Fanfic: Sant' Anna | Tema: Original
Por incrível que pareça, tudo começa às sete e vinte da manhã (o horário mais assustador do dia) quando as pessoas normais de quinze anos saem para o colégio a fim de "aproveitar" mais um dia letivo.
Depois de fazer um check-up, costumo desligar o aquecedor e fechar a porta do quarto.
– Já vai? - Lena perguntou.
Essa é minha prima. No auge dos dezessete anos, nunca foi do tipo que traz desaforo pra casa. Para o nosso azar e benefício, estudamos no colégio Sant`Anna, a prisão de víboras da Avenida Independência, bem perto de casa.
– Já vou. - Respondi a ela, fechando a porta e vestindo o casaco. - Pretendo chegar a tempo do primeiro período.
Lena deu um sorrisinho sem graça que entendi como uma deixa para que eu fosse embora logo.
Como sempre, botei o pé direito na soleira do corredor me preparando para a grande batalha do dia.
Temos uma cadela chamada Layla, uma vira-lata pura que costuma ser dócil apenas quando quer. Suponhamos que ela raramente o queira.
E havia o ápice de fúria da Layla, que consistia no exato momento em que eu punha meu pezinho na soleira do apartamento seiscentos e um. Quando isso acontece, é impossível correr mais do que ela.
A baba sai da boca escancarada para as orelhas enormes ao vento, enquanto Layla corre na direção da porta (onde eu costumo estar nessa hora), indo me matar, me castigando por estar saindo de casa.
Numa corrida desesperada, consegui sair, como faço todos os dias, e fechar a porta antes que o dinossauro Layla pudesse sair do Jurassic Park. Pedi desculpas à ela, como boa residente que sou, para em seguida apertar o botão do elevador, esperando que ele parasse em meu andar.
Toda a vez que o elevador chega, as portas se abrem mostrando três ou quatro empresários vestidos socialmente e me encarando como se eu fosse a Lady Gaga vestida de carne.
– Bom dia. - Eu os cumprimento educadamente ao entrar no cômodo ambulante.
– Bom dia. - Eles murmuram em uníssono.
Para o meu azar, naquela manhã de segunda feira, o bem humorado matinal estava entre eles. Um típico quarentão tarado com pinta de entrevistador.
– Bom dia, Wanda. - Ele sorriu para mim, ajeitando a gravata sob a gola. - Indo para o colégio?
"Não" pensei. "Fugindo de casa às sete da manhã."
– Prova hoje. - Eu disse simplesmente.
– Ah, e você estudou? - o bem humorado perguntou.
– Claro. - Nunca fui uma pessoa muito honesta.
Então saí do elevador, aspirando o ar ao redor com resquícios de café. Os empresários continuariam mais abaixo no estacionamento, de maneira que eu estava ali sozinha no átrio.
Abro a porta de vidro e o minuano chega cortando sem piedade. Uma típica manhã de inverno: com cheiro de frio, umidade e café.
Passo pela segunda porta de vidro que dá para a rua... O céu ainda estava negro, cor de Outono-Prematuro. E os cheiros eram de asfalto, sereno e liberdade.
Identifiquei a grande construção familiar que mais parecia uma fortaleza do Sant`Anna na esquina da Independência. Como de costume, o sinal estava parindo e demorou para abrir. Atravessei a rua pensando em quanto tempo ainda tinha livre para que Lola começasse a enviar sms perguntando pelo meu atraso.
E quando finalmente cheguei ao outro lado, suspirei aliviada por ainda não ter recebido nenhum toque. Segui em frente pegando a carteirinha de passe para passar pelas catracas do castelo sombrio.
Eu estava irremediavelmente adiantada, e estupidamente sonolenta.
Morrendo de frio, entrei no saguão do colégio entapetado de vermelho, onde a umidade chegava até os ossos e o cheiro de "poeira medieval" vinha misturado com giz e tecnologia de catracas.
Eu passei por uma delas, passando meu cartão pela superfície fria e metálica e esperando que a luz verde acendesse. Simplesmente odiava aquilo! Além das catracas não terem nada a ver com o edifício do tempo da ditadura, a existência delas fazia com que tudo parecesse ainda mais com uma prisão.
Agora era fácil... Só precisava seguir pelas escadas escuras e catedráticas, numa penumbra predominante e conhecida. Seguindo pelo corredor à esquerda, notei que todas as turmas já estavam em suas salas.
Passei pelas grades do corredor branco, fechando os olhos por um momento para me acostumar com a luz, e entrei na primeira sala à esquerda... Onde os rostos conhecidos forneceram a agradável sensação de segurança.
Puta merda! Como aquele povo conseguia estar tão elétrico às sete da manhã?
Vários estavam de pé, conversando em grupo e ignorando completamente a mesa do professor ainda desocupada. Passei por alguns deles ao atravessar a sala e chegar onde Lucas estava ao lado da minha carteira. Sorri ao largar minha bolsa.
– Bom dia. - Desejei à ele.
Primeiramente, Lucas não ouviu. Eu conseguia ouvir o ritmo de "Born This Way" irradiando de seus fones de ouvido.
– BOM DIA. - Tentei novamente.
– O quê? - ele perguntou, puxando seus fones.
Fiz um gesto para que esquecesse, e me virei no momento em que Lola veio ao meu encontro.
– Tenho novidades! - Ela exclamou. Imediatamente, Lucas afastou seu Ipod nos encarando.
– Quero saber. - Ele insistiu.
Lola revirou os olhos.
– Ah, vamos. Ele vai saber de qualquer jeito. - Eu disse à ela.
– Você vai contar? - A garota ergueu as sobrancelhas.
– Não. - Botei meu fichário embaixo da carteira. - Ele descobre sozinho.
Lucas resmungou alguma coisa, enquanto Lola lançava um olhar desconfiado à ele.
Se você estiver se perguntando, era sempre assim. Quando se tratava deles, nada de cumprimentos. Nada de coisas honoráveis como "Bom Dia" ou "Como você está?". Sempre diretos no assunto, sem enrolações. E demorou para que eu me acostumasse com isso.
– Hey, Dábliu. - Effie se aproximou, como um borrão cor-de-rosa na minha frente. - Tu viu que o Ciro postou na nossa fanfiction?
– Eu recebi o sms. - Sorri para ela. - Mas ainda não li.
Logo logo você irá perceber que "postagens" aparecem sempre nessa narrativa. É um mau hábito que possuímos.
– Terminei a fanfiction de verão. - Anunciei à elas. - Só não consegui postar porque o site está fora do ar...
– É uma pena. - Lola choramingou. - Queria saber como eles ficam juntos.
Effie deu de ombros, e começou a me encarar com o típico olhar assassino.
– Tu precisa começar a nova fic, Dábliu. - Ela sempre me joga um balde de água fria.
Se você não sabe o que é fanfiction, é o seguinte:
É uma história "aloka" que, normalmente, é baseada em uma banda, série ou livro.
Entendeu? Existem algumas pessoas drogadas nesse mundo que passam dia e noite na internet escrevendo e postando histórias fictícias baseadas naquilo que gostam.
– Cadê a Iza? - Effie perguntou.
Digamos que a Iza seja a ESSENCIAL do grupo. No sentido literal.
Ela ganhou esse rótulo a algum tempo atrás, num post que eu fiz para a nossa fic.
Temos tanto fanfictions individuas quanto em grupo, mas isso será explicado depois.
– A aranha está a solta. - Lucas alertou.
Essa frase é um dispositivo capaz de levar a turma inteira aos seus lugares em poucos segundos.
O Super-S, mais conhecido por nós estudantes como Grande-Aranha-Nodosa, entrou na sala de aula do jeito ameaçador de sempre.
Um fato: suas mãos sempre estariam sujas de giz, ainda que aquele fosse o primeiro período da manhã. Super-S costuma dar suas explicações no quadro na velocidade da luz. E eu duvido que a Física Dinâmica possa explicar como ele faz isso.
O cara é tão rápido, que às vezes ele mesmo se perde. Para variar, Lola adorava ele.
Como sempre, me sentei ao lado do Lucas esperando que ele tirasse sua mochila xadrez de cima da minha mesa. Geralmente levava um tempo para ele perceber que eu estava esperando, mas nessa segunda-feira Lucas estava razoavelmente atento.
A voz forte e sonífera da Aranha-Nodosa soou pelo perímetro da sala. Estava claro para nós que Super-S havia iniciado seus ensinamentos de física. Quem não quisesse ouvir, que se retirasse.
Eu queria ouvir, mas não para aprender. Quando digo que a voz dele é um sonífero, não estou brincando.
Super-s tem um cabelo cortado no estilo máquina um, seus olhos são pequenos e cruéis por trás dos óculos, como os de um morcego. E sua barba branca e rala não chegava a esconder o queixo fraco.
Deixei que minha cabeça pendesse até encostar a testa na carteira, fazendo um barulho muito maior do que o planejado. Os olhos do Super-S faiscaram em minha direção em um curto período de tempo, e entendi que se repetisse o gesto, iria receber um comentário litigioso.
Antes que eu pudesse me recompor do mais próximo que um dia cheguei do suicídio, uma grande borracha branca atingiu em cheio minha nuca, me fazendo olhar para Lucas indignada e com os olhos lacrimejando.
– Foi a Iza. - Ele tratou de se defender.
Revirei os olhos me virando para trás.
Encarei a rainha do drama, mais conhecida como Iza.
Percebendo que eu estava furiosa, ela deu um risinho típico de satisfação, antes de erguer as mãos mostrando que queria dizer algo importante. Detalhe: nunca foi, e nunca será importante.
– A aula está um tédio. - Ela gesticulou.
– Ta falando sério? - Fingi estar escandalizada, mesmo não sabendo bem como se faz.
Iza fez uma cara de "não seja irônica, combina comigo, não com você".
O que era bem verdade.
Iza tem um cabelo loiro cacheado, e uma expressão que eu sempre considerei abobada. Ela tem uns olhinhos maus, mas nada diabólico além disso. E na verdade, todos a minha volta são excelentes em ironia, menos eu.
Veja bem, eu não consigo ser boa no "tom" irônico, sabe?
Eu só sei que minto... Minto um monte.
– O que você quer? - Fui direto ao assunto.
Tentar ser curta e grossa não era conveniente quando se tratava dela, mas o que eu podia fazer?
Além do mais, minha nuca ainda estava doendo...
– Tem cinco pila? - os olhos malévolos brilharam.
Fechei os meus tentando amenizar o golpe.
Isso é o que eu chamo de assunto sério.
– O dia em que eu tiver cinco pila você vai saber que entrei para o tráfico de drogas. - Relanceei para ela.
Iza continuou me encarando esperançosa, como se a justificativa não tivesse sido convincente.
– O que você acha? - Cruzei os braços e fiz a minha Poker Face.
Ela bufou indignada.
Lola nos mandou calar a boca pois, de acordo com ela, estávamos causando uma "descontração desnecessária".
– O que tu `tá fazendo? - Ela se virou para mim.
Essa é a Lola. Ela vai me matar por isso, mas vou ter que descrevê-la como nerd.
Digamos que ela seja a mais inteligente, é magra e tem o cabelo castanho. Os olhos da Lola são grandes, mas não malévolos. No geral, ela é boazinha e adora usar camisetas de desenho animado. Lola, a meiga.
(E não, isso não foi uma ironia porque eu não sei ser irônica).
– Estou prestando atenção na aula. - Dei de ombros, como se isso fosse óbvio.
– Ahaaaam. - Iza expressou sua ironia e sono ao mesmo tempo.
– Dábliu, talvez um dia eu acredite. - Lola piscou os olhos.
– E talvez um dia eu preste atenção! - Estreitei os olhos.
– Cadê o caderno? - Lucas olhou para a minha mesa.
Lucas. Resumindo: ele é apaixonado pelo próprio perfume, tem uma palheta da sorte do Michael Jackson, e adora usar camisetas da Lady Gaga.
Ah, sim. A peça essencial à uma aula de física. O caderno.
Meu caderno foi confiscado quando os coordenadores pedagógicos o Sant`Anna descobriram dados reveladores ali dentro. Algo que, definitivamente, não se tratava de conteúdos didáticos.
– Depois do último conselho, eles confiscaram de vez da minha mochila. - Expliquei à eles.
Iza pareceu decepcionada por alguns instantes, mas logo voltou sua atenção ao Aranha, o que eu jamais faria.
O caderno era uma espécie de distração. As páginas amareladas me satisfaziam ao serem preenchidas diariamente. Agora eu só podia escrever nele em casa, o que não era lá essas coisas, já que tudo o que Wanda Wyrda escreve só sai aceitável em meio ao caos.
E o Sant`Anna (sigla SA, que as vezes traduzimos como "Sanatório Aracnídeo") é a personificação do caos. Perfeito para se iniciar um romance épico em menos de dez minutos. Sem caderno, sem motivação. Mas a verdade é que costumo escrever em qualquer coisa que fique parada tempo suficiente em minha frente.
Não estou dizendo que escrevo bem, muito pelo contrário: metade do que eu escrevo é porcaria. E além disso, não sou lá essas coisas em português ou literatura.
Eu só escrevo. Simples assim. E algo me dizia que eu não perderia nada de interessante ao deixar de assistir a aula do Super-S.
Como esperado, peguei o caderno do Lucas e sai arrancando algumas folhas. Botei-as em cima da minha mesa, escolhi uma das canetas-personagem, e esperei o deus-das-palavras-úteis tocar minha humilde consciência.
Uma hora eu comecei. A caneta riscava o papel e ela era realmente boa, mas não era Bill, minha caneta-vermelha-morango. Era provável que daquele papel inocente saísse uma grande obra. A questão é que eu nunca soube.
Nunca tentei levar as palavras a diante. Acredite em mim, não foi culpa minha.
Houve uma interrupção.
Soltei a caneta na mesa ao sentir um olhar queimando na nuca. Se eu não me virasse de uma vez, Iza jogaria alguma coisa.
Encoli os ombros em defesa e me virei, a tempo de ver a loira segurando um estojo, aparentemente pesado, em fase de lançamento.
– O que é?- perguntei, antes que fosse tarde demais.
Ela pareceu decepcionada com a minha interrupção, mas logo jogou o estojo no Lucas para não ficar só no desejo.
– O que é? - perguntei mais uma vez.
– Escreve! - Ela exclamou, como louca.
Olhei para as folhas em minha mesa e percebi que a motivação havia sumido, e tudo o que eu escrevera até ali fora uma tremenda porcaria.
– Porra, escrevo o quê?
A pergunta havia sido em vão, sabe? Daquelas que você pressente que nenhuma pessoa no mundo pode responder. Daquelas que a gente faz só para ouvir um "sei lá" do indivíduo alheio.
Jamais achei que ela fosse responder. Jamais achei que a resposta que viesse dela pudesse me ajudar de alguma forma.
Não me leve a mal, não é que eu ache que os outros não tenham capacidade de me ajudar, eu apenas não acreditava que alguém pudesse me dar uma resposta tão evasiva quanto essa.
– Escreve a nossa história. - Iza pronunciou pausadamente.
Escreve-a-nossa-história.
Foi clichê, de fato. Mas em minha opinião, todo clichê é memorável.
Aquele soou basicamente como uma ordem, e algo com que eu poderia me distrair.
Entenda-me, eu nunca achei que pudesse sair algo bom disso, simplesmente aceitei que poderia preencher os meus períodos de física pelo resto do ano.
E, "A nossa história", que acabei escrevendo, acabou não sendo o que havíamos vivenciado até ali...
Mas sim o que passamos a vivenciar depois daquele dia, quando tudo mudou, e nenhuma aula do Sanatório Aracnídeo foi a mesma para nós.
A nossa história foi escrita com o Bill. Em vermelho vivo.
E ela se segue pelas próximas páginas.
Autor(a): clarawyrda
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Existem aqueles dias em que você acorda de uma maneira desagradável, e isso afeta o seu humor durante o resto da manhã. Normalmente, nesses dias de TPM fora de época, acordo com uma imensa vontade de bater na primeira coisa que estiver ao meu alcance. Bom, naquela terça-feira de inverno eu consegui rasgar dois livros, quebrar o aquecedor e ...
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