Fanfics Brasil - Temos uma oração a fazer Sant' Anna

Fanfic: Sant' Anna | Tema: Original


Capítulo: Temos uma oração a fazer

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        Eu estava observando um vendedor colocar mochilas por trás da vitrine quando ele passou. Era um homem alto, provavelmente no auge dos seus vinte e poucos anos, e tinha aquela pinta de Hollywood, sabe? Aquele cheiro de desodorante caro e puro modernismo. Seus olhos estavam cobertos por óculos escuros da Chilli Beans, e seu cabelo igualmente escuro jazia todo penteado para trás. E eu duvidava muito que ele estivesse usando uma gota de gel naquela perfeição masculina...


        Usava uma camisa social azulada por cima dos jeans que envolviam suas cochas grossas, e eu estanquei no meio da calçada, respirando profundamente para não olhar para o lugar-onde-nenhuma-garota-prendada-deveria-olhar.


        Respira fundo, Wanda.


        Olha só! A calçada está linda nessa manhã de verão, não está? O sol reflete em cima do concreto cinza de uma maneira inocente e irresistível.


        ...Acontece que O Cara irresistível ainda estava andando por cima dela, em um gingado próprio que fazia com que todas as mulheres atrás dele encarassem seu traseiro durinho e provocante. Havia curtos resquícios de barba em seu maxilar, e os óculos escuros reluziram sob o sol escaldante.


        Voltei meu olhar para a vitrine da livraria, observando de canto ao notar que o estranho apetitoso estava se dirigindo ao prédio amaldiçoado no fim da esquina. Para a minha surpresa, um lento sorriso começou a surgir em meus lábios, enquanto o homem praticamente corria na calçada e chegava aos portões do colégio Sant`Anna.


        - Novo professor?


        Minha pergunta pairou no ar, encravando a ruga de dúvida na testa e a irritação metálica na cabeça. Desviei o olhar da vitrine de mochilas para os meus pés, observando os velhos all stars imundos que se destacavam na calçada cinzenta. Meus jeans justos, minha camiseta lisa e o casaquinho cinza me davam a aparência de uma garotinha de nove anos que havia envelhecido depressa demais.


        Además, nunca reclamei das minhas roupas de velha para ninguém, mesmo quando algumas delas apareceram com bordados de pérola uma vez... Eu sempre coloquei uns jeans e uns all stars, só para destoar dos meus casaquinhos vintage das blusinhas sem estampa.


        Resumindo...


        Sou uma vergonha para mim mesma.


        Portanto, se você aí, dito cujo na frente do computador, achou por um segundo sequer que iria se inspirar com a protagonista dessa história, pode ir tirando o hipogrifo da chuva.


        Isso aqui não é Best Seller do Dêniuiorquitaime.


        Voltando ao problema maior, que não eram as minhas roupas...


        Olhei na direção do Sant`Anna, aquela enorme fortaleza que se erguia na esquina da Avenida Independência e já não me assustava como antes. Podia ter uma parede cinzenta e suja de cuspe, e até mesmo uns portões de cetro reluzentes. Podia ter até uma coordenação que vivia num aquário, ou uns professores cadáveres, mas também tinha o peso da morte que ainda carregávamos. Ainda tinha Oliver, Michael, e Kamilla. Ainda tinha Lucas, Iza, Lola, e Effie.


        Aquela merda ainda tinha eu.


        Por isso me desencostei da vitrine, cheirando os pãezinhos recém feitos que provinham da padaria ali perto. Notei o peso enorme da minha bolsa d`O Estranho Mundo de Jack, com alguns livros de física, matemática e ocultismo. Sendo que esse último não estava na nossa lista de matérias, mas eu precisava me certificar de que não estava enlouquecendo.


        Ou melhor: era mais fácil me certificar de que estava.


        Por isso comprei o livro em um sebo ali perto, antes de entrar no meu prédio no dia anterior. Dei uma olhada em temas mitológicos na internet; procurei por desmembramento, enforcamento, morte na fogueira e até mesmo possessão. Acabei percebendo que não havia nenhum tema que tratasse de tudo isso junto.


        Pensei que talvez um dia pudesse existir um único tema para descrever o que passamos no Sant`Anna, sabe? Algo como suspense, mistério ou romance. Só que esse tema seria uma mistura de tudo o que tivemos ali, por isso deveria ter um nome próprio como “Sant`Anna”. Então se um dia fizessem diversos livros sobre o assunto, uma única pesquisa no google me daria a lista com todos eles.


        Porém, tudo o que eu pude encontrar da noite para o dia fora aquele livro de ocultismo que possuía algumas regras de mumificação. Também falava sobre almas que permaneciam na primeira dimensão e amuletos da sorte que poderiam ser feitos em casa. Muito contente, paguei uns vinte reais pela bíblia inteira e carreguei para casa, estudando de pouco em pouco ao longo da madrugada.


        Passando pela última vitrine da livraria, olhei para o meu reflexo estampado no vidro e tentei dar um sorriso meio torto. O resultado de todo esse esforço foi uma menina de nove anos tentando fazer birra para a mamãe, e usando um casaquinho de lã grande demais para ela. A mocinha tinha grandes olheiras arroxeadas e olhos enormes, completamente murchos; além de umas pernas finas num jeans apertado e uns bracinhos que não conseguiriam carregar dois litros de coca cola.


        Podemos dizer que eu me sentia meio morta. Para falar a verdade, ao olhar para a vitrine acabei descobrindo que era uma adolescente de dezesseis anos, num corpinho de criança com olhos enormes e um enorme peso morto dentro de si. Se alguém cutucasse o meu peso morto com uma vara, ele passaria a ronronar e pedir colo.


        Por isso eu peço que não cutuquem.


 


        - Wanda?


 


        Lucas Nodle estava parado na esquina da Avenida Independência, quase na frente das portas de cetro e ao lado de uma entregadora de panfletos. Sua habitual franja, cuidadosamente penteada para o lado direito acima da sobrancelha, jazia em seu perfeito estado. Com os olhos sonolentos e os lábios avermelhados de mordidas nervosas, Lucas chamou pelo meu nome, puxando o dábliu usual numa letra completamente alongada. Tão alongada que eu achei que ele fosse bocejar ao invés de me chamar.


        - Hey yah! - Ergui um dos meus braços para o alto, deixando-o cair ao lado da bolsa em seguida.


        O garoto me olhou de cima abaixo, fazendo uma expressão de desgosto logo em seguida. Pelo o que eu pude notar, a versão internacional da Vogue não aceitaria o meu visual daquele dia.


        - Você está doente? - Lucas me perguntou assim que o alcancei.


        - Eu ia te fazer a mesma pergunta. - Encolhi os ombros.


        - É... - Ele comprimiu o abdome, olhando de soslaio na minha direção. - Acho que estou um pouco sim.


        Eu não disse uma palavra quando entramos juntos na grande fortaleza escura, subindo as escadas de maneira entediada e seguindo na direção das catracas como porcos indo para o abate. Por baixo do perfume caro e adocicado de Lucas, eu era capaz de sentir o aroma enjoativo do cigarro que ele provavelmente torrou na noite anterior.


        - Você está bem, Nodle-Coodle? - Franzi a testa, me lembrando das olheiras fundas no rosto de Effie e do cheiro depressivo de banheiro que ela aparentava ter semanas atrás.


        - Bem. - Ele respondeu simplesmente, deixando que eu o seguisse pelo corredor apertado à sua frente.


        Olhei rapidamente na direção do aquário da coordenação, me perguntando se o novo professor ou estagiário que encontrei, caminhando pela calçada, estaria em algum lugar por ali. Mantive meu olhar com cautela dentre as pequenas saletas de vidro, à procura de um estranho sexy e misterioso.


        Passando pelo escritório da Kamilla, notei que a coordenadora enforcada não estava sentada em sua habitual cadeira. O que me levou a entender que qualquer lance que ela tivesse com aquele homem estranho de jaleco estava sendo posto em prática no fim das escadas de emergência do prédio novo. Se tivéssemos tempo e coragem, uma hora daquelas eu pediria à Effie para que fôssemos dar mais uma olhada por aquelas bandas.


        Eu não estaria em paz enquanto aquela mulher estivesse executando qualquer plano maligno debaixo do meu nariz.


        Cadela dos infernos...


        Cautelosamente, segui o meu escrutínio sobre as salas da coordenação, notando que Márssio já estava em sua sala cuidando dos papéis matinais. Os óculos de armação larga escorregavam pela ponte do nariz, e seus olhos azuis elétricos avaliavam os novos documentos de alunos novatos.


        Olhando para frente, descobri uma Effie muito ansiosa caminhando na nossa direção. As olheiras de semanas atrás já não estavam em seu rosto, e o tom rosado em suas bochechas dava-lhe um ar mais saudável. Apesar disso, eu sabia que por dentro a ruiva estava um caco.


        Afinal de contas, todos nós estávamos.


        - Bom dia, gente. - Ela tentou sorrir, fazendo uma careta iluminada por suas sardas pálidas. - Como foi a noite de vocês?


        - Bem. - Lucas e eu respondemos em uníssono.


        Effie Guess estava usando um pulôver de lã cor de rosa por cima dos seus magníficos jeans. Com sua habitual bolsa da Tinker Bell, a ruiva chegou ainda mais perto de nós, com seus passos vagarosos e lábios secos.


        - Precisamos ir lá para fora, ok? - Ela olhou para nós dois, individualmente, mostrando que o assunto era sério. - Sem aulas hoje, para nenhum de nós.


        - Mas eu achei que tivéssemos aquela prova... - Lucas começou.


        - Sem aulas hoje. - Ela repetiu alto. - Para nenhum de nós.


        Engoli em seco quando a garota nos ultrapassou, indicando para que a seguíssemos na direção das catracas. Relanceei para Lucas, pedindo algum conselho ou sugestão, mas o cara continuou encarando o piso a sua frente com a típica expressão de "comi e não gostei". Revirei os olhos ao ultrapassá-lo, seguindo de encontro a Effie com mais dois longos passos.


        - Estamos indo ao enterro? - Olhei em seu rosto lívido.


        - Parece que sim. - A ruiva deu de ombros. - Lola me mandou um sms.


        - Onde vamos enterrá-lo? - Meus olhos começaram a arder.


        - Aqui. - Effie desviou o olhar para o chão. - Aqui do lado.


        - Espera... O quê? - Lucas nos alcançou, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta com violência. - Iremos enterrá-lo na praça?


        - E-eu - A ruiva gaguejou. - Eu a-acho que s-sim.


        - Ridículo! - O garoto praguejou. - Devíamos enterrá-lo em um cemitério.


        - Não temos dinheiro para um cemitério. - Eu cutuquei.


        - Nós temos. - Effie nos interrompeu. - Podíamos enterrá-lo em um cemitério, mas...


        - "Mas" o quê?


        - Oliver achou melhor não. - A ruiva falou, fazendo Lucas levar as mãos à cabeça. - Ele disse que era melhor enterrá-lo em algum lugar próximo para que...


        - ...Pudéssemos tomar conta. - Eu completei a frase, encaixando as engrenagens e tentando não pensar em cadáveres.


        - Isso não é certo. - Lucas permaneceu impassível.


        - Não importa. - Effie ordenou. - É assim que vai ser.     


        Atravessamos as catracas, envoltos pelos ruídos graves e metálicos desenvolvidos pelas mesmas. Lucas acenou para alguns conhecidos que encontrou por perto, e logo seguiu Effie na saída do colégio, cuidando para não cair em cima dela.


        Só posso dizer que achei estranho estar saindo do colégio às sete da manhã, sabendo que mataria o restante das aulas da grade de períodos. Com a garganta apertada e os olhos secos, segui até Effie e Lucas, me juntando a eles como um esquema de proteção.


        - Eu sei que não é uma boa hora, mas - Me aproximei da ruiva, um pouco indecisa quanto a dizer ou não. – eu acho que temos um novo professor no colégio.


        - Novo professor? - Effie ergueu as sobrancelhas.


        - Um cara gostosão. - Dei de ombros, sorrindo ao me lembrar do contorno dos jeans naquele traseiro. - Ele entrou no colégio.


        - Não é grande coisa. - A ruiva fez pouco caso. - Ele pode ser um estagiário, ou um pai indo levar a criança.


        - Effie, ele não estava carregando nenhuma criança. - Ergui as sobrancelhas para ela.


        - Não importa, não é? - A voz dela se tornou mais grave de repente. - Nada mais importa.


        Encarei os meus pés enquanto caminhávamos na direção da praça, cuidando para não pisar nos pedaços de salsicha espalhados pelo chão. Meus tênis estavam sujos e despedaçados, e olhar para eles me lembrou da pequena mancha de sangue que jazia na sola do meu all star direito. De alguma forma, havia algo dentro de mim que alertava explicitamente que nada daquilo duraria para sempre. Era como um amuleto que eu adquirira com o passar dos dias, enquanto o ano letivo se transformava aos poucos em algo maior e bizarro.


        Era um aviso que vinha dos cheiros, sussurrando dentre as árvores e espalhando o aroma de sereno e hortelã. A praça a nossa frente jazia no pico de seu estado veranil, com as árvores floridas e a grama num tom verde saudável. O céu naquele dia estava cor de algodão doce, com um sol fraco que se escondia entre as nuvens.


        Parecia ser um dia agradável para um enterro, daqueles que você se sente culpado por estar tão feliz. O calor assolava aos poucos nossos corpos ao começar a invadir o clima às oito horas da manhã, pois antes desse horário, tudo o que o dia possui é a neblina que cobre a cidade antes que o sol finalmente chegue em seu ponto.  


        - Lola me disse que vamos enterrá-lo depois das estátuas. - A voz de Effie soou fria e distante.


        E mais uma vez surgia aquela sensação, como se eu estivesse vendo a cena como alguém de fora, e soubesse que nada daquilo duraria tempo suficiente para que nos tornássemos obtusos. Saulette havia morrido no dia anterior, e agora honraríamos a sua memória. Mas isso não queria dizer que iríamos parar no tempo e permanecer em luto eterno; tampouco queria dizer que seguiríamos em frente assim que a terra o levasse para longe.


        Eu só estava sentindo que a partir daquele momento, toda e qualquer morte não teria o mesmo significado que possuiu por toda a nossa vida até aquele dia. Nenhum enterro pareceria o mesmo quando saíssemos daquela praça; nenhum cadáver pareceria morto o suficiente depois do que fizemos com aquele, nenhum filme de terror poderia ser tão sangrento quanto a cena que realmente presenciamos.


        Nenhum vilão pareceria mais verdadeiro do que nós mesmos, segurando aquelas armas em cima do cadáver de alguém que gostamos durante tanto tempo, e de tantos modos, que toda a memória feliz depois daquilo pereceria às cinzas.


        O que eu estou tentando dizer é que...


        Você pode ser criança e achar que sabe tudo sobre anões e potes de ouro, mas quando chega a sua hora, qualquer anão e pote de ouro vai parecer ridículo perto de um pigmeu segurando uma cesta de frutas.


        É a diferença entre o que era feito de cortinas, e o que estava apenas sendo coberto por elas.


        - Wanda - Effie cutucou o meu braço com força, tentando sorrir levemente. -, você estava viajando não estava?


        - Um pouco. - Tive que admitir, um tanto envergonhada.


        Passamos pelas estátuas brancas no meio da praça, um tanto enfeitadas com seus traços bruscos e trajes gregos. No centro delas, havia um pequeno chafariz que permanecia o tempo todo desligado, enquanto as estátuas permaneciam olhando para longe da praça com seus olhos vazios e cheios de coco de pomba. Zombando delas, olhei mais a frente na direção que Effie me apontara, me deparando com o grupo de adolescentes mais excêntrico que poderia ter conhecido alguma vez...


        - Ali estão eles. - Lucas seguiu na frente, nos guiando entre os galhos enormes espalhados pelo chão.


        - Já era hora! - Iza exclamou, dando um sorrisinho amargo.


        Lola estava encostada na árvore à direita, com uma de suas habituais blusas de desenho animado e um jeans enterrado em suas botas. Com um telefone celular em mãos, deu para perceber que ela estava prestes a nos chamar por conta do atraso. Ao seu lado estava Iza, o cabelo loiro pendendo em uma trança em seu ombro e os braços cruzados pelo frio. Sorri sem constrangimento enquanto me aproximava deles, com os tênis mergulhando na terra enlameada.


        - `Dia, Dábliu. - Lola tentou sorrir na minha direção, guardando o celular no bolso traseiro da calça. - Estamos prontos aqui.


        - E mais uma vez, você parece ter oitenta anos. - Iza acenou na direção das minhas roupas.


        - Sinto muito. - Fiz uma careta. - Não tive muito tempo hoje.


        - Você nunca tem. - A loira revirou os olhos.


        Chegando mais perto, pude notar o grande buraco que havia entre nós em meio ao chão. Uma cova bem feita, com alguns resquícios de raízes mortas e folhas secas. Tentei encontrar o seu fundo ao me aproximar um pouco mais, presumindo que a cova minuciosamente calculada havia sido feita por Oliver.


        - Ele ainda não está aí, Wyrda. - De trás da árvore, o dito cujo apareceu usando roupas típicas de “nerd recatado”.


        - `Dia, Oliver. - Acenei em sua direção, antes de chegar ainda mais perto da cova e sentir um profundo aperto no estômago. - Onde ele está?


        - Aqui.


        Oliver largou um saco negro em meus pés, e eu o identifiquei como o mesmo saco da manhã anterior, quando havíamos despedaçado o corpo. O cheiro pútrido de cadáver em decomposição temperou o ar com sua acidez, e eu franzi o nariz antes que pudesse alcançar o saco plástico e fechá-lo imediatamente.


        - Deve estar muito podre. - Minha voz saiu pastosa, já que meu nariz ainda estava tampado.


        - O que você acha? - Iza se moveu até o meu lado, com o nariz igualmente tampado e os olhos lacrimejando. - Não dá para acreditar que fomos nós que fizemos.


        - Precisamos acreditar... - Lola surgiu ao seu lado. - Ou não poderemos fazer outra vez.


        Assenti rapidamente encarando a larga cova que Oliver havia feito, e tentando ignorar por completo o eco do desejo nas palavras de Lola em minha mente. Podia ter sido horrível, nojento e o pior pesadelo de um ser humano... Mas podemos dizer que houve uma parte desejosa, quase brincalhona; houve uma parte em que parecíamos crianças brincando com o sangue de um pequeno animal.


        Eu sei que não era certo.


        Eu sei que era horrível.


        Mas eu preciso te contar todas as partes, não é?


        Até mesmo aquelas que você não deseja ler.


        Respirei fundo para tentar tirar as imagens do corpo ensanguentado da minha cabeça, e olhei para o rosto intacto de Oliver. As folhas secas no chão da praça se arrastavam, flutuando até a cova, e o terceirista pisava em algumas delas, causando pequenos ruídos desagradáveis. Procurei pelas olheiras fundas em seu rosto, mas acabei descobrindo que estava tão limpo quanto o rosto da estátua em nossas costas. Seus olhos castanhos jaziam sonolentos, e o cabelo escuro parecia um pouco mais arrumado que o normal. Oliver olhou na minha direção, rápido demais para que eu pudesse desviar o olhar, e me encarou por alguns míseros segundos enquanto sacava um isqueiro simples do bolso dos jeans.


        - Para quê é isso? - Perguntei um pouco abobada.


        Sem demandas ou respostas, o garoto chutou o saco de plástico para dentro da cova profunda, antes de deixar cair o isqueiro aceso logo após esta. As lentes dos óculos refletiam as chamas que começaram a surgir no saco, dando-lhe um ar assassino que pensei jamais encontrar no rosto de Oliver. Mesmo depois de tudo o que havia acontecido com Saulette, todas as coisas que o garoto havia nos aconselhado a fazer ainda passavam como imagens pela minha cabeça, me fazendo desconfiar dele.


        Enquanto a cova se incendiava, eu comecei a pesar as possibilidades de Oliver ser um louco. Um cara completamente lunático que nos fez matar um garoto inocente que poderia estar tendo um ataque cardíaco, ou algo que ainda pudesse ser curado. Comecei a criar imagens de horrores cometidos pelas minhas mãos, por conta de uma realidade inventada.


        Dessa forma, o cadáver ia sendo consumido aos poucos pelas chamas famintas no fundo da cova. Ao olhar para os lados, percebi que Lola fazia uma oração baixinha, provavelmente um Pai Nosso apressado de lábios frios. Tentando arranjar uma posição confortável, Lucas se apoiava na árvore de tronco largo, olhando para qualquer outro lugar que não fosse as chamas a sua frente; enquanto isso, Iza umedecia os lábios ao lado de Effie, ambas de mãos dadas e rezando preces curtas.


        Por sua vez, Oliver ainda olhava na minha direção com uma curiosidade que comecei a detestar. Imaginei que ele devia estar esperando por alguma reação da minha parte, alguma oração que escapasse dos meus lábios para mergulhar nas chamas.


        Eu encarava o fogo e pensava em como os pedaços de carne sangrenta estariam queimando dentro do saco. Sentia o cheiro de carne queimada no ar, e culpava ao Oliver por ter brincado durante tanto tempo com essa história de "colégio mal assombrado". Eu tinha consciência de que não possuía muitas preocupações na vida, e que não pretendia passar de ano ou estudar para qualquer uma das provas, mas isso não significava que a minha vida pudesse dar passe livre para esse tipo de coisa mística, com certezas que entram e saem janela afora.


        Com um pouco de saudades doloridas pela babaquice de Saulette, me dirigi a árvore mais próxima e arranquei um ramo de flores amarelas, fazendo os galhos balançarem. Afastei-me logo em seguida e, com passos curtos, deixei que o ramo colorido caísse nas chamas, sendo engolido pelo fogo inflamado e deixando um cheiro doce no ar.


        Então fiz uma única prece ao me afastar da cova, cruzando os dedos numa promessa e sussurrando baixinho: "Que não aconteça outra vez, por favor, que não aconteça outra vez." Assim, considerei meu encargo de promessas como um lembrete, e segui até onde Effie e Iza estavam posicionadas, me deixando ficar ao lado delas.


        - Alguém quer dizer alguma coisa? - Oliver apoiou a pá no monte de terra.


        - Não - Lola enxugou o rosto úmido. -, acho que todos já dissemos.


        Lentamente, o terceirista enterrou a pá no monte de terra e jogou-o dentro da cova, repetindo o movimento pelos minutos seguintes. O som da terra caindo sobre o saco plástico ecoava em meus ouvidos, e comecei a considerá-lo como o pior som que já havia escutado alguma vez. Era arisco e desumano, ácido e agudo demais; e naquele momento eu já estava começando a pensar que jamais me livraria daquela sensação.


        Ao olhar para a cova, me lembrei das dezenas de pesadelos que dominaram minha mente pelas semanas anteriores. Pesadelos em que eu era enterrada viva em uma cova bem mais estreita do que aquela, com terra caindo aos poucos sobre o meu corpo, enquanto o mundo começava a desaparecer a minha volta. O som da terra contra o saco negro começou a me dar náuseas, me lembrando de um passado irreal, onde tudo o que eu podia ouvir eram os gritos demoníacos que vinham do lado de fora do grande buraco em que estava mergulhada.


        Um buraco cheio de promessas e orações.


        Exatamente como aquela cova.


        - Wanda? - Lola olhou na minha direção.


        - Eu estou bem. - Dei de ombros quando a mão dela alcançou a minha.        - Só estou sentindo um pouco de saudade...


        - Nós também estamos. - Iza tentou sorrir, me acalentando aos poucos. - Ele precisava de algumas palavras nossas.


        - Aquele filho da mãe... - Effie demonstrou seu amor da maneira habitual.


 


        Aos poucos a terra que Oliver jogava sobre o saco foi chegando a superfície, e ele começou a espalhá-la com a pá para que cobrisse a forma da cova. De maneira simples e discreta, a única impressão que Saulette deixara na superfície da Terra fora um simples monte escuro perto de um pacífico ipê, às margens de um chafariz de estátuas estranhas em meio à praça.


        - É só isso? - Lucas pareceu um pouco decepcionado.


        Todos se entreolharam, cada um pesando as consequências de deixar aquele túmulo sem nem ao menos uma pequena lembrança.


        - Pensei em deixar algo assim. - Oliver falou num tom fraco, antes de alcançar a bolsa peluda marrom de trás da árvore e revirá-la vagarosamente. - Aqui está...


        Quando olhei uma segunda vez na direção do túmulo, Oliver havia pousado um pequeno bloco de granito em cima do monte de terra escura, fazendo com que agora parecesse um leito aceitável. Por cima do granito, em letras fundas e enganchadas, um simples Requiescat in Pace jazia frio e objetivo, como um verdadeiro gesto de despedida.


        - Acho que está bom. - Minha voz saiu um pouco tremida. - Obrigada, Oliver. - Olhei na direção dele, dando um aceno rápido antes que seu olhar pudesse me alcançar.


        - Não foi nada. - Eu ainda pude ouvi-lo responder.


         O sol ia subindo pelo céu, enquanto Iza desabava em um choro fraco e profundo no ombro de Effie, deixando que suas lágrimas escorressem pela blusa da garota. Já Lucas Nodle parecia no ápice de sua palidez, com o nariz avermelhado e os olhos espremidos, tentando esconder a frustração que tudo aquilo lhe causava. Quanto a mim, eu evitava olhar na direção de Oliver temendo que ele me enchesse de perguntas.


        Não.


        Eu estou mentindo.


        Para ser franca, eu temia que Oliver me enchesse de respostas, pois as perguntas eu possuía. Semi-tragadas no fundo da garganta, me deixando com desejo de engoli-las a todo o custo. Perguntas cheias de nós e com um quê de desculpas; perguntas com tudo o que eu tinha e sem a certeza de mais nada; perguntas que, no dia anterior, eu teria cuspido-as sem nem ao menos pensar. Mas esse é o dia de amanhã, certo? E as horas que passaram entre um momento e outro, os minutos que se arrastaram deixando minha cabeça a sós com o coração.


        ...Um grande erro.


        O que isso faria de mim? O que as respostas fariam de mim e daqueles que estavam comigo?


        Se não disse ainda, posso dizer nesse momento que perguntas são como armas. Você pode até mesmo saber a estrutura delas, do que são feitas e quando foram construídas. Mas às vezes o gatilho se encontra às cegas, e o tiro sai pela culatra. A bala se arrasta até o alvo, e o alvo pode ser um milhão de coisas. Desde um simples coração palpitante, até um explosivo roturante, com a capacidade de detonar o alvo e a si mesmo.


        Saulette podia ser patético, esquisito, e irremediavelmente hipócrita, mas eu podia considerá-lo como um daqueles corações palpitantes que não gostaria de acertar em meio a uma explosão. E, o grande problema àquela altura é que eu duvidava que o garoto pudesse ressuscitar na manhã seguinte como Kamilla fizera. E mesmo que fosse possível, de nada adiantaria agora que o seu cadáver estava enterrado em pedaços a dois metros da superfície da Terra, lembrando que fomos nós que deixamos o pobre coitado em pedaços; e o que doía mais depois de tudo é que eu não me arrependia disso. Que Saulette descansasse em paz, mas eu tive que despedaçá-lo.


        Agora, o terceirista Oliver Vimmond queria me dar algumas respostas que eu havia exigido com afinco na manhã do dia anterior. Mesmo que o meu ódio por ele tivesse nascido da noite para o dia, eu não podia deixar de pensar no que ele poderia me meter. Era provável que ele me dissesse que fazia parte de uma Ceita religiosa, onde as pessoas matam umas as outras e cortam os seus membros em pedaços antes de enterrá-los na praça mais próxima.


        Uma das minhas perguntas era como ele era capaz de saber tanto sobre o que acontecia ao redor de Sant`Anna. Essa, eu não fazia ideia de como ele iria responder; e devia ser por conta disso que aquela era a maior pergunta; Oliver poderia me responder qualquer coisa.


        "Ele é capaz de matar, Wanda" Meu subconsciente lembrou. "E ele fez você ser capaz de matar."


        Então Oliver não era confiável. Nunca seria.


        E era completamente paranoico da minha parte possuir perguntas a um cara com complexo de paranormalidade. Ele podia ser um maníaco com sede de sangue e alucinado por contos fictícios. Ou, o que poderia ser pior, ele podia ser um cara normal rindo da nossa cara.


        Eu, Wanda Wyrda, podia sentir o olhar de Oliver Vimmond queimando em minha nuca naquele momento, e ele poderia estar perscrutando minha mente naquele exato minuto, ciente das dúvidas que me sondavam e tramando os próprios planos quanto a elas.


        Tentei manter meu olhar em qualquer outro lugar que não fosse o campo de vista de Oliver, me virando para longe das gurias e do túmulo, encarando o largo da praça enquanto me deixava levar pelo o som conciliador dos carros no trânsito. Sentindo o sol queimar a pele e fechando os meus olhos ao me lembrar do que estávamos fazendo, do corpo que estávamos enterrando. Porque Saulette podia não fazer tanta falta assim, mas o sangue em minhas mãos estava me deixando cega. Ele confundia os cheiros que eu ainda sentia, e as emoções que eu podia detectar através deles. Algo que sempre esteve presente em minha vida, de repente ficara confuso demais.


        - Dábliu! - Iza chamou minha atenção, segurando o meu cotovelo com força e fazendo com que eu me voltasse para ela. - Você precisa ver isso.


        - Ver o quê?


        - Lá, olha! - A loira parecia excitada, sussurrando e dando pulinhos enquanto eu me virava ao lugar indicado. - Do outro lado da praça!


        De início eu apenas revirei os olhos, pensando que a garota poderia estar me mostrando uma vitrine de loja ou algum pássaro raro. Até que pude notar a forma conhecida saindo de trás de uma árvore a alguns metros de onde estávamos. A estatura alta e os ombros largos, os cabelos claros e o formato sádico dos lábios; o brilho maligno nos olhos e o formato dos braços. Tudo em sua imagem me lembrava exatamente do que havia visto nas escadas naquele dia fatídico, exceto que faltava uma mala.


        - Onde está a maleta dele? - Franzi as sobrancelhas.


        - E do que isso importa? - Iza ainda explanava com excitação. - Ele está aqui, não está?


        - Sim, Iza, ele está. - Revirei os olhos novamente. - Vá contar para Effie.


        Deixei que a loira saísse saltitando até o túmulo, esperando que ela contasse à Effie que o estranho Michael estava mais uma vez entre nós. E eu esperava sinceramente que a garota cumprisse com o combinado quando Michael a chamasse, tentando tirar alguma informação dele garganta afora. Podia parecer maldade, mas eu estava cheia de perguntas naquele momento. Perguntas que eu não gostaria de jogar em Oliver, devido ao ódio extremo que agora eu era capaz de sentir por ele.


        Perto de uma árvore de tronco enegrecido, fui capaz de assistir de longe enquanto Effie caminhava na direção do estranho garoto do outro lado da praça. Ele parecia tentar sorrir na direção dela enquanto se aproximava em passos largos. Eu desviei o olhar quando se encontraram, oferecendo privacidade a ruiva ao voltar à área do túmulo. E lá, eu encontrei um solitário Oliver, a última pessoa que desejaria encontrar.


        - Onde estão as garotas? - Desviei o olhar dele, fazendo a pergunta enquanto olhava para o chão.


        - Foram atrás da ruiva. - Pude ouvir sua voz ao me virar de costas. - Vão ficar espiando enquanto ela fala com o Voltaire.


        Num súbito ar de surpresa, me virei rapidamente na direção dele, percebendo que Oliver havia andado alguns passos imprevisíveis na minha direção. Quando fui dar por mim mesma, estávamos com os narizes colados e olhares de surpresa.


        - Voltaire... - Minha respiração descompassada entregou completamente meu amparo. - Você disse Voltaire.


        - Sim, eu suponho que tenha dito. - Oliver franziu as sobrancelhas, desviando o próprio olhar do meu.


        - Você conhece Michael? - Eu tinha vontade de socá-lo.


        - Você não? - Ele sorriu, com uma expressão brincalhona que em qualquer outro momento poderia ter me alegrado. - Supondo que a garota loira foi te avisar da presença dele, achei que talvez você o conhecesse.


         - Errado. - Neguei veemente. - Apenas Effie o conhece a ponto de ir cumprimentá-lo.


        "Wanda, o que está fazendo?” Meu subconsciente surgiu novamente. "Nada de perguntas!"


        Silenciei-me de imediato, virando-me de costas para Oliver e caminhando até a árvore na qual havia me encostado anteriormente para observar o trânsito ao longe. Respirei fundo, pensando em todo o conhecimento que o garoto deveria possuir, do qual eu não chegaria nem perto. Simplesmente não podia arriscar ter mais mortes em minhas mãos, ou mais sangue na sola do all star. Era um daqueles paradoxos constantes, em que você decide o que vale a pena perder para ganhar, e ganhar para perder.


        - Onde está o Lucas? - Gritei na direção dele, temendo que pudéssemos ficar a sós por muito mais tempo.


        - O gay? - Pude ouvir o tom de dúvida em sua voz. - Foi com elas.


        Voltei ao meu silêncio faminto, me contentando com os sussurros que era capaz de ouvir da conversa acirrada entre Effie e Michael, e tentando ignorar por tudo o garoto que se aproximava aos poucos às minhas costas. Respirando profundamente, deixei que Oliver chegasse mais perto enquanto o vento brincava com o meu cabelo, jogando-o contra os meus lábios e me fazendo tragá-lo sem querer.


        Então, ali estávamos.


        Eu e o Oliver. Oliver e eu. Lado a lado. Sendo que eu não era capaz de encará-lo.


        - Wanda. - O terceirista chamou por mim.


        - O que é?


        - Por favor...


        - O que você quer?


        - Olha para mim.


        - Não.


        - Olha para mim. - Sua súplica estava realmente me causando pena.


        - Por quê?


        - Porque eu gosto quando você olha para mim.


        A resposta simples e sem delongas me causou arrepios. Sua voz forte e pacífica estava causando um certo desastre dentro de mim, o qual eu não teria muito tempo para ajeitar antes que sua próxima súplica chegasse. Então deixei que o vento passasse por nós dois novamente, levando embora qualquer vermelhidão que eu ainda tivesse no rosto.


        - Não vai olhar para mim? - Pude ouvir sua voz novamente.


        Suspirando pesarosamente, deixei que minha irritação anuviasse antes de me virar em sua direção, ciente de que Oliver poderia me convencer em um milhão de formas a me juntar a ele.


        - O que você quer? - Minha voz saiu tão cansada que a última palavra escapou num sussurro.


        - O que você quer? - O cabelo castanho tomava a forma ao redor do rosto dele, e as lentes só complicavam a minha vida ao aumentar seus olhos castanhos. - Achei que fosse você que queria alguma coisa de mim...


        - Foi você quem me mandou te olhar. - Bufei.


        - Oh, certo. - Oliver franziu as sobrancelhas, igualmente cansado. - Eu não consigo entender porque Wanda Wyrda não quer me olhar.


        - Vamos ser sinceros, Oliver. - Alisei meus jeans em um espasmo nervoso, tentando ignorar os risinhos irritantes que Effie lançava a Michael. - Eu não quero suas respostas. - Bati o pé no chão.


        - Mas ontem você...


        - Por alguma razão, ontem eu desejei. - Fiz força para admitir, dando de ombros. - Mas hoje Saulette está morto. - Me virei na direção do túmulo. - E eu não quero mais cadáveres.


        - Ninguém quer cadáveres, Wanda - De súbito, Oliver começou a andar de um lado ao outro. -, mas eu preciso que você entenda...


        - Não quero entender. - Cruzei os braços, parecendo uma criança de dois anos. - Eu só quero esquecer, ok?


        - O quê? - Ele parecia realmente transtornado. - Isso não é algo que você possa...


        - Eu posso ignorar sim, Oliver. - Andei até ele, cutucando o seu peito com o indicador. - E, adivinha só? - Me virei depressa. - Eu vou.


        Segui caminhando na direção da rua, querendo sair daquela praça imunda a todo custo. Ignorei completamente as estátuas que me encaravam com seus olhos vazios, e tomei uma nova rota na direção do carrinho de cachorro quente. Ao longe, eu podia ouvir Oliver me chamando e correndo em minha direção, por isso apressei o passo o máximo que pude. De alguma forma, não foi suficiente.


        - Wanda... - Senti quando ele parou sua corrida ao meu lado.


        - Sim? - Estanquei o passo.


        - Eu sinto muito por tudo isso. - Oliver tocou o meu braço devagar, fazendo-o formigar ao esfregar o polegar contra a minha pele. - Eu sei que não é assim que os amigos devem ser enterrados. - Seu olhar parecia tão sincero que fui forçada a desviar. - Mas foi um...Sacrifício necessário.


        Sacrifício? Eu não gostava dessa palavra. E a maneira com que Oliver havia dito não fazia dela mais ou menos importante. Descobri que a odiava. Descobri que o odiava também.


        - Eu já entendi. - Afastei o meu braço rapidamente, ignorando quando a mão dele permaneceu parada no ar, num gesto de decepção.


        - Hey, por favor... - Ele insistiu, e pensou melhor antes de me tocar mais uma vez, deixando que ambas as mãos estancassem no ar. - Eu não acho que você deva me perdoar.


        - Então somos dois. - Ri com escárnio.


        - Eu sei que você não aprova os meus métodos. - Ele correu a minha frente, me impedindo de avançar.


        - Não estou de julgando, Oliver! - Tentei desviá-lo.


        - Você diz que não. - Ele me segurou pelos ombros. - Mas eu sei que está.


        Bufei indignada, retesando ao afastar as mãos dele dos meus ombros e grudando minha bolsa mais perto do corpo. A verdade é que eu estava com medo do que ele sabia, e estava com medo do que eu poderia me transformar caso acreditasse nele.


        - E talvez, quando você chegar em casa agora - O garoto umedeceu os lábios, trancando a respiração e me olhando de maneira estranha. -, vai fazer uma fanfiction com a intenção de me matar. - Ele falou simplesmente.


        Assim que compreendi o significado de suas palavras, meu diafragma se contraiu de imediato e eu fui obrigada a cair na gargalhada. Meu riso se espalhou pelo ar ao redor, contagiando Oliver e fazendo-o sorrir genuinamente. Tentando respirar, comprimi o meu estômago de leve ao sentir que meu rosto se avermelhava, e eu devia estar parecendo uma garota patética rindo no meio da praça com os cabelos ao vento.


        - Me desculpe. - Tentei me recuperar rapidamente. - E eu não posso dizer que não tenha pensado em fazer uma fanfiction com você...


        - Tentando me matar? - O garoto ergueu as sobrancelhas.


        - Não exatamente. - Dei de ombros.


        O clima leve e divertido se dissolveu e a tensão surgiu. Eu pude sentir a vermelhidão voltando aos poucos ao meu rosto, e meu estômago ronronar de nervosismo. Desviei o olhar ao me dar conta que havíamos nos encarado por tempo demais, e agora eu precisava de um tempo a sós com os próprios pensamentos. Foi quando eu descobri que Oliver era um peso dentro de mim, sem ser maligno ou beligno, ele era simplesmente algo que me custava a entender. De alguma forma, ele me fazia ter que abrir mão da percepção dos cheiros apenas para poder prestar atenção nele.


        - Por favor - Oliver suplicou uma última vez. -, me deixe te contar o que eu sei.


        - Olha... - Cruzei os braços novamente. - Eu sei que ontem eu te pedi a verdade e tudo o mais - Deixei que ele desviasse o olhar. -, mas hoje eu não quero mais nada, ok?


         Quando Oliver baixou o olhar, eu tive a chance de encará-lo por tempo suficiente pela primeira vez. Hoje ele usava um moletom preto da Atari e discretos vans no tom verde escuro, além de um escapulário no pescoço e uma estranha pedra cinzenta amarrada no pulso. Definitivamente, cada parte do que ele aparentava ser me instigava de uma maneira assustadora, assim como cada parte do que eu poderia ser estando com ele.


        - Tudo bem. - Oliver encolheu os ombros, mordendo o lábio inferior. - Mas acho que agora eles virão atrás de você. - Franzindo o nariz, ele se aproximou ainda mais de mim. - Tome cuidado, Wyrda.


        - Eu vou. - Falei, simplesmente, e desejando imediatamente que não o tivesse feito.


        Aos poucos, Oliver foi caminhando para longe de mim, carregando sua bolsa marrom peluda com todos os mistérios do mundo lá dentro. E eu permaneci a sós no canto da praça, tentando não pensar em tudo aquilo que havia acabado de perder pelo meu medo e teimosia. Tentando não pensar em Saulette e no mal que se aproximava de nós, trotando pelas esquinas escuras e chegando cada vez mais perto.


        - Wanda!


        Sabe aquele momento crucial que você desejaria usar para pensar? Aqueles momentos de reflexão que desejaria ficar a sós consigo mesma. Então...Eu estava tendo um desses momentos importantíssimos da minha vida, quando, mais uma vez, a louca da Iza Bones me interrompeu no ato. Trajando seu extremo senso de humor e horrendo porte de excitação, a loira saltou para cima de mim em meio a praça, puxando as minhas orelhas sensíveis pelas costas e ainda me dando um beijo estalado na bochecha.


        - Você não vai acreditar! - Iza saiu de cima de mim ofegante, sorrindo de canto a canto e olhando de esguelha na direção de Lola, que se aproximava em passos lentos. - A Effie ganhou um presente do Michael!


        - Sério? - Eu realmente não estava acreditando...


        - Sim! - Iza pulava feliz. - Eles vão se casar!


        - Cale a boca, Loira! - Lola revirou os olhos, chegando até nós duas e lançando um sorriso em minha direção. - Michael deu uma pulseira para ela.


        - Uou. - Eu ainda estava surpresa demais para tomar qualquer reação. - Uma pulseira?


        - É. - A morena alisou os jeans e apoiou o cotovelo em meu ombro. - E ele ainda disse que estava se contendo para não levá-la para cama...


        - HEY!


        Rapidamente, Lola se afastou de mim, cruzando os braços e se apoiando na árvore mais próxima. Ali, a garota se fez de desentendida enquanto assobiava uma canção qualquer. Iza, por sua vez, entrou em pânico. De imediato, a loira se foi para as minhas costas, achando que o melhor esconderijo seria uma garota como eu, trocentas vezes menor do que ela.


        O motivo, obviamente, era uma ruiva esfumaçando que se aproximava a passos largos de onde estávamos. Seus olhos castanho-escuros jaziam ampliados enquanto ela caminhava com raiva na direção de Lola.


        - Não devia ter ficado espiando! - Effie gritou na direção da morena.


        - Eu não fui a única! - Lola tratou de se defender. - A Iza também! - Ela apontou para a loira.


        - Eu? - Iza imediatamente saiu das minhas costas. - O Lucas foi primeiro!


        - Ah é? E cadê ele agora? - Effie olhou para os lados.


        - Sei lá! - A loira se defendeu. - Mas foi ele que mandou.


        Eu duvidava muito que tivesse sido, mas como Lucas não estava presente para se defender, eu acenei indicando que estava do lado de Iza. E caso você, caro leitor, esteja se perguntando como é possível essas criaturas terem uma conversa tão infantil, saiba que amigos são para essas coisas. Para ser sincera, quando estou na companhia das minhas amigas, é como se o mundo de repente não possuísse critérios, e todas as coisas perigosas fossem feitas de algodão doce.


        - Vocês duas me pagam! - Effie Guess, a ruiva esquentada, bufou tragicamente.


        - Que seja, Ef. - Iza revirou os olhos.


        Fomos caminhando para fora da praça aos poucos, cada uma com os seus respectivos problemas. Effie ainda discutia de vez em quando com Lola e Iza, onde ambas afirmavam ter sido o Lucas que teve a ideia. Achando muita graça de tudo, eu apenas sorria quando a ruiva me fazia afirmar que ela estava certa, e por dentro eu me diminuía cada vez mais, pensando em tudo o que havia dito para Oliver e tudo o que eu havia deixado de dizer.


        Quando enfim chegamos à esquina da Avenida Independência, eu já estava começando a refletir sobre fazer ou não uma fanfiction sobre um tal de Oliver Vimmond. Até que senti o toque de Iza no meu cotovelo, e seus gestos nem um pouco chamativos sobre o meu ombro.


        - Olha! - A loira sussurrou.


        Percebi um pouco tarde demais que ela estava apontando para Lola, a morena que agora zanzava de maneira tola em meio à calçada, olhando para o portão do colégio por onde saia uma torrente de alunos. Percebi que dentre eles estava Liam, um garoto da nossa turma por quem Lola era apaixonada desde que se entendia por gente. Liam Randolph devia estar na lista mundial de "pessoas pegáveis" do segundo ano do ensino médio. Pelo menos, nós sabíamos que ele possuía o costume de trocar de garota com frequência, e ia a todas as festas oferecidas pela "gang popular" do terceirão. O que era bem longe de onde estávamos, certo?


        O garoto possuía curtos e sedosos cachos bagunçados, e um sorriso que era capaz de fazer qualquer garota fraquejar. Os olhos azuis podiam ser reconhecidos à distância, assim como o seu físico bom demais para ser verdade. E, mesmo com tantos talentos, ele ainda me cheirava estranho, e um pouco hipócrita às vezes. Mas Lola vivia dizendo que era apenas porque ele era um adolescente, e todos os garotos adolescentes costumavam ser assim. O que era uma frase inadequada, já que eu havia descoberto recentemente que Oliver não me parecia ser nenhum um pouco hipócrita.


        - Opa. - Effie foi até Lola e deu-lhe alguns cutucões.


        - O que foi? - A morena resolveu acordar do transe.


        - Er... - A ruiva pigarreou. - Eu acho que ele está vindo na nossa direção.


 


        Segurei o braço de Iza, olhando na direção do portão do colégio sem realmente acreditar. Até ver o garoto de olhos azuis sorrindo na nossa direção, se aproximando com todos aqueles músculos e dentes perfeitos. Eu queria beliscar a mim mesma, mas Lola já estava apertando minha mão forte demais. Isso foi o suficiente para que eu sentisse que era real, e Liam Randolph realmente estava vindo na nossa direção.


        - Lola? – Ele sorriu para a morena vacilante assim que chegou onde estávamos. – Me desculpe – Liam se virou para nós. -, eu devo ter esquecido o nome de vocês.


        - Sem problemas. – Effie respondeu por todas nós, corando absurdamente.


        - Lola? – Liam chamou novamente.


        A morena estava prestes a ter um ataque epilético no meio da calçada, onde seu rosto se inchava com vermelhidão e suas mãos pareciam se contorcer automaticamente. Depois de alguns minutos, ela finalmente pôde olhar na direção dele, com o calor sumindo de seu rosto aos poucos enquanto um sorriso mínimo surgia nos lábios. Lola passou a mão pelo cabelo negro e liso de maneira nervosa, mordendo o lábio inferior em seguida.


        - Oi, Liam. – Ela conseguiu murmurar.


        - Hey, ãh – O garoto olhou estranho para nós, enquanto se aproximava mais de Lola para poder conversar com ela. -, eu queria saber se você sabe onde está o Saulette.


        - O...O quê? – Os olhos da morena se ampliaram.


        - Eu, ãh – Liam parecia estar se constrangendo. -, quer dizer, você sabe onde ele está?


        - Quem? – Lola não cabia em si.


        - Saulette. – O garoto pronunciou novamente.


        - Ãh...- Ela estancou.


        - Nós não o vimos hoje. – Resolvi intervir na conversa.


        - Ah, ok. – Liam cabeceou. – Qual é o seu nome mesmo?


        - Maria. – Respondi, com um sorriso cínico (já que nunca fui capaz de fazer outro).


        - Certo, obrigado. – Ele acenou para mim, antes de se virar para Lola e pigarrear fortemente. – A gente se vê, Lola? – Ele ergueu as sobrancelhas.


        - C-como? – Iza chutou a morena. – Ah, claro!


        Então observamos Liam Randolph se afastar de nós, como se jamais tivesse se aproximado. E, de repente, o mundo estava estranho demais para mim. Tão estranho que eu temia que passasse a encarar isso como algo normal.


        - O que foi isso? – Effie olhava petrificada para as costas de Liam.


        - Algo incomum. – Lola sussurrou. – Mas, pelo visto, não impossível.


        Ficamos observando enquanto o garoto caminhou até um grupo de garotas risonhas, aparentemente do terceiro ano. Ele cumprimentou-as e beijou uma delas nos lábios, nos fazendo desviar o olhar rapidamente. Um pouco resignada, Lola se junto a Effie na caminhada trôpega, e logo todas estávamos caminhando para longe do colégio.


        - Minha mãe vem me buscar. – A morena falou, simplesmente, antes de sacar o celular do bolso e levá-lo à orelha.


        - Preciso pegar um táxi para casa.


        - E eu um ônibus.


        Cabeceei na direção delas, andando em zigue e zague pela calçada em meus all stars de bigodes e apreciando a forma com que o vento batia em meus olhos. De súbito, me encontrei caminhando na frente da livraria pela qual passei mais cedo naquele dia, onde o vendedor estava arrumando as mochilas atrás da vitrine.


        - Até amanhã. – Lola se despediu de nós, antes de entrar no carro da mãe que já estava buzinando perto dali.


        - Estou indo também. – Iza se foi igualmente, correndo depressa até o ponto de ônibus.


        Com isso, apenas Effie e eu sobramos, caminhando devagar pela calçada e observando o trânsito demorado. Até que me lembrei de como a manhã de Effie transcorrera, e que havíamos dito à ela que se aproximasse mais de Michael, pois só assim conseguiríamos concluir se ele poderia ou não ser o assassino da Kamilla.


        - Effie? – Chamei por ela, zigue zagueando até aonde a ruiva estava e dando-lhe um cotovelasso.


        - Sim? – A garota parecia estar apreciando o vento no cabelo.


        - Como foi a sua conversa com o Michael?


        - Foi um pouco estranha, eu acho. – Effie se virou na minha direção, com um leve sorriso nos lábios. – Ele parecia estar querendo me ver mais vezes.


        - Isso não me soa nenhum pouco estranho. – Foi a minha vez de sorrir timidamente.


        - Hm, eu não sei, Dábliu. – A ruiva deu de ombros, suspirando pesado. – Às vezes parece que ele é um cara ruim, outras vezes não. – Ela refletiu.


        - Como assim? – Franzi as sobrancelhas.


        - É como se ele estivesse me arrastando para algo. – Effie falou. – Mas, ao mesmo tempo, ele não quer que eu vá.


        - Tudo bem. – Eu suspirei. – Agora eu concordo com você.


        - Viu? – A garota tentou sorrir. – Tudo muito confuso.


        - Mas ele te deu um presente, não deu? – Sorri para ela, lembrando-lhe que nem tudo estava por água abaixo.


        - Sim, ele deu. – Effie mordeu o lábio inferior, como se estivesse lembrando do momento. – Você já viu?


        - Nope.


        De maneira eficiente, a ruiva ergueu o braço na altura dos meus olhos para me mostrar o tal presente. Parando na rua, segurei seu pulso no ar para apreciar o que quer que fosse aquilo do qual as meninas falaram tanto.


        - É simples, mas eu gostei... – Effie murmurava.


        Havia uma pedra cinza e fosca amarrada em seu pulso, com uma pequena corrente de prata envelhecida. E, de alguma forma, isso me lembrava de algum objeto muito parecido que eu havia vislumbrado aquele dia. De início eu pensei ser um Déjà Vu, talvez de alguma pulseira que eu tivesse visto em meus sonhos, para logo me lembrar da pedra que perscrutei amarrada no pulso de Oliver, com uma pequena tira de couro velho.


        Em minha mente, as pedras se viam idênticas.


        E agora eu teria que falar com ele de alguma forma...


        - Dábliu? – Effie me cutucou. – Algum problema?


        Oliver havia chamado Michael de “Voltaire”, o que me dizia que esse deveria ser o sobrenome do garoto. O que, por acaso, também me dizia que o terceirista o conhecia de alguma forma. E o que Michael poderia ser? Pois em minha mente eu já tinha a plena certeza de que ele não estudava no colégio, e também não poderia ser um professor, coordenador ou estagiário. E tudo isso me fazia voltar a Oliver, que tinha a mesma pedra que agora jazia no pulso de Effie. Será possível que ele teria ganhado essa pedra de Michael? Ou Oliver havia dado uma pedra a Michael que, por sua vez, havia presenteado a Effie?


        - Dábliu, você está me assustando. – A ruiva me cutucou mais vezes.


        - Sinto muito. – Resolvi respondê-la.


        - Está tudo bem?


        - Effie... – Umedeci meus lábios. – Você sabe o que o Michael faz?


        - Como assim? – Ela franziu as sobrancelhas.


        - Eu... Quero dizer... – Tentei me explicar de uma maneira que não parecesse muito intrometida. – O que você acha que ele faz dentro do Sant’Anna?


        - Dentro do Sant’Anna? – Ela repetiu a minha pergunta.


        Esperei alguns minutos, parada no meio da Avenida Independência e aguardando enquanto Effie refletia. O semblante da ruiva jazia tenso, e seus olhos estavam um pouco amargos. Seu cheiro mudou para algo enjoativo e ansioso, e demorou até que eu percebesse que estava sentindo cheiro de dúvida pela primeira vez...


        Percebi que, de alguma forma, nos últimos meses, as emoções ao meu redor começaram a ter aromas também. E não eram as mesmas emoções de sempre, como felicidade, ansiedade ou mau humor. Aquelas eram emoções diferentes...Emoções mais fortes que eu nunca pensei que poderiam possuir algum aroma que as diferenciasse.


        - Dábliu... Eu não sei. – Effie relaxou.


        - Tudo bem. – Dei de ombros. – Você pode perguntar a ele da próxima vez que o vir, certo? – Não que eu estivesse muito ansiosa para uma resposta como aquela.


        - Claro. – A ruiva sorriu radiante na minha direção, como se a ideia de ver Michael novamente lhe caísse bem. – É exatamente o que irei fazer!


        - Tudo bem. – Sorri de leve.


        Aos poucos eu ia montando um mural em minha cabeça, com as respectivas fotos de Michael, Oliver, Kamilla e o estranho que vimos no armário de vassouras. Eu grudei todas elas no mural, mentalmente, com fita adesiva. E então deixei-as expostas ao sol, tentando entender toda e qualquer ligação que houvesse entre elas. E, mesmo depois de tantas semanas batendo a cabeça contra a parede, eu ainda tentava descobrir como isso poderia ficar melhor...



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Autor(a): clarawyrda

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