Fanfics Brasil - Ossos em Sangue Sant' Anna

Fanfic: Sant' Anna | Tema: Original


Capítulo: Ossos em Sangue

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Oliver me guiou pelo corredor na direção das escadas assim que saimos da sala dele. Seus olhos castanhos por trás das lentes pareciam ampliados e seus ombros erguidos de maneira tensa. Por uma estranha razão, ele levava aquela bolsa peluda marrom junto com ele enquanto subíamos, e pela primeira vez me perguntei o que poderia haver dentro dela.


– Qual é o próximo período de vocês? - Ele me olhou numa tentativa de aliviar a tensão.


– História. - Franzi os lábios um tanto receosa, sem querer cortar qualquer plano maligno que Oliver tivesse em mente. - E, para a sua informação, eu gosto desse período. - Acrescentei.


– Se o seu amigo está entrando numa crise paranormal - Oliver parecia mais nervoso do que eu. -, nada disso importa, não é verdade?


Concordei silenciosamente enquanto alcançávamos o segundo andar, onde Lucas Nodle nos aguardava impaciente com seus fones de ouvido conectados no iPod. Sua franja ligeiramente bagunçada me dizia que tínhamos problemas.


– Ele está bem? - Me aproximei de Lucas, correndo com Oliver nos meus calcanhares.


– Não teve mais nenhum ataque ou algo do tipo, mas ainda parece fora do normal.


– Fora do normal como? - Foi a vez do terceirista perguntar.


– Sei lá! - Lucas franziu a testa para o nerd. - Quem é ele? - O garoto sussurrou para mim.


– Nosso mais novo amigo. - Fiz um gesto na direção de Oliver. - Wally, este é Noodle-Coodle. - Apresentei ambos. - Noodle-Coodle, este é Wally.


Os dois se encararam, antes de se voltarem na minha direção; ambos com a típica expressão de poucos amigos e olhar ameaçador. Eu dei de ombros sorrindo, depois de me encostar no batente e começar a pensar nas resoluções.


– Já que estamos fazendo isso, achei que seria melhor termos uns apelidos legais.


– Prazer. - Lucas me ignorou completamente ao se dirigir a Oliver. - Com o tempo, você acaba se acostumando com a "vivacidade" dela. - Ele apontou para mim.


Oliver respondeu com um aceno rápido enquanto me puxava junto com ele para dentro da sala de aula. Sua mão envolveu a minha de maneira brusca, o que me fez notar que minha palma era quase infinitamente menor do que a dele. Quando observei sua expressão tensa e as mãos suadas, percebi que talvez o problema com Saulette fosse maior do que pensávamos.


– Onde está?- Ele senta perto da gente.


– Procurei o moreno de olhos azuis pelo perímetro da sala. - Ali! - Apontei para sua respectiva carteira.


Por sua vez, Saulette ainda estava sentado atrás dela, sendo imobilizado pelos braços de Iza ao redor dele. A loira tentava reconfortá-lo com uma forte massagem nos ombros enquanto os olhos vítreos do moreno reviravam. Sem falar que ele jazia sentado em uma posição estranha... Quase como se estivesse pregado na cadeira.


– Saule? - Chamei por ele assim que nos aproximamos.


Imóvel, Saulette parecia uma estátua grande e pálida. Imaginei que talvez fosse uma boa coisa já que ele não estava mais tendo convulsões...


– Hey, cara... - Oliver se aproximou do corpo imóvel, parando ao lado dele com as sobrancelhas unidas e o nariz franzido de dúvida e preocupação. - Quantos dedos tem aqui? - Ele mostrou três dedos na mão direita.


– Sério mesmo? - Bufei irritada.


– O quê? - O nerd me olhou sem acreditar, baixando seus olhos castanhos para o moreno em choque. - Ele parece realmente mal.


– Jura? - Tentei ironizar. - Se ele estivesse saudável como um boi eu não teria te chamado.


– Que seja. - Oliver revirou os olhos, pegando uma cadeira em seguida e sentando-se ao lado de Saulette. - Os olhos dele estão virados para o teto e... O que o seu amigo Lucas disse mesmo? - Ele me olhou. - Ah, sim. Que ele teve convulções.


– Ele começou a tremer feito louco. - Explicou Iza, ainda sentada em cima da mesa.


– Era como se não fosse mais ele - Lola se aproximou de onde estávamos, com seus all stars de oncinha e um moletom da GAP. -, como se tivesse alguma coisa faltando.


– A professora já chegou? - Olhei depressa para a mesa dos professores.


– Não - Iza negou rapidamente. -, acabou de bater.


– Certo. - Oliver parecia não estar se importando muito. - Precisamos saber se ele ainda está aí...


– Alguma ideia? - A morena franziu os lábios.


– Sim. - O nerd cabeceou. - Wanda, você falou com ele antes, certo? - Ele olhou para mim como se estivesse pedindo uma grande coisa.


– Se você chamar aquilo de conversa... - Dei de ombros. - Suponho que sim.


– Poderia falar com ele de novo?


Suspirei resignada, mexendo nos meus jeans desbotados e torcendo para que não fosse assassinada dentro dos mesmos. Senti que meus ombros estavam tensos e minhas mãos suadas, como se estivesse me preparando mentalmente para mais uma daquelas provas orais de latim com o padre Rocky.


– Muito bem. Oliver me deu lugar na cadeira a frente do Saul, com um olhar meio pesaroso que me fez querer esbofetá-lo. Eu sabia que as chances do moreno me responder eram mínimas naquele momento, contando que latim não era a minha língua nativa.


– Quem está aí?


Traduzindo do latim para vocês, queridos leitores! Só hoje: aqui, no Sant`Anna Fuckers!


– Eu.


Lola saltou de susto ao meu lado, enquanto Oliver se inclinava para frente a fim de ouvir melhor. Senti meu coração descompassar ao ouvir o som de uma voz desconhecida sair pela boca de Saulette, como se ele tivesse engolido um gravador ou algo semelhante. Seus olhos azuis se tornaram escuros e vítreos, congelados em um olhar ameaçador para mim.


– Quem é você? - Olhei dentro de seus olhos ampliados, e não encontrei nenhum sinal de reconhecimento.


Nenhuma palavra saiu de seus lábios pelos minutos seguintes, e cheguei a me perguntar se ele não estava mais ali. Como nada acontecera, Iza começou a respirar aliviada novamente, antes que Oliver se inclinasse um pouco mais.


– Por que está aqui? - Oliver perguntou em português.


– Pelo mesmo motivo que vocês. - Ele falou. - Para matar.


A voz ainda era sombria e sussurrada, e pareceu ser extremamente artificial ao sair dos lábios de Saulette. A imagem era surreal demais para que qualquer outra descrição fosse identificada. Nos entreolhamos avidamente, cada um de nós tentando não sair correndo de pavor através da porta. A voz era assutadora, e quem ouvisse de fora poderia dizer que ela pertencia à uma espécie de monstro.


– Legal. - Oliver acenou displicente. - É só, por hoje...


– O quê? - Me levantei rapidamente da cadeira, me afastando de Saulette o máximo possível. - O que quer dizer? O que faremos com ele?


– Não sabemos o que ele tem! - Lola gritou de braços cruzados ao meu lado.


Oliver examinou-o avidamente, tocando seus ombros e sentindo sua respiração. Saulette, por sua vez, apenas o encarava como se não tivesse controle do seu próprio corpo, brindando-lhe com um olhar de raiva em sua direção.


– Eu quero dizer isso de uma maneira que não soe ridículo... - O nerd se afastou comprimindo as mãos.


– Manda. A gente aguenta. - Lola foi rápida e clara.


– Parece que estamos lidando com um problema de possessão. - Oliver declarou sutilmente, com seu olhar penetrante e garganta seca.


– O.K.


– Certo.- Resolvido o problema. - Lola voltou a sentar-se em sua cadeira, mais emburrada do que nunca e com os braços ainda cruzados. - Nosso amigo está possuído. Não temos como resolver.


– Por que eu sinto que você não está acreditando? - Oliver ergueu as sobrancelhas.


– Porque ela não está. - Iza balançava os pés em cima da mesa. - Nem eu.


O garoto passou a encará-las como se minhas amigas fossem uma espécie de aberração. E eu tentava por tudo não rir, notando que fazia total sentido a descrença delas em Oliver. O único problema nisso tudo, era o fato de que eu não sabia ao certo no que acreditar.


– Então - Pigarreei o mais alto que pude, despertando Iza e Lola do extremo ressonar em que se encontravam. -, o que faremos com ele? - Perguntei a Oliver.


– O que quer dizer?


– Não podemos deixá-lo assim. - Tentei explicar, fazendo um gesto displicente na direção do moreno. - Como fazemos para tirar... - Comecei a apontar freneticamente. - Sabe? Tirar...


Oliver ergueu as sobrancelhas.


– Como se faz para tirar essa... - Franzi os lábios, estalando os dedos para fazer o cérebro funcionar. - Essa... Coisa de dentro dele?


Lola revirou os olhos enquanto chutava os pés da cadeira a sua frente, dando pequenos bufos de indignação que me levaram a imaginar o que ela estaria pensando naquele momento. Pensei que talvez fosse algo como: "Não há nada dentro dele, e eu não pretendo tirar as suas tripas".


– Esse é o problema - Oliver pronunciou devagar, passando a mão em seus cabelos negros e bagunçados. -, não tem como.


– Bom, precisamos arranjar um jeito. - Dei de ombros. - Saulette não pode ficar assim.


– Acho que devíamos levá-lo à enfermaria.


– NÃO! - Oliver gritou. - Ficou maluca?


– Acho que ela está certa.


– Então vocês todas são malucas. - O garoto se virou na direção de Lucas. - Precisamos levá-lo para um lugar isolado.


– E fazer o que com ele? - Ergui as sobrancelhas.


– Escuta... - Oliver abaixou seu tom de voz, me encarando no momento em que Lucas desviou o olhar. - Não existe nenhuma forma de tirar isso de dentro dele.


– Como assim?


– Estou querendo dizer... - O terceirista olhou rapidamente para os lados. - Que mesmo se conseguíssemos tirar, Saulette não voltaria ao normal.


– O q...?


– Ele não está mais aqui, Wanda. Sinto muito.


Desviei o olhar para tentar fixar a ideia na minha mente, olhando na direção de Lola e Iza percebi que ambas esperavam por uma resposta. Me lembrei da manhã em que Kamilla fora enforcada, e a imagem do seu corpo pendente e sangrento balançando diante dos meus olhos... Primeiramente, eu não senti nada. Era como um grande choque iniciante, quando as cortinas do teatro se abrem e você não sabe para onde olhar primeiro.


Depois vem a fase da náusea... Quando você acaba encarando que a imagem é real, e aquele sangue quase negro estava realmente saindo do corpo dela. O problema era que...Quando encarei Saulette em sua cadeira, como um verdadeiro peso morto, percebi que não estava com nenhum desses sintomas. É como se as cortinas do teatro tivessem se aberto, mas não havia nada para olhar.


– Wanda? - Oliver chamou por mim.


Olhei para Effie, Lola e Iza, as três amigas que eu não deixaria na mão. Effie parecia estar acreditando no que Oliver dizia, com um pouco de dificuldade, assim como eu. Lola não queria deixar o braço a torcer, e eu entendia isso. Era melhor. Não queríamos nos passar por mentirosas novamente. E eu sabia que Iza, apesar de tudo, estava mais preocupada com Saulette do que no acreditar-e-não-acreditar. O que parecia ser mais lógico para todas nós.


– Oliver acha que Saulette está... - Procurei por uma palavra que não doesse tanto. - Ele está ausente.


– Ãh?


– Tipo, ele não `tá nesse corpo, saca? - Movimentei minhas mãos, fechando os olhos e esperando pelas consequências.


– Ok, ok.


– Vocês beberam.


– Espera, espera! - Effie ordenou, caminhando até Oliver, para logo me lançar um olhar mortal. - Vocês estão realmente dizendo que ele está morto?


Engoli em seco enquanto Effie me encarava, e tentei desviar para cadeira onde o moreno estava sentado. Eu tinha consciência de que Oliver não tinha certeza do que estava falando, e também não sabia no que acreditar.


– E vocês estão se baseando em quê? - Lola perguntou.


– Vocês acabaram de entrar, mas eu já estou nessa fase há algum tempo. - Oliver ignorou Lola, caminhando a frente de todos e nos olhando como uma plateia. - Eu já vi algumas coisas que provam que nada aqui dentro faz sentido, assim como vocês.


– Blá blá blá... - Lola revirou os olhos. - Isso é tudo o que eu ouço desse cara.


– Hey, você já viu uma pessoa enforcada! - Oliver lembrou à ela. - E minutos depois ela estava de pé, na frente de todas vocês, como se nada tivesse acontecido.


– Nós ainda estamos trabalhando nisso... - Effie desviou o olhar.


– Calem a boca, vocês! - Iza se levantou da mesa, traçando o caminho até Lucas. - Nós precisamos ajudar Saulette... - Oliver abriu a boca para explicar. - E, se ele não está aqui, vamos dar um jeito de trazê-lo de volta.


– Ele está morto! - Effie gritou. - É isso o que o imbecil do Oliver está tentando dizer.


– Ele não pode estar morto. - Lola negou. - Ninguém morre assim...


– Todos os possuídos morrem. - Oliver revirou os olhos. - Vocês precisam entender isso, saca? - Ele levou as mãos a cabeça. - Duas almas não cabem num mesmo corpo.


– Por quem ele foi possuído? - Franzi as sobrancelhas.


– Foi possuído pelo Sock. - O terceirista franziu a testa e fechou os olhos com força. - ARGH! Existem tantas coisas que vocês não sabem... - Ele abriu os olhos novamente, nos fitando indeciso. - Mas agora precisamos acabar com ele.


– Acabar? - Lola exasperou. - Como assim... Acabar...


Olhei diretamente para a mesa dos professores, me preocupando com o tempo e como faríamos para matar a aula em seguida. Precisaríamos sair, todos nós, antes que a professora de história chegasse na sala e estranhasse o estado pálido e trêmulo de Saulette.


– Vamos pegar as nossas coisas. - Voltei meus olhos para o grupo, notando o perceptível cheiro de desgosto que pairava no ar entre Oliver e o resto dos garotos. - Ora, por favor! - Rosnei na direção deles. - Precisamos ser rápidos.


Segui na direção da minha mesa em meio a sala de aula, arrancando a minha bolsa debaixo da cadeira e fechando o meu fichário com vigor. Quando terminei de guardar os livros e juntar as canetas no estojo (incluindo Bill), olhei para os lados para ver se todos já estavam prontos para fugir da aula antes que a professora de História chegasse.


Com uma loira desesperada em uma das mãos, Effie colocou sua bolsa da Tinker Bell no ombro esquerdo enquanto Lola parava ao seu lado, torcendo as mãos em um gesto nervoso e piscando sem parar ao olhar para o chão.


– Lola - Coloquei minha própria bolsa no ombro e me virei na direção dela. -, você está bem?


– O quê? - A morena olhou atordoada em nossa direção. - Ah! Claro... - Ela piscou novamente. - Só estava pensando.


– Pensando? - Oliver ergueu as sobrancelhas ao parar ao lado de Lucas.


– Sim, é. - A garota ainda parecia um pouco hesitante. - Estava pensando se isso é certo.


– Lola, essa não é uma boa hora para ter um papo de ética. - Effie retrucou, cruzando os braços emburrada. - Estamos fazendo isso por Saulette.


– Eu sei! Não é sobre ética... - A morena torceu os braços novamente. - É sobre essa história de possessão.


– Explicarei melhor mais tarde. - Oliver olhou de soslaio na direção dela. - Agora precisamos sair. - Ele se virou para Saulette. - Agora.


Lucas seguiu de maneira inquieta na direção do moreno pálido, cutucando-o primeiro no braço antes de acenar para Oliver em confirmação. Por sua vez, o terceirista nerd se aproximou do garoto possuído e passou a cabeça por baixo de um dos seus braços, enquanto Lucas Nodle fez o mesmo do outro lado.


– Isso não é perigoso? - Ergui as sobrancelhas. - Quer dizer... Ele não pode acordar do transe de repente?


– Por isso é melhor irmos depressa. - Oliver me lançou um olhar censurado. - Conheço um lugar onde ninguém irá nos escutar.


– Ok. - Effie arrastou Iza até a porta da sala de aula, sem olhar para trás.


– Ainda acho que não deveríamos matar aula...


– É por um bem maior, Lola. - Puxei a morena junto comigo, observando enquanto os garotos carregavam um Saulette inconsciente para fora da sala. - Vamos ver o que acontece.




_(~.~)_


Saímos pelo corredor do segundo andar, carregando o corpo adormecido do Saulette dentre a maré de estudantes barulhentos duranto o intervalo entre as aulas. Correndo sobre o piso frio e preto e branco, parecíamos um bando de góticos suspeitos que agora matavam aula para atear fogo na capela.


Ok, talvez eu tenha exagerado um pouco.


Parecíamos mais um bando de idiotas matando aula para ir para a biblioteca e se drogar.


– Aonde vamos? - Iza amarrou os cachos loiros em um coque alto, carregando a bolsa azul e alisando os jeans claros com as mãos frenéticas.


– Quarto andar. - Oliver pronunciou por baixo de um dos braços de Saulette.


– Nem fodendo. - Estanquei em meio ao corredor, fuzilando o terceirista com os olhos e esperando que ele se explodisse para que pudéssemos levar Saulette para enfermaria.


No entanto, pude notar que nenhum deles havia concordado comigo. Lola lançava olhares conspiradores na direção de Iza, Effie e Lucas, de uma maneira tão alheia a mim que pude sentir uma leve dorzinha no âmago. O próximo gesto foi oferecido por Iza, que se encolheu em conssentimento ao lado de Effie.


– Wanda... - Iza começou, me preparando para uma explicação que eu sabia que vinha de todos eles em conjunto. - Você precisa entender que não há outro lugar onde não possamos ser ouvidos.


– Bobagem! - Ajeitei a bolsa no ombro e apertei os olhos na direção dela. - Se procurarmos, podemos encontrar algum outro lugar que não seja aquele.


– Cale a boca! - Effie se lançou contra a mim, revirando os olhos do jeito de sempre e afastando os cabelos ruivos dos ombros. - Só eu tenho a impressão de que estamos sem tempo?


– Sem tempo? - Oliver deu uma risada amarga, jogando um pouco do peso de Saulette para a Lucas. - Ele está morto! - Ele gritou em nossa direção. - Tudo o que podemos fazer agora é tentar matar quem o possuiu.


– Ainda acho que deve haver um jeito. - Lola replicou.


Oliver revirou os olhos, mas se calou de maneira paciente enquanto seguíamos pelo corredor do segundo andar na direção das escadas. Agora o corredor estava deserto, depois que todos os alunos entraram nas salas para o próximo período.


E eu tive que aceitar calada também, assim como Oliver, que o quarto andar era a opção mais aceitável que tínhamos ingerido em tão pouco tempo. Mesmo que o lugar me assombrasse nos pesadelos mais absurdos, e eu não pudesse aceitar o fato de que sequer existisse realmente acima das escadas sombrias.


Minha mente vagava pelos cantos mais obscuros do Sanatório Aracnídeo, parando de quando em vez para refletir sobre o que perdemos e o que ganhamos naquelas últimas semanas. E tudo estava muito bem até eu começar a sentir que o ar estava se concentrando, como uma pressão externa em meio as escadas que assolava ao nosso redor.


– Hey, o que é isso? - Visualizei os contornos de Effie e Iza no topo das escadas, tentando cheirar os produtos químicos de limpeza com os quais as faxineiras limpavam os corredores.


– O que foi? - Lola jazia ao meu lado, seus olhos se alagando em pânico. - Algo errado?


– Estou com uma falha. - Senti meu rosto começar a esquentar.


Lá em cima, Lucas e Oliver se viraram na minha direção com o Saulette semi-adormecido entre eles. Pude ver os contornos do garoto enfermo, parando em seu rosto umedecido de suor e seus olhos entreabertos em sonolência, encarando o teto branco acima dele. Senti o ar se concentrando cada vez mais, enquanto Saulette começava a despertar aos poucos, como se estivesse sugando a energia vital a sua volta.


– Ele está acordando! - Effie apontou para o corpo inerte, em meio as escadas, gritando para que Oliver e Lucas entendessem.


Cheirei o ar ao redor, procurando por alguma falha. Precisava encontrar algum resquício de odor, algum cheiro no qual pudesse me firmar dentro da bolha de ar estéril.


Em todos aqueles meus dezesseis anos de vida, nunca poderia imaginar que algum dia encontraria um vácuo no mundo. Um lugar virgem, sem odores ou brisas calóricas que pudessem me confundir todo o tempo.


Naquele momento, eu me arrependi de todas as vezes que desejei encontrar um lugar como aquele. Me arrependi de algum dia ter imaginado um ambiente vazio no espaço, onde eu poderia me sentir em paz sem precisar absorver os odores alheios o tempo todo.


Não havia paz. Eu estava incomodada com o ambiente estéril, tentando encontrar alguma substância que pudesse descer queimando pela minha garganta, e alertando o meu cérebro de que havia algo a se sentir.


Tudo o que Wanda Wyrda podia cheirar era o medo.


Um leve desespero adocicado de pânico, enquanto todos nós observávamos Saulette emergir de dentro do seu estado de torpor, vacilando entre os braços rígidos de Oliver e Lucas, com seus olhos de safira escurecidos e ampliados.


– Puta. Que. Pariu. - Foi tudo o que Effie pode pronunciar antes de correr na direção dos garotos.


Olhei para os lados, segurando o braço de Lola para que a morena não avançasse, e verificando os corredores em torno da escada, a procura de alguém que pudesse xeretar os colapsos de Saulette até que chegássemos ao quarto andar.


– Dábliu, isto está ficando ruim. - Lola tentou afastar minha mão.


Me virei para o topo da escada a tempo de ver um Saulette fora de si, se soltando aos poucos do aperto forte das mãos de Oliver e tentando acertar Lucas com chutes ferozes. Seus olhos amplos e sobrenaturais jaziam raivosos e opacos, encarando qualquer ponto fatal que ele pudesse encontrar em ambos.


Com uma força sobre-humana, o garoto se desvencilhou dos braços de Oliver e jogou-o contra a parede atrás das escadas. Com um único golpe arrebatador, ele empurrou Effie para baixo das escadas e fez com que Lucas fosse atrás dela.


Assisti os garotos caírem sobre os degraus, para logo seguir correndo na direção deles com Lola em meus calcanhares. Me ajoelhei desesperada ao lado de Lucas para checar se ainda estava consciente, deixando que a morena ajudasse a ruiva a se levantar e ajeitar sua saia.


– Morietur. - O garoto acima das escadas possuía voz de homem, com um intenso sussurro asmático que não chegava nem perto da sensualidade da voz do Batman.


– Dábliu, o que ele disse? - Effie seguiu até mim, massageando os pulsos.


– É melhor deixar para lá...


Senti meus joelhos enfraquecerem. E observei enquanto a alma nos olhos do nosso amigo, transformava-o em algo novo.


– Onde está o terceirista? - Iza apalpou ses cachos loiros antes de se dirigir a Lucas.


– Provavelmente morto. - O garoto respondeu.


Comprimi os lábios enquanto Saulette começou a descer as escadas em nossa direção, suas mãos apertadas em punhos e os passos lentos ao escolher sua presa. Olhei para os lados novamente, terrivelmente dividida entre gritar por ajuda ou permanecer em silêncio temendo que alguém descobrisse nosso segredo.


Segredo.


Da noite para o dia, aquela palavra se tornara mais forte do que qualquer outra. Era como se, pela primeira vez, descobríssemos a realidade do seu significado.


– Ô Dábliu... - Effie sussurrou em minha direção. - E se magia funcionar de verdade?


Olhei de esguelha na direção da ruiva, percebendo que estaria rindo se o momento não fosse tão desesperador.


– No que você `tá pensando? - Ergui as sobrancelhas.


– Estupefaça? - Lola opinou.


– Avada Kedavra seria mais produtivo... - Effie apontou na direção de Saulette.


Olhei na direção dele, estalando os dedos ao pensar que aqueles olhos escuros não se ecaixavam no rosto conhecido de Saulette, e destoavam completamente do seu olhar vago e imbecil.


O sorriso de escárnio era salgado e com fome de destruição. Aquilo me fez querer gritar...


– Quieta! - Lucas colocou a mão em minha boca assim que opinei por berrar. - Ficou louca?


– Valete, Alumni Vivae. - Ele pronunciou com sua voz rouca e pragmática novamente.


– Wanda... - Effie se desesperou. - Isso foi um feitiço?


– Não. - Cheguei para trás, engolindo em seco. - Foi uma despedida.


Entendam-me... Toda aquela situação de morte parecia muito surreal. Em primeiro lugar: porque era justamente uma situação de morte...Em segundo lugar: porque era uma situação de morte sem cheiro. Em terceiro lugar: porque era uma situação, e situações eram sempre surreais para nós.


Quando Saulette substituiu o sorriso de escárnio por uma careta feroz, eu soube que ele pretendia matar cada um de nós com as próprias mãos e ainda se orgulharia disso. Acho que foi nesse exato momento em que passei a acreditar em absolutamente tudo o que Oliver dizia.


Era como se, até aquela hora, o terceirista estivesse assistindo a uma peça de teatro paralela e diferente da nossa. Eu sentia o tempo todo que ele estava na sala ao lado, mas o meu espetáculo apresentava mais credibilidade do que o dele.


De repente, as cortinas se fecharam e as salas se fundiram.


Os atores foram mortos e a plateia foi coberta pelo enorme véu da realidade.


A peça de teatro estava sendo feita por nós agora. Sem plateia. Sem produtor.


E, principalmente, sem roteiro.


Senti o toque morno dos dedos de Iza se entrelaçando com os meus, e observei enquanto a loira oferecia o outro braço ao Lucas. Em seguida, apertei gentilmente a palma de Lola, e esperei até que Saulette estivesse a nossa frente, cara a cara.


O ar se apertou ao nosso redor, comprimindo-se todo, e resvalando até o rosto de Saulette. Por sua vez, o moreno aspirou profundamente, levando toda a brisa comprimida para dentro dos próprios pulmões. E foi quando eu percebi que aquilo o agradava...Toda aquela receptividade com o "ar sem cheiro" e os olhos ainda em tons de esmeralda, me dizia que Saulette ainda não estava possuído por completo. Até ali, era como se ele estivesse tentando se transformar naquela criatura mais forte e mais primitiva. E eu sabia que ele nunca tentaria fazer algo como isso, então entendi que alguém tentava a força. Como um fantasma do ar, que agora entrava em pedaços pelo nariz dele, e se apossava do seu corpo com uma rapidez efervescente.


– Ele está possuído. - Lola pronunciou pausadamente, como se agora ela entendesse tudo claro como água. - Tem uma coisa dentro dele...


Olhei na direção da criatura, absorvendo sua "aparência de Saulette", mas negando os seus olhos que agora aparentavam ser castanhos, e as veias negras que se apresentavam aos poucos ao longo do corpo. Primeiro as veias da têmpora, depois as do pescoço, e por fim as das mãos. Se algum dia houve alguma chance de termos salvo Saulette, ela foi antes de toda aquela coisa esquisita acontecer...


– Corremos? - Lucas sussurrou de maneira trêmula para nós.


– Si potes...– A boca do monstro se abriu, num rosnado profundo e asmático. -Currere, vivae... Currere!


– Wanda... - Lucas tentou começar.


– Não me peça a porra da tradução! - Gritei com ele, soltando a mão das gurias e me virando para ele. - Corra, sua besta!


De alguma forma, eu me senti mal por deixar Oliver para trás. Mas na minha cabeça, eu sabia que o terceirista estava vivo de alguma forma. Quer dizer... Ninguém morre ao ser jogado contra a parede, morre?


Naquele momento, eu tinha certeza de que se não corrêssemos seríamos mortos. Podia sentir a sucção do monstro em minhas costas, e seus chiados mudos exalando em ondas sintéticas ao meu redor. Até que um grande baque surdo ecoou pelas paredes a nossa volta, fazendo Lucas parar ao meu lado enquanto o meu coração congelava no lugar.


Iza gritou feito uma louca ao lado de Effie, se virando no momento em que sentimos uma leve brisa em nossos cabelos indicando que a criatura havia caído. Ao me virar na direção das escadas, notei que Saulette estava de cara no chão, e um genuíno Oliver sorridente jazia de pé acima do corpo, segurando um azulejo preto e branco sujo de sangue e erguendo-o acima da cabeça.


– QUE PORRA DE SUSTO FOI ESSE?! - Effie explodiu em um chilique. - QUEM VOCÊ PENSA QUE É PARA ME FAZER PENSAR QUE ESTAVA PRESTES A SER DEVORADA, HEIN?


– Precisa gritar tão alto?


– DA PRÓXIMA VEZ, USE UM LANÇA CHAMAS! - A ruiva apertou as mãos em punho ao bater o pé no chão. - PELO MENOS EU TENHO TEMPO DE ME PREPARAR!


– Ela realmente "freak out".


– AVISA ANTES, PORRA! - Effie gritou na cara de Oliver.


Meu coração paralisado atrás do meu peito voltou a bater aos poucos, me fazendo suspirar e relaxar enquanto olhava para o corpo de Saulette caído no chão. Senti meus olhos queimarem ao reconhecer a quem o corpo realmente pertencia, e me lembrar que ele nem sempre fora habitado por um demônio.


Chorei em silêncio por uns dois minutos, evitando olhar para qualquer um e deixando que todos nós mergulhássemos nos próprios pensamentos. Effie ainda xingava Oliver de uma porção de coisas enquanto Lucas cutucava o peso morto de Saulette com a ponta do tênis. Eu apenas limpava o meu rosto silenciosamente, tentando controlar o pesar e os soluços entalados na garganta.


– O que faremos? - Lola tremia com os braços cruzados sobre o moletom da gap. - Podemos levá-lo a enfermaria agora?


– Você sabe que ele está morto, não sabe? - Iza pronunciou, com seus olhos vermelhos e uma das mãos pousadas no peito, como se acabasse de levar um susto.


– Sim, eu já entendi isso. - Lola engoliu em seco. - É só que... - Ela olhou para cima. - Ele ainda poderia estar aí...


– Tudo bem, ele ainda poderia estar. - Oliver se esforçou para não revirar os olhos. - Mas é essencial que nos livramos do corpo.


– E como diabos faremos isso? - Iza levou as mãos a cabeça, completamente transtornada. - Eu assisti "Medical Detectives" e percebi que jogar o corpo no lixão nunca dá certo.


– Não vamos jogar no lixo! - Lucas perdeu a paciência com ela, fazendo sua franja escorregar ligeiramente para direita. - Temos que criar evidências para que pareça um suicídio.


– Suicídio? - Eu soltei uma risada fria. - Com uma pancada na nuca?


– É, ok. - Lucas se conformou. - Isso seria impossível...


– Quando eu digo para nos livrarmos do corpo - Oliver jogou a sobra de granito nas escadas, causando um ruído alto que ecoou pelo corredor. -, eu estou querendo dizer que não podemos deixá-lo aí para que o possessor possa voltar...


– Ele ainda pode voltar? - Iza ergueu as sobrancelhas, encolhendo os ombros em pânico.


– Mesmo que o corpo esteja enfraquecendo - O garoto ignorou completamente a nota de medo na voz da loira. -, ele ainda pode nos ouvir.


– Precisamos queimar o corpo? - Ergui minhas sobrancelhas.


– Poderia funcionar. - Oliver limpou as mãos nas calças, levando-as até o rosto para sentir o próprio nariz. - Mas na maioria dos casos, os "excubians" cortavam os membros com uma serra - O garoto espirrou. -, e depois jogavam em uma fornalha.


– Ugh. - Lola se arrepiou.


– Que simpático...


– Não temos uma fornalha. - Levei meus dedos até o meu cabelo, agora grudento, e puxei-o para trás das orelhas a fim de enxergar melhor. - E cortar os membros... - Estremeci. - Acho que não posso fazer isso.


– Mas vai ter que fazer. - Oliver me encarou.


Seus olhos castanhos reluziram na penumbra do corredor, como se estivesse me desafiando a continuar em minha posição. Era como se de repente eu me sentisse obrigada a admitir que estava na moita esse tempo todo, mesmo sem ter negado qualquer sentença oferecida pelo sabe-tudo terceirista.


– Isso é imbecil. - Effie parecia um pouco mais calma. - A gente podia simplesmente enterrá-lo...


– Sock poderia voltar.


– Quem?


– O possessor não morre com o humano. - O garoto explicou. - Ele apenas fica preso dentro do corpo.


– E se queimarmos o cadáver? - Perguntei. - Ele é liberado?


Oliver assentiu, colocando suas mãos nos bolsos depois de ter pego sua bolsa felpuda.


– Como vamos cortá-lo? - Eu sabia que estava enchendo-o de perguntas, mas de alguma forma aquilo me fazia sentir melhor. Era como uma distração da realidade, ainda que fosse dentro dela.


– Eu estou com as minhas facas. - Effie falou.


– Tenho um canivete.


– E onde fazemos? - Quando a vida te der um limão, pergunte o por que.


– Onde ninguém possa nos encontrar.


– Quarto andar é a melhor opção, como sempre. - Revirei os olhos.


– Pare de reclamar. - Lola me cutucou.




_(o.o)_




Começamos a subir as escadas novamente. Lucas e Oliver carregavam o corpo de Saulette como antes, só que agora eles não pareciam estar forçando muito. Enquanto isso, Lola seguia a minha frente, dando ligeiros tapinhas consoladores no ombro de Effie. Já Iza estava ao meu lado, subindo os degraus pé por pé, e lançando olhares chorosos ao topo da escadaria de granito.


Eu acho que eu estava bem. Para falar a verdade, não me lembro muito bem das minhas condições naquele momento. Por isso eu peço que me perdoem se eu começar a descrever toda a situação de uma maneira fria e distante. Mas a Dábliu daquela época, mesmo sob a sombra da imensa fortaleza aracnídea, estava começando a se afastar do que era concreto e plausível.


Eu só me lembro dos cheiros, porque eles nunca morrem.


Foi a primeira e única vez em toda a minha vida que eu havia me deparado com um ar completamente estéril. Mesmo quando a brisa que vinha do pátio resvalou em nossos rostos, tudo o que eu podia sentir era a tristeza plena. Ela corroía dentro de mim, misturada com a culpa por não ter feito nada.


– Vamos virar no corredor de redação. - Oliver ordenou.


Quanto ao terceirista...


Eu me lembro de me sentir incômoda perto dele, assim como todos os outros. Me lembro de quando Oliver chegou, exibindo seus comentários diplomáticos e sua misteriosa bolsa felpuda. Estranhamente, aquela bolsa suja e marrom não o fazia parecer menos masculino. Mesmo que os óculos lhe dessem um ar de completo debiloide...


– Você não acha tudo isso estranho? - Iza se virou em minha direção, enquanto caminhávamos pelo corredor escuro do quarto andar.


– Todo o lance de possessão?


– Não. - A loira engoliu em seco, alisando os jeans justos e franzindo as sobrancelhas. - Eu me refiro a sobriedade.


– Você quer uma bebida? - Dei um leve sorriso.


– Não. - Iza não levou minha piada em consideração. - Eu quero entender porque tudo está tão frio.


Sufoquei as palavras vazias no fundo da garganta, pensando seriamente no quão certa ela estava. Algo estava faltando, além de todos os cheiros que eu não podia sentir ou que não existiam, algo ali dentro devia estar pegando fogo.


– Acho que estamos em choque, não estamos? - Franzi o nariz, sentindo a cabeça latejar enquanto deixava as minhas pernas no automático. - Ainda não posso sentir o baque da morte.


– Eu posso. - Iza tentou sorrir frustrada, carregando a nuvem de delicadeza consigo. - Mesmo que tenha sido agora - Ela deixou uma lágrima escorrer. -, eu sei que ele morreu, entende?


– Não. - Neguei veemente.


– É diferente de quando foi com a Kamilla. - Iza tentou explicar, erguendo ambas as mãos e produzindo gestos fracos. - Quando vimos todo aquele sangue no laboratório... Para mim, ainda não parecia real.


– Mas para mim parecia. Você devia ter sentido todo aquele cheiro de medo e sangue... Foi tão real, Iza, que chegou a ser agoniante.


– Eu entendo. - Ela afirmou. - Mas no enforcamento da Kamilla, tudo o que eu sentia era o gosto de sangue e a promessa embaixo da língua. - A loira continuou fazendo gestos. - E agora... Eu consigo sentir a bile subindo na garganta e sufocando a vontade de gritar.


– Isso dói? - Franzi a testa, me lembrando das poucas vezes em que havia vomitado depois das ceias de natal no fim do ano.


– É desagradável. - A loira deu de ombros.


Olhei na direção de Oliver e Lucas, que carregavam o corpo morto de Saulette corredor a fora. As olheiras profundas e as veias proeminentes se destacavam no rosto pálido do garoto, como se a vida dele tivesse sido sugada para fora do corpo. Seus olhos fechados pareciam tão fundos que eu duvidei que ainda os tivesse, e seus braços pendendo para o ombro de Oliver me pareceram demasiadamente estúpidos.


A morte deveria ser triste e nauseante, mas eu tive que me conter para não rir friamente enquanto observava o corpo de Saulette pender desajeitado para o lado dos garotos.


– Algo errado, Dábliu? - Lola ergueu as sobrancelhas.


– Estou bem. - Tirei o sorriso idiota da minha cara, puxando Iza comigo e seguindo em frente.


– É aqui. - Oliver falou.


Nos encontramos na frente da enorme porta que abria para o corredor das redações. Ela ficava depois de todas as esquinas no quarto andar, e ao lado das escadas internas que seguiam infinitamente abaixo. A porta de madeira era dupla, e sua superfície era repleta de rabiscos incrustados e alguns arranhões estranhamente felinos. Haviam algumas lascas soltas ao redor no piso de azulejos brancos, e uma única janela fosca e quadriculada enfeitando a larga parede virgem entre as escadas e o corredor.


– Eu nunca vim aqui antes. - Fiz um leve comentário, antes de estremecer com a brisa gelada que subiu pela janela.


– Impossível! - Lucas arregalou os olhos para mim, derramando todo o peso do corpo morto na direção de Oliver. - Eu venho aqui todas as quintas para o plantão de redação.


– É horrível. - Effie comentou com seus olhos enormes e os brincos cintilantes. - É estreito, sem janelas e cheira mal...


Olhei na direção de Lola, um pouco indecisa.


– Ela não está exagerando. - A morena montou uma expressão resoluta. - É realmente horrível.


– Que ótimo. - Murmurei antes que Oliver abrisse as portas.


– Estava aberto? - Lola franziu a testa.


– Não. - O terceirista respondeu, sem dar maiores explicações.


A primeira vista, o corredor de redação parecia tão assustador quanto qualquer outro lugar dentre as paredes do Sanatório Aracnídio. Ele era comprido, úmido e abatido pela penumbra, que dominava qualquer parte interna do colégio que não tivesse luz. Eu me lembraria melhor da imagem do corredor se conseguisse assimilar qualquer cheiro, mas naquele momento tudo parecia um borrão de nada que se casava com nada e resultava em absolutamente nada.


– Vamos para a última sala. - Oliver ordenou, seguindo ao lado das portas e carregando o corpo inerte de Saulette.


Caminhei ao lado de Iza, passando meus olhos rapidamente pelas portas incrustadas de números em relevo e pequenas janelinhas embaçadas. Pelo o que eu pude ver dali de fora, aquelas eram as menores salas do colégio, cheias de carteiras aos pedaços e com a ausência completa de janelas.


– Isso não me cheira bem. - Consegui falar antes de engolir em seco.


– Achei que você não estivesse conseguindo sentir nada... - Iza comentou.


– Exatamente. - Relanceei na direção dela.


Voltei à olhar para Saulette e seus olhos fundos feito uma caveira. Eu sabia que não era uma boa hora para sentir dor ou remorso, mas aquela era uma caminhada longa o suficiente para me deixar com o coração na boca.


– Shhh! - Effie levou o indicador aos lábios. - Acho que estou ouvindo alguma coisa.


Eu parei de andar, olhando na direção da Effie que permaneceu estática, com uma expressão mortífera estampada no rosto e os lábios entreabertos evitando respirar. Esperei que tudo ficasse realmente silencioso, e aticei minha audição para ver se encontrava qualquer baque de passos lentos e indesejáveis.


– Effie, o q...? - Olhei para ela.


– Quieta! - A ruiva franziu a testa na minha direção.


Voltei a me silenciar, olhando em volta a procura de respostas estampadas no rosto dos outros. Percebi que Lola parecia estar se concentrando, e Iza estava tão perdida quanto eu. Por sua vez, o nosso querido Lucas xingava Effie aos berros mudos, deixando Oliver com todo o peso do cadáver de Saulette.


Por um momento, eu decidi parar e buscar. Imagina se todo aquele lance de "ar estéril" tivesse tirado a minha audição também?Foi quando eu tentei ultrapassar toda aquela bolha que me prendia em um mundinho sem sujeira, e me concentrei naquele corredor escuro e depressivo. Agora eu podia ouvir a respiração acelerada de Iza, oprimida pela bile que subia por sua gargante. Tentei ignorar os rasgos que os braços de Lucas faziam no ar, desviando meus olhos de seus acenos frenéticos na direção da ruiva.


E enquanto o mundo estava parado, eu percebi que a imagem do corredor tremulava em vibrações rítmicas. As portas pareciam tremer em batidas prolongadas por segundos impecavelmente contados... E eu me assutei em pensar que poderiam ser passos. Logo percebi que seria impossível se fossem, pois os passos de alguém jamais poderiam ser tão precisos.


– É como um tambor. - Lola mordeu o lábio inferior, indecisa.


– É mais leve que isso. - Effie franziu a testa. - E parece não ser de longe...


Olhei para o corpo morto de Saulette nos braços de Oliver, me perguntando o quão estranho poderia ser todo esse lance de possessão a longa distância. Mesmo sabendo que o som rítmico não provinha de lá, continuei de olho no cadáver para não perder qualquer resquício de manifestação.


– Precisamos entrar em alguma sala. - A voz de Oliver saiu abafada. Parecia que o ombro de Saulette estava tapando a boca dele. - Depressa.


– Por favor, não vamos na última. - Lucas estremeceu, implorando na direção de Oliver, mesmo que isso consistisse em um leve escorregão de sua franja. - Por favor, parece muito assustadora.


O engraçado é que eu não havia percebido o fim do corredor até aquele momento. E aquilo era absurdamente fora do normal, certo? Porque na maioria das vezes, quando as pessoas entravam em corredores, o destino do caminho era a primeira coisa que elas localizavam, certo? Quer dizer... Mesmo que fosse de maneira involuntária. A última porta era sempre a primeira a ser vista.


– Eu não tinha visto ainda... - Lola franziu a testa.


– Você está há anos nesse colégio. - Ergui as sobrancelhas. - Com certeza sabe o que há atrás daquela porta, não é?


– Isso é que é estranho. - A morena se esforçava para pensar. - É como se eu soubesse, mas não me lembrasse.


– Grrr. - Effie revirou os olhos. - Vamos parar de blablablá. - A ruiva cruzou os braços. - Temos um cadáver para cortar.


Oliver passou a cabeça por baixo do braço de Saulette novamente, carregando-o consigo ao se virar seguindo em frente pela penumbra. Tudo o que eu podia ver agora era o contorno do cabelo loiro de Iza, já que as salas a nossa volta já não tinham a mínima fresta de luminosidade.


– Acho que aqui `tá bom. - Oliver conseguiu falar exausto, largando Saulette contra a parede e abrindo a porta velha com um pontapé.


– Quanta agressividade. - Lucas ergueu as sobrancelhas.Oliver grunhiu.


– Bloody Hell. - Iza murmurou.


Comparada àquela sala, o estreito corredor poderia ser considerado um hotel cinco estrelas. As mesas espalhadas pela classe pareciam estar na beira da podridão suprema, e eu cheguei até mesmo a pensar se foram realmente humanos que as utilizaram para estudar. O quadro negro era um pequeno quadrado, com uns grandes buracos escuros que pareciam queimaduras. Havia uma extensa teia de aranha entre a primeira mesa e a cadeira do professor, pela qual tivemos que contornar para poder carregar Saulette até o canto.


– Ninguém pode nos ouvir? - Perguntei a Oliver.


– Eles podem, mas a probabilidade é mínima. - O garoto começou a afastar as carteiras do meio da pequena sala de aula, jogando-as de qualquer jeito contra a parede. - De qualquer forma, até que eles cheguem já teremos terminado.


– Então - Engoli em seco, ajudando-o com as duas últimas mesas. -, vai ser rápido, huh.


– É, Dábliu. - Ele me encarou, num misto de pena e preocupação. - Tem que ser.


Depois que tudo estava bem afastado e mais ou menos limpo, o terceirista pegou Saulette pelas axilas e deitou-o no centro da sala. Todos encararam o chão numa espécie de reza silenciosa, enquanto eu ainda pensava sobre como tudo estava seguindo tão rápido e errado.


E tudo estava muito bem, muito legal e muito surreal. Até que a frágil Iza caiu num choro sem fundo, em soluços corroídos que me rasgaram por dentro e quebraram o silêncio contido dentro da sala. Seus cachos loiros escorregaram para frente dos ombros, escondendo o rosto avermelhado que ela agora apresentava. E eu sabia que se Iza havia caído, eu não demoraria muito a cair... Então precisávamos fazer aquilo depressa.


– Calma, Iza. - Lola passou um braço ao redor dos braços dela. - Você precisa respirar.


– Eu s-sei. - A loira soluçou, tentando conter os espasmos contidos no estômago. - Eu j-juro que q-quero tent-tar isso.


Eu sabia o quanto era difícil. E eu acho que isso todo mundo sabe...


Quando os soluços são contidos por muito tempo, ou quando a garganta é tão apertada que fica difícil falar... O choro sai sem limite, escorrendo pelos olhos e deixando o peito em pedaços. O corpo é dominado pelos espasmos contínuos e agressivos, que reverberam pelo diafragma e nos deixam em um estado lamentável de paranoia ambulante.


Às vezes eu penso, só por essas crises de choro, que os loucos que não possuem critérios choram muito mais do que nós.


Talvez uma parte da loucura seja simplesmente não conter as mágoas, e deixá-las fluírem em uma dança solta, até que os soluços se tornem uma respiração natural.


Mas disso eu não podia ter certeza.


Nunca havia visto um louco chorando.


– Vamos lá, Iza. - Entrelacei meus dedos com os dela e guiei-a para mais perto do corpo, o último lugar em que ela desejaria estar naquele momento. - Precisamos fazer isso. Depois choramos.


– Eu s-sei. - Ela tentava. - Mas é impossível fazer sem sentir.


– É. - Cabeceei. - Também não sei se posso conseguir.


– Eu começo. - Oliver se manifestou, carregando um dos facões de churrasco que havia tirado de dentro da bolsa da Effie. - Já fiz isso antes. - Ele colocou a faca numa posição letal. - E, além do mais, sou o mais distante dele.


– Vamos deixá-lo fazer isso? - Effie voltara com sua voz estridente mais uma vez. - Sério mesmo? - A ruiva iniciou um novo discurso. - Vamos deixá-lo meter a faca no Saulette?


– Vocês não tem escolha. - O terceirista revirou os olhos. - Além disso, me façam o favor de pensar que esse não é mais o amigo de vocês...


Senti meus braços amolecerem ao observar Oliver ajoelhando uma perna próximo a cabeça de Saulette, e descansando o queixo na outra, como se ainda estivesse analisando o melhor ângulo para cortar. Eu desejei desviar o olhar quando o terceirista aproximou o fio do facão rente ao pescoço nu do garoto morto. A ânsia de vômito, tão indesejada pro Iza, veio a tona quando o primeiro filete de sangue escorreu da jugular de Saulette, e eu não tive escolha senão desviar o rosto e grudá-lo no braço de Lucas.


Eu podia ouvir os rasgos que a lâmina fazia de encontro a carne, os rangidos lânguidos que os músculos produziam ao serem partidos. E quando a bile subiu, eu me virei rapidamente para trás a fim de vomitar, deixando que tudo de asqueiroso saísse para o chão e me deixasse sozinha para contemplar a pior cena da minha vida.


Você pode ver em muitos filmes de guerra ou terror, uma boa e velha decaptação cinematográfica pode agradar a todos. Sentado na poltrona, você só pode sentir um pouco de nojo ou dar algumas gargalhadas dependendo do contexto. Quando se trata de um filme violento, você pode até mesmo torcer para que aconteça...


Naquele caso, a culpa era minha. Toda e absolutamente minha. Eu não queria que acontecesse, mas precisava acontecer. E as sensações eram muito diferentes do desgosto ou da raiva. Eram diferentes até mesmo da pena ou da dor. Eu podia não estar sentindos os cheiros ou absorvendo as cores. Mas as feridas ultrapassavam as minhas veias, cortavam as minhas pernas e me tiravam o oxigênio. Era um sentimento de falta e até mesmo enforcamento. Um sentimento de ter o que era mais importante, separado de todo o resto.


– A cabeça já foi. - Oliver comentou, cobrindo o rosto com a manga do moletom. - Vamos para os braços.


Virei minha cabeça rapidamente, antes que pudesse ver Oliver se movimentando ao redor do corpo com a faca em punho. Senti-o em meus pés, quando ele resolveu pegar o braço esquerdo que era o mais próximo de mim. Fechei os meus olhos quando ele enfiou a faca, primeiro com força, fazendo jorrar algumas gotas de sangue quente na minha perna direita. A sala era minúscula, e não haveria jeito de me livrar da sensação horrível que era meter uma faca em carne humana.


Por isso abri os meus olhos, e me forcei a ser forte por mim mesma. Oliver já havia passado por tudo aquilo, como ele mesmo dissera. Pelo visto, era algo pelo qual pessoas como nós deveriam passar. Então eu desviei meus olhos do ombro de Lucas, e pousei-os no corpo danificado de Saulette. Rapidamente, me virei de volta vomitando pela última vez, para então mover meus olhos até o toco onde deveria estar a cabeça, e depois passá-lo pelo braço que já estava sendo separado. Percebi que a cabeça havia ido parar na parede, e as veias ainda estavam saltadas na têmpora, assim como o fundo negro nos olhos, quase demoníacos mesmo fechados. Eu quis vomitar outra vez, mas me forcei a perceber que aquela havia sido a última. E qualquer outro tipo de bile seria levada em conta como fraqueza.


Então esperei até que Oliver cortasse o braço do meu amigo, rachando a carne ao meio e afastando os ossos que não seria capaz de cortar. Às vezes, eu pude perceber, ele tirava o canivete do bolso que possuía uma pequena serra elétrica, basicamente do tamanho de uma caneta. Sacando-a com destreza, ele triturava os ossos largos que faltavam para completar o seu trabalho.


– Vocês precisam fazer também. - Oliver ergueu seus olhos na minha direção. - Precisam fazer, porque farão futuramente.


– Cortar membros? - Effie arregalou os olhos do outro lado da sala.


– Isso. - O terceirista confirmou. - E outras coisas piores também.


Ele se moveu de um lado do corpo para o outro, conduzindo o facão e o canivete enquanto limpava o rosto sujo de sangue com a manga do moletom novamente. Seus olhos castanhos reluziam cansados na penumbra, enquanto o garoto se ajoelhava do outro lado do corpo, sobre o braço direito.


– Tudo bem. - Effie estalou as juntas dos dedos, piscando ligeiramente ao olhar para os tocos decepados. - Eu vou fazer.


Oliver não disse absolutamente nada quando a ruiva ajoelhou a seu lado. Ele apenas conduziu o facão para a mão dela, se afastando no momento em que a garota postou a faca em riste.


Observando Effie, notei que ela tirava a força de vontade de um lugar impossível ao pousar a lâmina sobre a pele amarelada.


– Me digam quando parar... - A ruiva murmurou.


Dizendo isso, a garota afundou o facão na potridão de carne, trazendo a bile de volta a minha garganda novamente. Olhei para o rosto de Lola que permanecia implacável, e visualizei Oliver encostado na parede do canto, encarando um Lucas que estava tão verde que poderia desmaiar a qualquer momento.


– Hey, Lucas. - Cutuquei o garoto no braço. - Você quer sair? - Apontei para a porta.


– É, eu vou n-nessa. - Ele murmurou, se afastando de mim sem me encarar e saindo porta fora.


– Seria bom se ele cortasse também. - Oliver me encarou, torcendo o canto da boca.


– Ele decide por si próprio. - Dei de ombros, voltando a observar o fervor de Effie ao cortar o membro.


– Está bom, Ef. - Lola pronunciou, ao ver a faca da ruiva encostar no chão.


– Ok. - A garota deu um suspiro cansado, jogando a faca para o lado e se virando para Oliver. - Só para constar... - Ela rosnou. - Essa foi a pior coisa que eu já fiz na minha vida, e você não vai sair ileso desta.


Forçando um sorriso cretino, o terceirista acenou na direção das pernas, olhando para mim e para Lola em seguida.


– Vamos? - Lola olhou indecisa para mim.


– Vamos juntas. - Acenei para ela, e depois para Iza.


A loira de cachos reluzentes aparentava estar tão verde quanto Lucas, e mesmo assim, ela não havia vomitado tantas vezes na lixeira quanto eu. Seus olhos castanhos jaziam opacos na escuridão amortecedora.


– Onde e-está a f-faca? - Iza perguntou, mantendo a cabeça erguida.


– Aqui. - Eu empunhei o facão, me virando para Lola e acenando.


Começamos o nosso trabalho de maneira descuidada, cada uma de nós cortando de um lado da primeira perna, com materiais diferentes. Iza permaneceu ao meu lado, olhando tudo enquanto eu peguei o facão e afundei na calça jeans até que ele encontrasse a carne, então dei um puxão no tecido até rasgar por completo, e o abri para dar mais acesso a carne pálida por baixo.


De maneira inconsequente, afundei o facão na pele até o primeiro filete de sangue escorrer. E de maneira terrível e odiosa... Eu descobri um certo consolo em suspender a faca e fincá-la até que os ossos estalassem. Me descobri aproveitando o momento ao serrar as fibras que a carne oferecia, e vez em quando eu olhava na direção de Lola e via que ela sentia um mesmo. Um certo consolo, apesar de todo o desgosto.


Ali, ajoelhada ao lado do cadáver, eu percebi que talvez fosse isso que os assassinos aproveitavam ao serrar um corpo e jogá-lo no rio. Talvez essa fosse a mesma sensação de meter uma bala em alguém, ou fincar uma faca até o coração instalar.


Era uma sensação pútrida e efervescente. O prazer mais secreto de todo o conhecimento humano. E depois de terminar a primeira perna, eu me contive pacientemente para não pular para cima da outra, e esperei até que Iza tomasse o facão de mim e o canivete de Lola. Então nos viramos devagar para a outra perna, esperando que dessa vez a loira fizesse o seu trabalho.


Iza começou devagar, como nós, passando o fio da lâmina ligeiramente pela pele, e logo afundando até encontrar a carne em si. Esperei até que ela aproveitasse o momento, afundando o facão e retomando-o novamente, repetindo o movimento até que a outra perna fosse por inteiro.


Então, quando terminamos, nos levantamos no chão molhado de sangue com os rostos respingados de vermelho e as respirações selvagens. Eu podia jurar que se me olhasse no espelho naquele momento, veria a imagem de uma verdadeira canibal se culpando pelo pecado de ter aproveitado.


Olhei para Oliver enquanto Lola entregava-lhe as ferramentas, cuidando para encontrar algo desse prazer no rosto dele. Porém, eu nada achei. O terceirista parecia esconder bem o que pensava e o que sentia, e eu não me senti surpresa quando ele nos conduziu até a sua bolsa e disse que tudo estava esquematizado.


– Eu irei queimar o que restou do corpo hoje a noite. - Ele pronunciou devagar, evitando nos encontrar com os olhos. - Amanhã enterrarei as cinzas na praça aqui do lado. - Oliver engoliu em seco ao olhar para o chão castigado. - Chamarei por vocês quando o enterro estiver pronto.


Parei para refletir por alguns momentos, revendo suas palavras e tentando voltar para a realidade onde eu era uma garota de dezesseis anos, completamente inocente e enojada por todos os males do mundo. Mas a verdade é que... A partir dali, eu nunca conseguiria voltar para a estaca zero. Então apenas me lembrei o quanto Saulette fora importante para nós, e o quanto ele merecia um enterro digno.


– Tudo bem. - Resolvi falar algo, olhando para os rostos das garotas e me voltando para Oliver. - Levaremos algumas palavras, certo?


– Certo. - Effie confirmou. - Ainda possuímos uma imagem boa dele.- Sim. - Lola concordou.- Ok. - O terceirista cabeceou ao pegar a própria bolsa marrom peluda e atravessá-la pelas costas. - Então chamarei vocês quando terminar.


Ele abriu ligeiramente a bolsa misteriosa, e tirou um longo saco plástico negro de dentro de um dos zípers. Esticando o enorme saco de lixo, ele posou-o aberto no chão e começou a recolher os membros, um por um. Observamos enquanto as peças cortadas eram postas em ordem dentro do saco, e o modo como Oliver realizou um último golpe com a faca no coração de Saulette, para logo puxar o tronco dele para dentro da sacola também.


– Isso é tudo? - Perguntei ao terceirista. - O possessor foi eliminado?


– Do corpo, sim. - O garoto afirmou, com os olhos sombrios. - Mas todos sabem que ele ainda está vagando por aí...


– Amanhã você tem respostas para nos dar. - Encarei-o sem desviar, mergulhando meus olhos fracos no seu rosto sujo e em seu olhar sincero. - Amanhã você me contará tudo.


– Sim, eu sei. - Oliver tentou sorrir. - Não há como fugir de você.


– Exato. - Concluí a conversa saindo de perto dele, e abrindo a porta da sala de aula para encontrar um Lucas Nodle completamente verde no corredor.


– Terminaram? - O garoto perguntou.


– Tudo pronto. - Respondi friamente antes de sair para o corredor, com Iza e Effie nos meus calcanhares.


– Amanhã é o enterro. - Iza comentou para Lucas.


– E o dia em que descobriremos a verdade. - Acrescentei.


– Isso. - Effie confirmou, ainda um pouco zonza.


– Vamos embora. - Lola saiu logo da sala depois de nós, carregando sua mochila roxa e oferecendo uma mão para Lucas segurar. - É provável que ninguém durma essa noite...


– Muito provável. - Todos encaramos Oliver que saiu da sala em seguida, segurando o enorme saco de lixo amarrado e empapado de sangue. - Mas em breve, todos irão esquecer.


– Como você pretende sair com isso do colégio sem que percebam? - Lucas encarou o pacote enojado.


– Invento qualquer coisa. - O terceirista deu de ombros. - Vinagre, ketchup, molho vermelho... - Ele revirou os olhos. - E mesmo que eu contasse a verdade, quem iria acreditar?


– Tem razão. - Effie encolheu os braços. - Isso é tão absurdo que nem eu consigo acreditar.


– Pois é. - Oliver jogou o saco sobre as costas. - E agora vocês precisam voltar para a aula.


– Precisamos?


– Sim. - O garoto continuou. - Todos nós precisamos.


Observei enquanto Effie e Iza passavam a minha frente e seguiam na direção da porta do corredor, e eu apenas entrelaçava meu braço com o de Lucas enquanto Lola fazia o mesmo do outro lado. Suspirei um pouco cansada de tanto vomitar, e logo fui percebendo aos poucos que os cheiros voltavam a dominar o meu campo de olfato.


Agora eu era capaz de cheirar o sangue em minhas mãos e o a potridão do cadáver que se afastava no saco de Oliver. Também podia sentir o ligeiro perfume que provinha de Lucas, e o meu próprio que agora saía em minha pele. As paredes tinham cheiro de bolor e tinta velha, assim como as salas de aula que possuíam cheiro de giz envelhecido e vidro queimado.


Sorri aliviada quando saímos pelo corredor na direção das escadas, e agora eu voltava parcialmente tranquila para sala de aula sabendo que podia sentir tudo e todos. Já a minha parcela de preocupação, ainda me lembrava que eu havia cometido o pior dos pecados e ainda iria em um enterro na manhã do dia seguinte. Só para me lembrar da culpa que me corroía por dentro, e do aroma de sangue e carne que ainda tinha nas mãos e queimando embaixo do nariz.


Quando estávamos chegando ao corredor do segundo andar, eu ainda pude ouvir um último comentário por parte de Oliver antes que o garoto tomasse o seu próprio caminho na direção do terceiro andar.


– Essas são as garotas mais duronas que eu já conheci...




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Autor(a): clarawyrda

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