do tabardo, portando uma grande espada embainhada e um escudo na outra mão.
- Os Enviados. – Sussurrou o meu pai ao meu ouvido.
- Representantes de cada reino como um ato de fé para o nosso regente. Os seus maiores guardiões e amigos. Darão a vida para protegere-lo. Cada um veio de um Grande Reino diferente, exceto o de branco. Ele também é o capitão da guarda da cidade.
            O regente nada falou por um momento. Ele se levantou, caminhou em nossa direção a passos vigorosos, e apertou bem o meu pai com um grande abraço.
- Ah, até hoje não acredito como esse homem pôde recusar a minha oferta.
Nunca vi alguém como ele. Pelo menos ele ainda trabalha para mim, e ainda vem visitar-me. – Sua voz era serena, no entanto você podia sentir autoridade nela. Como se ele fosse um líder nato.
- E você deve ser Faon Karino, não é? – Ele me olhou com seus olhos negros, me observando com demasiada paciência. Quase como se estivesse me testando. Mas não me importava. Nunca havia me sentido tão bem na presença de alguém. ”
            Atravessei a ponte, deserta. Ela era reta, larga e alta. Exceto pela última característica, boa parte da cidade não era assim. Enquanto parte da cidade ora era coberta pelo mármore negro, seguindo o relevo; parte não era, ou parte ainda foi arrasada para construir calçadas nas quais cavalos poderiam ser esporeados. Caso contrário nada nunca seria feito em tempo hábil por lá.
            Ainda estava um pouco cedo, e mesmo assim com esse temporal, e comecei a andar durante algum tempo na Praia de Asven, onde a névoa não alcançava, onde eu poderia ver toda a beleza de lá. Fiquei a observar o mar, as ondas, a chuva. A areia fofa sob os meus pés, a espuma branca inundando as águas, o movimento que as agitava ainda mais, a chuva e o vento bagunçando ainda mais aquele caos tão pacífico que é o mar. Depois de um determinado tempo hipnotizado observando e caminhando pela praia, decidi que era hora de voltar.
             O tempo ruim continuava, porém à medida que eu avançava por entre as cabanas, eu passei pelas casas de meus amigos, que saíam pela porta naquele momento. De uma porta saía uma grande família: quatro crianças, com seus pais atrás delas, lhes avisando para ter cuidado, como se era de esperar. O casal era o mais bonito que já vira em toda a minha vida: sua beleza era impecável, e me alegrava vê-los sorrindo independente do que acontecesse. Seus nomes me faltavam á cabeça, mas eu sempre acenava para eles, e eles acenavam de volta, simpáticos, sempre sorrindo. E como era de se esperar, isso se passou para o restante da família: os gêmeos, Bernardo e Belfort Genum, que corriam á frente. Seus cabelos loiros brilhavam na cor do sol, mesmo que esse último estivesse escondido atrás das nuvens; assim como seus olhos, tão azuis quanto o céu límpido, mimetizando a aparência da mãe. Isso costumava arrancar elogios e risadinhas de quaisquer mulheres, seja garota ou senhora, que os visse, principalmente de sua mãe. Não que isso importasse, já que eles eram os mais novos dos quatro irmãos, tendo apenas seis anos de idade. Além do mais, eles podiam ser tudo menos “fofinhos”: eles eram muito agitados e tropeçavam constantemente. Seu irmão cinco anos mais velho seguia atrás, e ao contrário dos gêmeos, ele era idêntico ao pai: austero, seu cabelo castanho da mesma cor dos olhos grandes, esvoaçava ao vento. Seus cílios eram enormes. Porém, para a idade, Jaime estava crescendo muito rápido, e batia em mim de altura. Como ainda não estava desenvolvido, acabara ficando magricela, mas tampouco isso lhe incomodava. Seus lábios finos exibiram um sorriso a me ver. Como os irmãos, ele gostava de pregar peças e não parava quieto. E finalmente, Camélia. Ela era um anjo... Quase um anjo, com suas longas e encaracoladas mechas castanho claro e seus olhos grandes brilhantes como safiras. As feições do rosto eram perfeitas: o nariz fino, reto; a boca, ligeiramente carnuda; e o seu cabelo era uma onda de madeixas como nenhum outro. Por mais bonita, simpática, sincera que ela fosse, e tantas outras mais coisas que eu poderia dizer dela, a única irmã Genum e a mais velha dos quatro se irritava muito facilmente. E quando se irritava, era para valer. Você definitivamente não queria estar na frente dela numa hora dessas.
             Bernardo veio correndo até mim, porém escorregou numa poça e teria se machucado se eu não o tivesse segurado. Ele olhou para cima, agradecido. Eu podia distingui-los porque Belfort não gostava de cortar o cabelo... A diferença era perceptível, porém pequena. Se isso continuasse, no entanto, eles aparentariam bem diferentes mais velhos.
- Oi Faon! – Cumprimentou Jaime.
- Olá. - Acenei para todos eles, sorrindo.
- O que nós vamos fazer hoje, Faon?
- É, é, fala! – Os gêmeos foram para bem perto de mim, me encarando com olhos de súplica.
- Está chuviscando, então ainda tenho que pensar. Mas não quero brincar na lama, fiquei muito sujo da outra vez.
- Humph, garotos. Espero que a Hana chegue logo. Se eu for ficar na chuva quero pelo menos fazer algo de bom. – Camélia era um ano mais velha que eu, aproximadamente, e já estava ficando impaciente. Mas andando por aí, logo encontramos nossos dois amigos restantes saindo de suas casas.
             Um era Gabriel. Ele tinha a minha idade, e era um pouco mais alto que eu. Ele era ruivo e tinha olhos verdes bem claros. Logo que me viu, gritou:
- Ei, Faon! Pensei que você não fosse sair nessa chuva, de tão fresco que você é! – Bem, eu era um pouco fresco... Às vezes. Mas isso não me impedia de sair na chuva. Depois de se juntar á nós, fomos até a cabana de nossa última amiga e ficamos esperando ela sair.
             Como eu, ela já renascera treze vezes... Bem, agora teriam quatorze anos desde que nasci, mas mesmo assim; Hana podia não ser tão bela quanto Camélia, mas era bonita à sua própria forma. Ela era serena e simpática: seus olhos da cor do mel poderiam derreter o coração de qualquer pessoa que encontrasse, e seus longos e lisos cabelos morenos deveriam ser tão macios que... Eu nunca tive a chance de mexer no cabelo dela, na verdade, mas...
             Logo eu e os garotos corríamos por entre as casas, brincando de pique pega, luta, e qualquer outra coisa que viesse ás nossas mentes; enquanto que as garotas apenas viam e riam. Há um ano elas estariam correndo conosco, mas ambas... Mudaram. Como elas gostavam de dizer, até mesmo esbanjar nos nossos rostos, elas “amadureceram”. E só por causa disso elas não poderiam brincar, como nos velhos tempos?
- Sabe o que seria legal? – Paolo disse, depois de um longo tempo de silêncio, após desabarmos de cansaço debaixo de uma árvore, onde estava seco. Tínhamos acabados de lutar arduamente usando galhos longos e um pouco retos, fingindo que eram espadas mesmo.
- Aprender a lutar, sabe. De verdade! E enfrentar esses monstros que tem por aí.
- Você nem sabe se eles existem, Jaime. – Camélia já intervinha, sendo estraga-prazeres.
- É claro que existem. Eu acredito que existem. E Faon sabe tudo sobre eles, não é Faon? – Ele olhou para mim com expectativa. Depois de refletir um pouco, eu disse de forma tenebrosa:
- Já lhes contei as lendas sobre os vampiros?
- Já.
- Um milhão de vezes Faon! – Os gêmeos concordavam em algo, para variar. Sempre o fizeram e eu diria que sempre irão fazê-lo
- Mas não nos importaríamos de ouvir de novo, não é Jaime? – Mas foi Gabriel quem respondeu:
- Claro que não. – E sorriu, olhando para mim e depois para Hana, que nada percebeu.
- Eles são criaturas da noite, sorrateiras e rápidas como uma raposa em fuga. Dizem que são pálidos como a lua, que são mais fortes que muitos homens, e que o sol lhes era inimigo. Mas o principal... – Comecei a chegar perto dos gêmeos, mexendo as minhas mãos como garras.
- É que eles drenam o seu sangue! – Os gêmeos gritaram, assustados, apesar de já terem ouvido a história muitas vezes, como eles mesmos disseram.
- Você precisa assustá-los assim Faon? – Soou a bela voz de Hana, que mexia numa mecha com os dedos.
- É divertido. Não é, Gabriel? – Ele concordou com a cabeça, enquanto continuava rindo dos garotos.
- Eu sei que não seriam páreo para mim, porque eu sou sensacional. - Usei minhas mãos como travesseiro, atrás da cabeça, e estiquei minhas pernas, numa posição indisputável. Gabriel se levantou.
- Sensacional, você? Conta outra. Eu sou sensacional. – Ele começava a se achar... Não muito diferente de mim. Decidi me levantar também.
- Ah é? Aposto que você nunca conseguiria matar um vampiro.
- Tampouco você.
- Parem vocês dois! Vampiros nem existem. – Encerrou Camélia, para variar. Á essa altura, minha barriga começou a roncar.
- Estou com fome. Depois do almoço vocês querem ir ver lutas lá na Arena?
- Não posso. – Jaime reclamou, desanimado.
- Também não. – Gabriel olhou para baixo. - Tenho que ajudar os meus pais. - Eu não tinha o mesmo problema que os outros tinham, mas eu preferia não tocar nesse assunto. O pior era que mesmo trabalhando para a família de Roderick, os pais Genum ainda precisavam de ajuda, apesar de ser o melhor que acharam para os seus talentos. No entanto, o herdeiro dos Maynor me lembrava sempre como era humilhante ter os pais de seus melhores amigos ao seu dispor. Bem, ele pensava que era humilhante. Já eu não me importo mais.


- Tudo bem então. Vejo vocês depois. – Algo, porém, me dizia que eu não viria os meus amigos tão cedo. Não que eles não fossem ótimos amigos, mas... Ainda sim, às vezes eu pensava que nenhum deles me entendia de verdade. Nem mesmo Gabriel. Que ainda por cima, gostava da mesma garota que eu... Parei de pensar nisso, não porque queria não pensar mais, mas realmente não pude. Estava começando a doer a barriga.


             No entanto, senti alguém segurar minha mão. Camélia.
- Já vai? – Eu me virei e ela estava fazendo beicinho para mim. Eu realmente não conseguia entender. Ultimamente ela se portava assim quando ficávamos à sós: Conversava comigo em particular, emanava um tom encantador á sua voz... Ela era muito bonita, mas aquele charme não funcionava comigo. Não sentia nada além do sentimento de amizade por ela.
- O que é agora?
- Eu quero ficar um pouco com você. – Ela me abraçou. Ela estava muito quente, como era de costume. E ainda assim... Eu a abracei de volta. Era algo inegável. Mesmo que eu tivesse apenas a melhor das intenções, eu não me controlava o suficiente para ser frio e cortá-la fora. Era por isso que ela insistia nisso.
- Eu realmente tenho que ir agora, tudo bem? Amanhã eu falo com você. – Ela acenou com a cabeça e largou minha mão. Virei-me em direção à ponte e comecei a andar para lá. Quando pisei no mármore negro, suspirei. Eu ainda teria que resolver isso alguma hora.
            Era uma longa travessia andar por aquela cidade, pois não era qualquer cidade. Com a fome então, ela parece ainda maior. Astranimus era tecnicamente uma Própria Cidade, mas servia principalmente como capital de Requin, nosso mundo, e era tão gloriosa quanto o título. A névoa havia sumido completamente até então, então pude ficar observando e me encantando com minha cidade natal, uma vez mais, antes da minha barriga desviar minha atenção de novo.
              Atrasado, comecei a correr com cuidado pelas vielas molhadas e negras até a minha casa. Eu vi as ruas se agitarem ao meu redor, conforme as pessoas se preparavam para começar o seu dia, apesar da chuva. Mas havia um ar de preguiça no ar, talvez imposto pela água que caia suavemente do céu. Isso explicava porque os cidadãos estavam saindo de casa tão tarde...
              Morris e Tyke, eternos como a moradia, continuavam lá, mas meu pai ainda não havia chegado.
- Pelo visto ele deve estar preparando algo bem grande, se ele não voltou até agora. – Disse, enquanto meu velho amigo concordava com um menear de cabeça ao servir a refeição. Ele era para ser apenas um criado, mas era como se fosse um irmão do meu pai, ajudando na casa, em troca de residir lá. Ele olhou para a minha roupa, um pouco suja de terra, e fechou os olhos, suspirando.
               Tyke, enorme como um tigre branco, pôs a cabeça em cima da mesa, e é claro, perto de meu prato, lambendo os beiços, e olhando para mim insistentemente. Meu pai o havia dado para mim depois de reclamar de que eu ficava muito sozinho, e depois do todo esse tempo com ele, eu simplesmente adoro o meu cachorro agora. Geralmente passeio com ele todo dia, mas hoje estava chovendo, não queria que ele molhasse as patas. Não que não molhando as patas o impedia de sujar, ou até destruir a casa uma vez ou outra. Cortei um pequeno pedaço de carne e dei para ele, quase devorando minha mão em busca do petisco, e voltei a comer. Boa comida, como sempre. Apesar de termos Morris, meu pai não era exagerado, ainda que mantendo certos luxos. Mas, novamente, ele não fazia o tipo dos egocêntricos cheios de dinheiro. As vezes me pergunto o que ele fazia para ganhar tanto dinheiro, a ponto de ser condecorado pelo nosso próprio reinante. Ele só me dizia que trabalhava para a corte, apesar de não fazer parte dela, mesmo sendo um fidalgo. Fidalgo... Isso definitivamente não combinava com o meu pai.
                Depois de terminar de comer, saí novamente para a ilha de Astra, para ver lutas de pugilismo. Eu preferia o Torneio Escarlate que começaria depois do meu aniversário, em algumas semanas, para celebrar a vinda do verão; eu pedi para o meu pai para ir ver, mas ele disse que estaríamos ocupados.
                 Enquanto eu caminhava, continuei a fitar a beleza natural ao meu redor. Todas as ilhas eram belas a sua própria maneira, mas eu ainda preferia Asven. Astra, no caso, era famosa pela sua grande variedade de plantas, principalmente árvores, que vinham pelos ventos de Monbrevis. De todas as “ilhas”, era ela a única conectada com o restante desse continente, mesmo que a maior parte do restante do reino estivesse no outro lado do mundo.
                 Jab, jab, direto, jab, cross, jab e finalmente um swing, em cheio. O lutador profissional espancava o amador, e a Arena gritava a cada golpe. Ali, a cidade era transformada em apenas uma platéia enlouquecida pelo sangue que caía dos poucos corajosos que entram na disputa. Eu, porém, permanecia apático, observando as lutas e os pensamentos e estratégias por detrás das mentes de cada pugilista... O que é estranho, para a minha idade. Pelo menos é o que eu percebo quando eu vejo Gabriel ou Paolo. Mesmo que eu brincasse com eles todo dia, eu sentia que não era a mesma coisa. Voltei a pensar como eu poderia ser solitário às vezes...
                  Nunca fui á escola. Meu pai me ensinou tudo que eu sei. Apesar de que prefiro isso, eu acabei ficando muito isolado, e com isso, uma personalidade tímida, fria, e até calculista. Mas quando meu pai brincava comigo, principalmente na praia, eu ficava... Normal. Alegre, com um brilho nos olhos capaz de enfrentar tudo de frente.
                  Anoitecendo, eu me levantei das arquibancadas, conforme o interlocutor gritava o encerramento das exibições do dia. Sai da Arena, e olhei ao meu redor. A chuva havia parado, e a noite havia clareado, dando lugar ás estrelas, que inundavam o céu, num horizonte sem lua alguma. Agora ambas estavam quase cheias, então deveriam logo aparecer. Apesar disso, adorava olhar para o céu estrelado e imaginar o que cada um daqueles pontinhos brilhantes que me inspiravam a fazer tantas coisas significam.
                 Atravessei a ponte, e comecei a caminhar para casa, já cansado de tanto pensar. Amanhã era, afinal o grande dia. A cidade ainda fervilhava á essa hora, e as tavernas estavam lotadas. Bardos cantavam histórias de guerras passadas e romances proibidos, e trabalhadores brindavam suas canecas em memória ao glorioso passado. Ás vezes, mulheres me lançavam olhares perversos, paradas na frente de bordéis. Meus pêlos da nuca eriçavam toda vez que me encaravam daquele jeito, mas logo passava. Com toda aquela balbúrdia, acabei mudando meu rumo, ao invés de simplesmente ir direto para casa. Ainda estava meio cedo, afinal de contas.
                  Havia acabado de ir por outro caminho quando um soco me atingiu em cheio. Levei minha mão ao meu rosto instintivamente, sofrendo com a dor. A sorte é que não havia sido acertado no nariz, e nem estava sangrando. Olhei para frente e o vi: Roderick Maynor, com o seu cabelo moreno e curto escondido por debaixo de um capuz; e seus dois amigos, também fidalgos: Baltazar Reannor, um rapaz de cabelo castanho e olhos negros e que seguia o convencido por todos os cantos; e Simeon Krollos, mais velho que nós, como sempre quieto e imutável. Porque aquele garoto quase homem de longos cabelos negros e olhos cinzentos como o céu pálido de hoje gostava da companhia de Roderick, eu não sei.
                  Eu o encarei por um momento, sem medo.
- O que você quer agora, Roderick? - Ele apontou para mim.
- Você me desonrou Faon. E agora, você paga. - Ele me deu outro soco no rosto, e um na barriga. Dobrei-me sobre a barriga, recuando um pouco. Ele tentou me bater novamente, mas finalmente pude botar em prática o pouco do que vi na Arena: bloqueei-o e lhe esmurrei no nariz. Ele gritou, pondo as duas mãos no rosto, fitando-as se mancharem de sangue, para então voltar a me encarar com mais raiva ainda.
- Baltazar, pegue-o.
             Mesmo sendo mais novo ele já era do nosso tamanho. E ao contrário de seus “amigos”, ele era ligeiramente mais roliço; o cabelo moreno, ondulado e longo caía até os ombros; e suas feições grossas contradiziam o seu nariz pequeno e fino. E prestei atenção nisso tudo enquanto ele andava até mim. Ele tentou me agarrar mas eu dei um chute na sua barriga. Ele ficou de joelhos, e eu o empurrei. Roderick voltou a me ameaçar, correndo até mim, e dei-lhe um soco na barriga. Mas até então o seu amigo havia me levantado e me segurado por trás. O idiota começou então a socar minha barriga, continuamente. Minha visão começou a ficar tonta, e cuspi um pouco de sangue em seu rosto.
- Simeon, não vai fazer nada? - Roderick resmungou, esperando uma resposta. Para variar, ele nada disse, ficou apenas observando. Então dei uma cotovelada em Baltazar, empurrei Roderick para longe e me pus a correr, até despistá-los.
                  Estava passando pelo norte da cidade até que eu avistei a ponte de Aslux, deserta para variar. Eu sempre fui curioso para ir até lá. Meu pai nunca quis me contar a sua história, apenas que houve um grande acidente. Apesar disso, eu não queria ir para lá. Ela era... Aterrorizadora demais. Preferia ficar distante dela. Foi então que eu vi.
                   Tyke passou correndo na minha frente, e seguiu pela ponte, latindo.
- Tyke! – Gritei, sem resposta.
- TYKE! – Ele não voltava. Eu não tinha escolha. Eu não ia perder o meu cachorro. Eu corri desesperado, pela ponte até Aslux.
                   Quando terminei de atravessar, comecei a andar lentamente. As ruínas de um enorme palácio apareciam na distância, sem uma luz, uma viva alma. O lugar estava deserto, e silencioso demais. Uma névoa espessa começou a se formar. Não enxergava um palmo á minha frente. Tentei voltar, mas tinha andado demais, e poderia cair do alto da ilha se tropeçasse perto da ponte... Espero que o Tyke não tenha caído. Sem solução, continuei indo para frente para tentar ver de onde veio a névoa, enquanto continuava gritando o nome do meu cachorro.
                     Quanto mais fundo eu prosseguia, mais pesado o clima ficava. Como o Tyke foi tão longe? Eu gritava e gritava, e nada acontecia. O medo, a covardia, a hesitação começavam a me invadir como facas no meu peito. Tinha andado apenas alguns metros, e o meu coração palpitava. Comecei a subir as escadas do palácio, apesar da pressão absurda que eu sentia, sem escolha. De repente, eu sucumbi á terra, preso ao chão por forças invisíveis. Quando olhei para cima, vi apenas um vulto. Seus grandes olhos abriram, e me fitaram com um brilho vermelho.
                 Tentei levantar, e com algum esforço consegui ficar de pé. A sombra continuava a me fitar. Com muita vontade, consegui andar, e depois correr, passando direto por ela. Eu tinha que achar logo o meu cachorro...
- Tyke!? - À medida que subia as escadas, a névoa ia ficando para baixo. Estava no alto do pátio antes da entrada do palácio, e mais sombras chegavam ali á todo momento. Suas pupilas carmesins também começaram a me encarar, e de repente eu fui derrubado novamente, com a força de todas essas aparições. Elas começaram a aumentar e solidificar, formando garras aterrorizantes, e bocas que exibiam grandes dentes afiados. Depois sua pressão mental começou a fazer efeito: o medo, medo da morte, medo de tortura e de fogo me invadiram novamente. E como um anúncio para o banquete, chamas irromperam detrás de cada uma daqueles fantasmas. O lugar inteiro estava incendiando, aos poucos. Vi uma delas se aproximar, e me atingir na cabeça. Eu caí, com algo quente escorrendo pela minha testa, passeando por todo o meu rosto... Não pude ver o que era. Comecei a fraquejar, até que eu vi uma forma robusta subir pelas escadas e passar pelas chamas.


- Meu pai. -
Depois de vê-lo, sorri em segurança e desmaiei.


 


 


 


 


 




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Autor(a): faonkarino

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

Prévia do próximo capítulo

Estávamos cavalgando até o porto leste da cidade, para pegar um barco até o continente de Lusinus, para a ponta sul da baía ao norte, onde tinha uma cidade portuária do reino. Logo de manhã, percebi que ele não iria tocar no assunto do que aconteceu ontem á noite. Porém, isso não me impedia de ficar norm ...


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