Fanfics Brasil - 4 – A Primeira Lembrança, O Medo se Esvai Encontro - Legado

Fanfic: Encontro - Legado | Tema: Medieval


Capítulo: 4 – A Primeira Lembrança, O Medo se Esvai

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Conforme chegava perto de meu destino, adentrando as ruínas, tentando desbloquear o meu caminho pelos escombros, eu fiquei a refletir sobre os três acontecimentos que deram todo um novo olhar, uma nova perspectiva sob o meu treino. Eventos, acidentes, destino, coincidências, o nome não importava; que acabaram fazendo parte desses três longos anos para me fazer virar algo melhor.

A primeira lembrança se passou há dois anos e meio atrás, um pouco depois de eu começar a treinar minha magia.

- E eu reinarei como o grande Campeão Escarlate!
- Não, serei eu é claro. Você é muito fraco, aposto que nem sabe empunhar uma espada direito.
- Nós veremos isso quando formos lutar. – Eu e Tysen conversávamos animadamente, em mais uma daquelas vezes em que nos encontrávamos, no meio da semana.
- Hoje eu tenho um pouco de tempo livre. Por que não andamos um pouco pela cidade? – Convidei-o, que agora o tinha como grande amigo. Minha única companhia, além da minha “família especial”. Eu falava com outras pessoas é claro, mas não se comparam com Tysen.
- Claro. Está mesmo um dia radiante. – O sol era algo a se apreciar naquela época. Estávamos no outono, então fazia um pouco de frio às vezes. Em tempos como esse, o clima fica ameno, o ambiente inspirador, e a luz reconfortante: perfeito para um passeio.
            Levantamos e nos despedimos do dono da estalagem, e começamos a caminhar pelas ruas coloridas daquele lugar, parte cidade, parte vila, parte sonho, parte floresta. Mais uma vez, lhe falei da minha vida, como ela havia sido um pouco solitária apesar dos amigos, no entanto agradável. Como eu costumava tomar banhos de mar na praia de Asven. Como eu sempre fiquei esperando alguma coisa acontecer, e finalmente essa hora chegou. Como se toda a minha vida fosse um estado de espera, um prólogo, um prelúdio para um grande espetáculo. Ele disse que se sentia de forma parecida, mas Tysen nunca me confiara o seu passado. Era uma coisa além do que eu podia compreender, porém conclui que apenas o tempo poderia responder tais perguntas por mim. Por mais que eu odiasse o tempo, por passar tão rápido e tão lento, nos melhores e nos piores momentos.
                  Saímos da vila, depois de atravessá-la inteira, e antes que ela começasse a encher e ficar desagradável. Fomos andando e conversando um pouco mais, até começamos a ouvir um barulho à distância. Primeiro parecia ser invenção de nossas cabeças, mas depois podíamos sentir: até o chão ribombava, em reverência ao que estava por vir. Depois que percebemos a ameaça, nos escondemos detrás de uma arvore protegida por alguns arbustos, e ficamos a espreitar, esperando a caravana passar.
                 E uma caravana era de fato, porém de um tipo mais específico: uma caravana cheia de armas, cavalos negros como a noite, e homens fortes, com uma intenção maligna em seus olhares, todos vestidos de branco; exceto o líder, com as trajes da cor do sangue decorrente de suas prováveis várias vítimas, montado no maior dos corcéis, e com o maior dos sabres.
                E o pior de tudo, eles iam à direção de onde vínhamos.

                 Eu olhei nos olhos de Tysen, e ele me passava a mesma mensagem de urgência, apesar de não ter certeza de que ele seria capaz de fazer alguma coisa. Os guardas ajudariam, meu pai eventualmente apareceria, e eu tinha recebido treinamento parcial. E perdi o medo de morrer desde aquele fatídico dia.
                   Corremos para direções diferentes, nos separando por enquanto. Em pouco tempo, consegui chegar ao acampamento. Ao me ver, Tyke ficou balançando o rabo e pulando em cima de mim.
- Agora não Tyke, eu tenho que resolver uma coisa. Morris?– Eu tentei aquietá-lo o mais rápido possível, enquanto aguardava pelo meu amigo aparecer.
- Olá Faon. – Ele saiu da tenda como tem se vestido ultimamente: armadura leve de couro revestindo todo o corpo.
- Fique aqui. Estão atacando a cidade, e vou lá ajudar. Não conte para meu pai, por favor. Você viu a minha espada bastarda, a afiada? – Ele fez que sim com a cabeça, e foi buscá-la. Enquanto isso, tentei ficar um pouco parado, meditando, tentando lembrar os ensinamentos de meu pai de concentrar toda a energia ao meu redor em mim, apenas para me dar forças o suficiente para prosseguir. Porém, eu não conseguia me concentrar, mesmo com o meu cachorro quieto. Com ou sem energia, ouvi os passos de Morris na grama se aproximando. Abri meus olhos e levantei. Ele estendia a espada dentro de sua bainha para mim. Eu a afivelei no meu cinto, e me abaixei, passando a mão na cabeça do meu cachorro. - Fique aqui Tyke. Não quero você correndo por aí com esses bandidos. – Ele latiu em resposta.
- Adeus Morris. Deseje-me sorte, e não conte ao meu pai! – Ele acenou novamente, silencioso.
                     Corri pela estrada, mas me exauri conforme o portão aparecia na minha visão. Não adiantava nada eu correr tanto para que eu chegasse cansado demais para lutar, mas não podia parar. Caminhei, tentando recuperar minhas forças, até a entrada, escancarada, completamente destruída. Continuei, esperando que nada de muito ruim acontecesse.
                   Não demorou muito até eu ver os cadáveres. E ouvir os sons da batalha, efervescendo pelo lugar. Era a primeira vez que eu portava uma espada afiada de verdade. Comecei a ficar com medo... Medo da morte, e ainda mais medo de matar alguém. Tirar a vida de alguém... Interromper todo um ciclo. Mas eu acho que eles merecem: afinal, eles mesmos tiram sem pensar. Eles têm sorte de eu ter ainda ponderado sobre suas vidas. Não posso me acovardar... Não posso ter misericórdia. Ainda estava em uma das ruas pequenas, caminhando para a praça principal, quando finalmente vi um dos bandidos, que despachava sua lâmina do corpo de um guarda. Sem pensar, logo lhe atravessei minha própria espada pelo peito, vingando o recém morto.
                  Retirei minha bastarda, e eu o vi, finalmente: o sangue. Vermelho escuro, assustador, porém atraente, tingindo minha arma com a essência presente em todo ser vivo. Em especial, de um integrante do bando que invadia Lumare. Eu toquei nele, e ele se espalhou pelo meu dedo, quente: Quente como o que escorreu da minha cabeça aquela noite...
                Eu nunca me machuquei tanto a ponto de sair sangue, por mais ousadas ou perigosas minhas brincadeiras fossem. Era estranho, porque eu via alguns outros garotos se ferindo, chorando, pedindo a ajuda dos pais. Mas eu não ligava, e nunca o vi de perto...
                Passei a lâmina afiada pela minha mão, mas não saiu nada. Eu vi o corte, cor de rosa, mas sem sangue como já se era de esperar. Troquei de mão, e na outra eu cortei a palma da minha mão, com força. E finalmente, ele saiu, por alguns segundos, antes que a ferida se estancasse. Olhei para a minha outra mão, e o corte já não estava visível... O que isso poderia implicar?
                 Fiquei olhando o aço colorido de vermelho um pouco mais, até ouvir um barulho. Instintivamente, eu girei para trás, cortando o peito de outro homem vestido de branco. Era incrível. A espada cortava aquilo tão facilmente... Não parecia ser real. Aquilo era uma arma. Aquilo matava. Eu ainda não havia me dado muito conta do que estava fazendo.
                      Outros se aproximavam... Onde estavam os guardas? Eu podia ouvir o clamor das espadas, se chocando uma contra outra, ao longe. Seria possível que o bando tinha mais homens do que a própria cidade tinha guardas? Provavelmente não, mas os guardas estavam espalhados pela cidade. O bando devia estar concentrado, atacando cada lugar separadamente e deixando alguns para trás, aos poucos... A cidade estaria condenada assim. Ninguém os vira chegando?
               Mesmo que tivessem mais, eles eram tolos. O primeiro eu despachei ao pular para o lado e abrir sua jugular, escorrendo sangue escuro por todo o peito. Ele caiu lentamente, as mãos levadas ao pescoço, encharcando o chão. O segundo eu girei, cortando o seu peito por inteiro, desviando sua estocada. De onde deveria estar seu coração começou a jorrar sangue, molhando minha camisa, minha calça, minhas botas... O terceiro me atacou por cima, tentando me esmagar com sua espada, mas eu o bloqueei e o chutei para longe. O quarto veio, e eu me evadi de seu ataque, rolando para seu lado. Cortei a sua panturrilha, e ele se ajoelhou. Tentou-se levantar, mas cortei fora a mão que segurava a espada, a qual também usava para se apoiar. Eu o chutei, e ele caiu no chão, já morto. Peguei sua própria espada e a enterrei no tronco do terceiro homem, que voltara e tentara vir por trás. Do que adiantava usar tecido quando eles mal podiam se evadir?
               No entanto, caiu um pouco de sangue na minha boca, provavelmente do segundo homem. Cheirava a ferro, mas o gosto... Era... Melhor do que qualquer coisa que eu já havia bebido. Era maravilhoso. É maravilhoso. Estimulante. Todo o meu corpo se arrepiou. Então me dei conta. Não sou um vampiro, não morro na luz do dia, como era possível que eu sequer gostasse de sangue? Não só isso, mas começava a me sentir renovado... Eu não pude evitar beber um pouco mais, até que a minha mente se deu conta do que eu estava fazendo, novamente. Eu me afastei enojado, porém cheio de energia. Arranquei minha camisa e usei a parte seca para limpar o restante do meu corpo de sangue, e depois joguei-a fora. Sangue me fazia perder a sanidade, e me distraí duas vezes. Não poderia me permitir isso mais. Eu não sei o que meu pai pensaria se ele visse isso.
               Meu pai.
               Onde ele estava?
               Não tive tempo para pensar nisso.
               Corri em direção ao centro da cidade, e cheguei tarde demais: os bandidos já haviam executado boa parte dos guardas: o resto havia fugido ou se escondido. Ouvia os lamentos dos moribundos, e tremi diante do cheiro de sangue, carne, fezes e vermes. Tentei não ser visto, e pude ver o líder, vestido de vermelho, indo para a parte perto das docas, perto da taverna. Perto de onde meu pai estava... Provavelmente. Ele podia se defender, mas mesmo contra um grupo inteiro de saqueadores? E por que eles iriam às docas? Por que não o palácio do prefeito? Aquilo certamente não fazia sentido... Alguns ficaram para trás, e sem escolha eu investi. Não havia tempo a perder.
               Logo que cheguei, tomei mais um pelo peito. Os outros ouviram o último suspiro de seu camarada, e viraram para me enfrentar. Eram tantos que eu não consegui contar todos. Primeiro cortei fora a mão de um, depois feri o braço de outro. Mas eles estavam começando a se juntar... Desarmei um, e o furei pelo peito. Puxei-o perto de mim, e depois tentei jogá-lo em cima de seus companheiros. Corri entre eles, atingindo o abdômen de um dos bandidos enquanto me afastava. Mas logo eles se reagruparam perto de mim, e acabei ficando sem saída. Fui forçado a me defender, ao invés de atacar... E já estava ficando cansado. Minha mente parou de tentar acompanhar o decorrer da luta: depois disso, só conseguira matar um. O tempo começava a ficar lento, conforme eu encarava a morte certa. Acho que as pessoas que buscavam e traziam a morte ganhavam justamente isso: a morte. Por mais bem intencionada que fosse, era algo que ninguém tinha direito de conceder.
              Mas eu logo esqueci isso. Um vulto descendeu do prédio no qual os bandidos me cercavam, e comecei a ouvir gritos. Logo, dois dos homens que estavam na minha frente ficaram parados: suas órbitas praticamente saltaram do rosto. Então caíram, suas costas marcadas por duas linhas retas que gotejavam sangue. E na minha frente eu vi duas espadas, menores que a minha, meio curvas, de apenas um gume. Duas kodachis. E vi Tysen, empunhando-as.
             Aproveitei a distração para cuidar dos outros dois.
- Que tal? – Tysen falou convencido. Nós éramos os únicos dois vivos na praça. O que restava da população também estava refugiada, mas boa parte dela estava estendida pelo chão. Agora, porém, tinham muito mais cadáveres de bandidos do que antes. Os robes, ou kimonos, como meu pai me dissera, estavam manchados de sangue. Já não se sabia se o vermelho da vestimenta dos guardas mortos era natural ou o sangue de seus corpos. Sangue... Não podia pensar nisso. Não na frente do Tysen.
- É fácil, chegando por trás. Suas armas são boas, você tem certo estilo... – Empunhei a minha espada bastarda, girando-a e encostando a ponta no chão.
-... Mas ainda sou melhor.
- Só tem um jeito de descobrir Faon. – Ele riu. Ainda éramos adolescentes, apesar de tudo.
- Espere, Tysen. Eu vi o líder indo naquela direção. – Apontei para onde estávamos de manhã.
- A taverna? – Ele questionou pensativo. Olhou para baixo, antes de falar:
- Por que eles haveriam de ir para a taverna?
- Não sei, mas não há mal em descobrir o porquê. – Entramos em um dos becos, para não sermos percebidos pelo outros bandidos. Não queríamos ser descobertos e expostos do jeito que eu fui erroneamente.
                   Saímos nas docas, onde mais bandidos invadiam os navios, e onde ainda haviam pessoas vivas. Marinheiros pulavam no mar, confiando na sua habilidade de nadar para se salvar, enquanto outros simples plebeus simplesmente corriam para o lugar mais seguro ao seu olhar. Geralmente, sua decisão não era boa.
                    E mais bandidos nos viram. E vieram para nós, nos cercar, inclusive alguns que estavam nos barcos. E eu não tive escolha. Segurei minha espada, e me concentrei. A energia vermelha começou a sair e fluir por ambos os meus braços, até ela começar a se condensar e cercá-los. Para então passarem para minhas mãos... O cabo, e finalmente a lâmina. Lembrei de toda a raiva, todo o ressentimento por tudo que aconteceu naquela cidade. Por tudo que aconteceu comigo... E gritei:
- Flamma! – Os poucos que perceberam o que estava prestes a acontecer abaixaram a tempo. Já grande parte dos bandidos ora fora transformada em cinzas ou teve seu corpo dividido em dois. Os que estavam na nau também faleceram, pois as velas incendiaram, e depois espalharam suas labaredas por todo o navio...
                   Ajoelhei ao chão, largando a espada e tentando recuperar o meu fôlego. Aquela façanha drenou grande parte de minha energia, e fiquei imóvel por alguns segundos, fraco demais até mesmo para falar. Tysen sussurrou ao meu ouvido:
- Estou impressionado Faon. – Depois de alguns minutos finalmente respondi:
- Obrigado. – Demorei-me mais um pouco até levantar gritar ao restante – Larguem suas armas. – O medo já havia passado, e os mercenários me encararam com os olhos de um carrasco. Não me importei, e brandi minha espada mais uma vez. Já havia me recuperado o suficiente para isso. Tysen fazia o mesmo com suas armas. Eles estavam em menor quantidade do que na praça agora. Seria fácil demais.
                   Eles vieram gritando, suas cimitarras seguradas alto acima de suas cabeças, rosnando como cães. Os primeiros á chegar até nós se arrependeram de manter a guarda aberta assim. Retiramos nossas lâminas de seus troncos e já lutávamos novamente. Tysen parecia ser capaz de duelar sozinho, então prestei mais atenção no meu inimigo.
                   Ele atacou por cima, e eu o aparei, forçando sua espada para baixo. O empurrei, e antes que pudesse reagir o perfurei. Não podia ver sua última expressão, oculta pela máscara de tecido. Chutei-o para tirar minha arma de seu corpo mole, e ouvindo passos, me abaixei á tempo de desviar de um corte horizontal. Finquei a lâmina atrás de mim, sem ver onde acertava, e a puxei. O cheiro de sangue ficou mais forte...
                  Dois surgiram do meu lado e estocaram ao mesmo tempo. Curvei-me como pude, usando minha espada para girar a desarmar o outro e usar minha mão livre para chocar cimitarra com cimitarra, atordoando o homem ainda armado. O bandido sem arma tentou me agarrar por trás, mas me agachei e o joguei para frente, fazendo com que ambos caíssem no chão. Antes que pudessem se levantar, eu os executei.
                    Mais três apareceram, desta vez se aproximando com cautela. Antes que pudesse pensar em uma estratégia, ouvi um quarto correndo atrás de nós. Virei-me, e corri até ele. Tentei atacar de cima para baixo, mas ele deu uma estocada. Erramos ambos os golpes e brandi a bastarda de baixo para cima. O bloqueio não foi o suficiente contra o violento golpe; e antes que pudesse se recuperar, pulei e finquei minha arma força no seu peito. Devo ter acertado o coração, porque começou a esguichar sangue da ferida. Imediatamente me afastei, antes que o melhor de mim evaporasse por causa dele.
                    Não dei tempo para que me cercassem. Comecei a correr até onde estavam, onde era favorável para mim: de frente para a água. Abaixei-me, continuando a correr quando as suas lâminas ameaçaram me decepar, levantando e batendo com o ombro no que estava a minha direita; chutando o que estava na minha frente para a água e girando, desviando do ataque do terceiro para cortar a região acima da clavícula. Ele recuou, eu girei novamente e segurando com ambas as mãos golpeei firmemente contra a lâmina do meu outro oponente. Ele vacilou e quase caiu na água. Enquanto recuperava o equilíbrio, fui para o outro e cortei sua região abdominal. Sem forças, eu o empurrei até a água. O bárbaro restante brandiu seu sabre de cima, e eu aparei seu golpe. Tentei girar sua espada para desarmá-lo, mas ele manteve a pegada firme e desfez a conexão entre as espadas, empurrando a minha com a sua.
                    Ele estava determinado a não morrer. Eu podia ver isso nos seus olhos azuis, a única feição que eu conheceria daquele homem. Um dia ele teve uma vida. Um dia ele talvez fez parte de uma família. Um dia ele talvez amara alguém. Mas ele cometeu um erro enorme ao cair nesse caminho, independente de suas razões, e agora pagaria com sua vida.
                   Cortei diagonalmente, com força. Ele segurou. Tentei então horizontalmente. Ele bloqueou e tentou uma estocada, mas desviei; e baixei a espada com toda a minha força. Seu antebraço caiu. Sangue começou a jorrar, e ele ficou horrorizado. Novamente, seus olhos o denunciavam. Mas agora era tarde. Com ambas as mãos, passei a lâmina pelo seu pescoço, que o atravessava como manteiga. Sua última expressão suavizou-se depois que sua cabeça rolou para longe.
           Olhei ao meu redor, abstraindo da luta. Estava nas docas. Haviam dezenas de corpos no chão, corpos que nunca mais se levantariam. Pessoas que nunca mais viveriam. Cinzas, cadáveres, moscas, espadas, sangue e fogo. Aquilo sim era a morte. Dei-me conta de algo mais: eu havia causado boa parte daquilo. Eu, sozinho. Um adolescente beirando os quinze anos. Sim, fora treinado pelo meu pai, o melhor espadachim que já vi lutar em toda a minha vida; sim, treinava desde pequeno, mas ainda não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido... Por um momento, um sentimento de desespero, horror e solidão me possuiu, espiralando por todo o meu corpo, toda a minha alma. Mas me controlei, e aquilo passou.
Clap, Clap, Clap.
- Nossa, você fica agressivo quando luta. – Virei-me e observei Tysen batendo palmas pausadamente para mim, enquanto se aproximava.
- Tysen. Agora não. – Ele olhou para mim por alguns segundos. Sua expressão ficou séria: ele entendeu e parou. A hora para brincadeiras havia ido embora fazia muito tempo.
                   
- Onde ele está? Onde ele está!? – Repetia o gigante de vermelho, segurando a cimitarra perto do pescoço do pobre estalajadeiro.
- Flamma! – Inclinei o meu dedo na direção do líder, que foi jogado para trás pelo fogo. Mas ele pareceu imune a qualquer tipo de dano, e se levantou dizendo:
- Então aí está você. – Ele chegou tão rápido até mim que eu fiquei sem reagir por vários segundos. Ele me pegou pelo pescoço, e estava sem forças para me debater e soltar, graças ao feitiço inútil. O líder então me jogou para o fundo do bar. Fiquei inerte, e fiquei num pânico imóvel conforme ele se aproximava. Era a mim que ele queria. Por isso não foi ao palácio. Ele estava procurando por mim no lugar onde eu estava hospedado. Que bom que ele não verificaria o acampamento. Ele estava cada vez mais perto... Até Tysen cortar suas costas, provocando-o.
                     O carrasco girou sua cimitarra na direção de Tysen, que desviou habilmente. Em seguida, desferiu vários golpes alternados de cortes, todos defendidos pelo líder, que segurava a espada paralela ao chão. Ele estava me protegendo, mesmo contra todas as possibilidades de vencer... Eu queria ter mais amigos como este. Não acho que nenhum até hoje teria coragem para tal.
       Ele subiu as escadas, e depois pulou com as espadas em riste, em direção ao chão, como se para dividir a cabeça e o corpo do bandido em dois. Mas com sua mesma técnica, ele parou Tysen no ar com sua lâmina, e o empurrou para fora da taverna, como se estivesse brincando com ele.
       Até então eu já tinha conseguido me levantar e empunhar a arma. Meu carrasco voltou a me observar, seus olhos dizendo tudo: “Eu irei te pegar”. Dei um grito de guerra, conforme avançava com minha bastarda, até ela se chocar contra a cimitarra do meu oponente.
                Retirei, e tentei novamente, brandindo a espada de cima para baixo, para esmagar, mas ele fez a mesma defesa, simples e impenetrável. Então eu me agachei e perfurei sua perna, com sucesso. Porém, ele mal sentiu o golpe, e tentou me dividir em dois. Consegui evadir do seu ataque e encará-lo novamente. Qual era a sua motivação? Por que atacar uma cidade inteira por minha causa? Eu não conseguia entender... Nem tive tempo, pois ele avançava de novo.
              Tentou fazer um golpe diagonal, mas eu recuei. Ele continuou cortando o ar, até me cercar, nos fundos do bar. Ele ia cortar novamente, sem que eu tivesse para onde ir, porém mais uma vez o enganei, agachando e atingindo a sua barriga. Ele perdeu a concentração por um momento, ainda sem parecer que sentia qualquer tipo de dor. Mas foi o suficiente para que eu passasse pelo seu lado, alisando a espada em suas costas enquanto passava. Mas ele parecia um monstro: nada o alterava, nem mesmo o mais grave dos ferimentos.
                Tentei sair do bar para chegar a um lugar onde eu estivesse vantajoso, e onde eu poderia lutar lado a lado com Tysen, caso ele já tivesse se recuperado. Mas, como se não bastasse, ele ainda era rápido, até para mim. Estava já na frente do balcão quando senti uma pressão enorme engolir o meu pescoço, e logo fui jogado para o balcão, enquanto vários copos de madeira e garrafas caíram em cima de mim, quebrando e me molhando, enquanto tentava manter firme a minha pegada sobre a bastarda. Logo senti um cheiro muito forte, quase nauseante, e acabei engolindo parte das bebidas. Sake, vinho, cerveja, hidromel... Senti-me ligeiramente tonto de tanto álcool. Ele deixou minha garganta, meu estômago, meu coração, meu corpo inteiro ardendo em chamas, infectado pela paixão dos boêmios. Fui levantado mais uma vez, e jogado outra vez, agora para fora do bar, soltando minha arma. Tentei levantar, conforme o sol inundava o meu rosto novamente, e a sombra do meu carrasco se aproximava...
- Seu desgraçado! – Tysen gritava mais uma vez, vindo do topo da estrutura, pulando e cortando as costas do líder dos bandidos. Ele gostava mesmo de atacar do alto. Devia ser bom em escalar de tanto fazer isso... Cambaleante, seja por algum ferimento seja pela bebida, consegui levantar e correr até a minha espada, a qual empunhei mais uma vez. Ele conseguira me ferir, quando ninguém mais sequer me acertara. Juntei-me á Tysen, como havia planejado, torcendo para que o nosso esforço e suor em conjunto pudessem vencer aquele... Monstro.
               Gritamos juntos enquanto avançamos, três lâminas tenebrosas apontando para o peito do inimigo. Novamente, ele defendeu usando a sua tática de segurar a espada horizontalmente. Como ele tinha força para agüentar todas as três armas ao mesmo tempo, eu não entendia. Conforme eu atacava e o pressionava, Tysen foi para as suas costas, porém recebeu um chute. Cortava uma vez, cortava outra fez, e ele começou a parar de defender, e atacar em conjunto, as espadas clamando e gritando conforme faíscas voavam. Eu tentava atacar de cima para baixo, ele levantava a espada, bloqueando. Eu estocava, ele cortava, aparando minha lâmina. Consegui o distrair o suficiente para que Tysen tentasse mais uma vez, que pulou de lado, as duas espadas ameaçando decepar-lhe a cabeça. Porém, o bandido o atingiu no meio do ar, e o jogou para longe.
- Tysen! - Eu tentei estocar o peito enquanto o líder estava distraído, mas ele desviou a espada com a mão e conseguiu cortar o meu ombro e o meu peito. Voltei, pondo a mão no local, apalpando o meu sangue, que jorrava do ombro. Como ele conseguiu me penetrar tão facilmente? Fiquei pressionando, tentando estancar a hemorragia, enquanto ele ia até mim, olhos de matador e coração do demônio. Tentei engolir o meu próprio sangue, para ver se melhorava. Minha própria essência era ainda melhor do que aquele bandido imundo do qual tomei.
- Você gosta de sangue, não é garoto? -  Ele riu, e felizmente, ficou parado. Então sua expressão mudou... Uma mistura de terror com surpresa. Ele segurou seu peito por um momento, até surgirem duas lâminas, passando direto por ele. Elas saíram, ele caiu, e eu vi Tysen com uma expressão irritada, mas girando suas kodachis, feliz de ter finalmente derrotado o líder, incrivelmente mais forte e rápido que todos os outros. Até ele olhar para mim. Ele correu para onde eu estava, ajoelhando-se ao meu lado.
- O que aconteceu? – Tysen perguntou, a preocupação evidente em seus olhos.
- O maldito conseguiu cortar meu ombro antes de morrer. – Eu olhei para ele, e a ferida já havia estancado, porém minha roupa inteira estava vermelha... Como a do homem. Que se levantava lentamente atrás de Tysen...
                Por instinto, levantei,peguei a minha bastarda, a enfiei no seu peito, e gritei o único feitiço que lembrava naquele momento:
- Flamma! – As chamas percorreram pelo meu braço, pelo cabo, pela lâmina da espada, até chegar ao bandido e não só furar o seu peito inteiro como incendiar o seu corpo. Eu deitei no chão, exausto. Tysen olhou ao meu redor, vendo se estava tudo seguro, e me tirou do meio da rua, me levando para perto da entrada do bar.
- Está tudo seguro. Estamos vivos. Feridos, mas vivos. – Dessa vez era eu que o encarava. O seu corte no peito estava ali, bem na minha frente, inchado, vermelho. Mas ainda parecia um arranhão comparado ao meu ferimento, o que explicava o porquê de que era ele que estava cuidando de mim, não o inverso. Mas não durou muito tempo.
                   Ouvimos um barulho.
                   Olhamos para trás, para onde o corpo do homem deveria estar virando cinzas, e vimos uma... Sombra. Uma forma amedrontadora, mãos amorfas, olhos vermelhos como o meu próprio sangue, flutuando um pouco acima do chão, sem pernas para correr atrás de mim: mas tive a impressão que me alcançaria mesmo assim se eu fugisse. Essa era a fonte do poder dele esse tempo todo... Ele estava possuído. Será que também fora isso que o fez atacar Lumare? E a sombra começou a se mover lentamente para perto de mim... E eu lembrei, como um raio, daquela noite. E entrei em pânico; tentei me arrastar para longe, enquanto encarava aquele vermelho assassino dos seus olhos, buscando algo no mel dos meus.
                 Não podíamos fazer nada. Estávamos feridos demais, cansados demais. Tínhamos defendido uma cidade inteira, mas não podíamos sobreviver o inimigo final... Meu pai estava certo quando disse que eu precisava estar pronto para tudo. E eu tinha que estar agora, se não quisesse morrer. Tinha que esquecer o pânico, esquecer aquele dia, esquecer o medo. E por isso, comecei a me concentrar. Sem sangue dessa vez. Vou me virar. Deitei-me e fechei os meus olhos. Eu já não conseguia me mover, se isso não funcionasse, eu iria morrer de toda forma.
                 De repente, o mundo começou a ficar mais lento. Comecei a ver pequenas esferas azuis e linhas vermelhas transitando pelo ar, assim como grandes manchas vermelhas de luz onde havia ou houve vida recentemente; tanto camponeses quanto animais. E aquela luz foi se aproximando de mim, aos poucos, e entrando em mim, até que eu comecei a brilhar por todos os poros do meu corpo. E o tempo voltou ao normal.
                 Eu estava de pé, bem disposto, e o machucado no ombro completamente sarado. A sombra se assustara com a explosão de luz, e recuou um pouco, mas manteve sua postura solene e não me atacou. Meu medo, e provavelmente meus pesadelos desapareceram agora. Avancei até ela, a espada em riste, pronta para atacar. Tentei dividi-la em duas, e no último instante a sombra se defendeu, transformando o que mais lhe parecia uma mão em lâminas. Mas possuir um corpo que já tinha um alto poder era fácil: o seu próprio poder era insignificante. Tentei cortar duas vezes, e levantar a minha espada, atacando de baixo para cima; depois girei, e dei uma estocada no centro da essência. Ela explodiu, se transformando em poeira e fumaça.
               Ajoelhei no chão, agora que finalmente havia acabado. Comecei a rir baixinho, pois finalmente havia conseguido extrair um pouco da energia ao meu redor, como tentei fazer antes de vir para onde eu estava, no acampamento. Olhei em volta, e Tysen estava de pé, ainda chocado pelo que presenciara. Ele já não pressionava o seu próprio ferimento, que estava aos poucos se fechando. Aproximei-me dele e bati de leve nas suas costas. Ele olhou para mim, rindo de leve.
              Alguns minutos depois, os reforços vieram do palácio do prefeito, e a multidão saía de seus esconderijos, já que a balbúrdia havia acabado. Alguns estavam em prantos, outros felizes, mas no final estavam todos conformados e limpavam o caos no qual estava Lumare. Porém ninguém sabia o que havia acontecido, já que eu e Tysen guardamos nossas armas por debaixo das roupas antes que qualquer um nos visse. Eventualmente fomos curados propriamente por um mago que conseguiu se esconder, e ajudamos a retirar os cadáveres e reconstruir o que quer que tivesse sido quebrado. Sorrimos um para outro, cúmplices do que havia realmente ocorrido, porém temerosos: o que havia motivado uma sombra a tanto trabalho apenas para me encontrar? Será que estava conectado com o que havia acontecido naquela noite, agora esquecida? Apenas o tempo dirá.
                  De noite, adentramos a taverna, mortos de cansaço.
- Nossa, vocês sumiram o dia todo! Pensei que haviam morrido. Querem comemorar garotos?
- Não.
- Nem pensar. – O estalajadeiro olhou para nós com uma expressão confusa; logo nós, que sempre estávamos dispostos a sentar e conversar, dispensamos aquela noite. Havíamos muito que descansar.

Muito que conversar.

Muito que pensar.




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Autor(a): faonkarino

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