Fanfic: Sant' Anna | Tema: Original
Existem aqueles dias em que você acorda de uma maneira desagradável, e isso afeta o seu humor durante o resto da manhã. Normalmente, nesses dias de TPM fora de época, acordo com uma imensa vontade de bater na primeira coisa que estiver ao meu alcance.
Bom, naquela terça-feira de inverno eu consegui rasgar dois livros, quebrar o aquecedor e estragar a porta do meu armário.
E esse é o momento da história em que eu ganho aplausos divinos.
"Parabéns, Wanda. Agora...Você quer um lança-chamas?"
"Não, obrigada. Estou atrasada para aula."
A cada passo que eu dava na direção do banheiro uns tantos ossos estalavam, como se eu fosse uma vampira despertando depois de séculos enterrada. Quando, na verdade, haviam sido apenas umas poucas horas dormindo.
O frio estava de rachar e minha janela havia aberto durante a noite. Não tive coragem de levantar para fechá-la, então aceitei acordar com uma puta dor de garganta da maneira mais infeliz possível.
Quando minha penalidade veio a calhar, fui para a cozinha fazer um nescau básico de três colheres assim que meus ossos pararam de estalar no banheiro. Com o microondas na tomada, era possível fazer do leite um nescau quente e milagroso.
Na minha opinião, uma das piores coisas do mundo era fazer xixi no inverno. Sentar naquela superfície fria era a pior sensação. Só por isso, às vezes eu queria ter nascido homem...
Bom, eu acho que você não quer saber disso.
Voltando ao nescau...
Layla ficou me encarando por um bom tempo, como se pedisse um gole do meu achocolatado quentinho. Suas orelhas erguidas e seu rabo abanando eram prova disso.
Como boa residente que sou, despejei um pouquinho de leite quente na vasilha dela, antes de sair correndo para não ser atacada pelo dinossauro Layla.
Quando voltei pro quarto, parei por alguns momentos para me olhar no espelho, antes de jogar meu casaco sobre os ombros.
Não costumo parar na frente de espelhos; eu sei muito bem o que eles vão mostrar.
Uma garotinha de onze anos de idade, completamente deslocada vestida de preto. Ela tem um cabelo meio lambido, com alguns tons de loiro natural. O rosto revestido de espinhas, e aqueles olhos típicos de cachorrinho pidão.
Essa sou eu fisicamente.
Na verdade, sou uma adolescente de quinze anos de idade, que usa preto somente por costume. Tenho um cabelo lambido e nunca usei chapinha na vida. Tenho espinhas, e sempre fui a última da minha família a se preocupar com elas. Meus olhos... Deus, eu odeio meus olhos.
Que filé, hein!
Nessa fria terça-feira, a luta da manhã foi um pouco mais apaziguadora que o normal. Layla resolveu pegar leve comigo, já que eu tinha dado à ela um leitinho quente.
Então, quando eu fechei a porta do seiscentos e um, um silêncio quase assustador predominou o andar.
Isso, meus amigos, é o que eu chamo de paz. Eu odeio paz!
Pra você ver como a ausência de latidos caninos pesa na consciência da gente...
Eu tinha tudo, absolutamente tudo, para que aquele fosse um dia normal.
Ou seja, um dia completamente frio e irritadiço no sul do país.
O céu ainda estava cor de outono-prematuro. Escuro, como só o outono pode fazer. O cheiro nessa manhã era diferente...
Algo como especiarias. Forte e ininterrupto.
Provinha da nova padaria hospedada ali na frente, ao lado do colégio. Passar na frente dela me deu uma sensação reconfortante, quase como se fosse possível abandonar o frio pela eternidade e me livrar das imagens fantasmagóricas na escuridão do Sanatório Aracnídeo.
E de repente... A sensação de reconforto foi embora quando a sombra do grande edifício medieval me engolfou na calçada.
Adeus querida segurança. Tenho aula agora, e eu duvido que eles me deixem entrar contigo aí dentro.
O Sant`Anna. Lar Doce Lar.
– Bom dia. - Falei, morrendo de sono.
A música "Judas" irradiava dos fones de ouvido de Lucas, que não prestaria atenção em mim tão cedo. Hoje ele usava sua habitual camiseta dos Rolling Stones e estava novamente encostado na parede da sala.
Desisti de desejar bom dia assim que ele começou a dançar.
Lola estava oferecendo as respostas do dever de casa para quem quisesse. Ela caminhava de lá pra cá na sala de aula, passando o seu caderno e distribuindo folhas, sem nem ao menos cobrar um tostão.
Eu sempre disse a ela que isso era estupidez. Se eu tivesse o cérebro da Lola, já teria rendido milhões.
Effie, com seu cabelo ruivo incandescente até a cintura, cochilava de leve no ombro de Iza, que parecia estar lendo o horóscopo diário no celular dela.
Ninguém tinha novidades. Ninguém queria fazer mais nada além de suportar o frio.
Me sentei ao lado de Lucas e me encolhi ao lado dele, rezando para que a manhã passasse depressa e eu pudesse voltar aos cobertores da minha cama quentinha.
Quando ouvi o som de passos perto da porta, pela primeira vez na vida rezei para que o professor entrasse e começasse sua aula.
Mas não era o professor de matemática.
Também não era de literatura ou biologia.
Quem passou por aquela porta cinza e descascada foi O Diretor. O Diretor em pessoa. Na nossa turma.
Meu queixo caiu, assim como o de Lucas, e como o do resto da turma.
Ele entrou em passos largos, e meu coração batia em intervalos largos também. O silêncio era desagradável e cheio de culpa. O cheiro de culpa era terrível.
O que tínhamos feito de tão errado dessa vez? Espera... Talvez devesse ter sido aqueles aviõezinhos que jogamos no cabelo da professora de história, ou os montes de papel picado que o James colocou no ventilador. Quem sabe não foi a pixação que eu fiz no bebedouro na semana passada?
Minha cabeça começou a trabalhar revivendo tudo o que havíamos feito nas últimas semanas que poderia ter trazido o diretor ali. Em pessoa. Na turma cento e quatro.
E só havia uma palavra estampada no rosto de cada um dos quarenta e dois alunos presentes na sala naquele momento.
Fudeu.
É isso aí pessoal - Fudeu de vez.
Ele iria dar uma suspensão a cada um dos culpados. Ía nos mandar para o aquário da coordenação. Ía ligar pros nossos pais e eles nos deixariam de castigo pelo resto da vida.
O negócio era torcer para que eu não estivesse envolvida no que quer que fosse. Rezar ainda mais para não ficar a manhã toda trancada na sala da Megera - a coordenadora narcótica que mais parecia um bujão de gaz.
Porém, a duas classes atrás da minha, James estava mais pálido do que nunca. Afinal de contas, fosse o que fosse, ele estaria envolvido. Ele sempre estava envolvido.
– Bom dia. - O diretor pronunciou, parando com seus sapatos lustrosos na frente do quadro negro.
O homem tinha aquela pança típica de cerveja, uma barba por fazer e um topete preto e branco.
Eu o odiava. Entenda a minha situação - Eu nunca fui muito desse lance de anarquia, até porque caos não é minha palavra principal. Eu gosto da organização que provem dos outros, na qual eu não precise mexer. Mas o meu ódio pelo "Senhor Diretor Girino" era mais pela "Organização em Massa" que causava a "Discórdia" cuja consequência era a "Desorganização Casual".
Deus. Esse homem precisa aprender como dirigir o inferno.
Não que eu saiba, mas... Eu sei que não é assim!
Eu o odiava.
A suspensão das aulas de recuperação, a mudança no ensino pedagógico, o requerimento de novos funcionários, as catracas... Ah, sobretudo as catracas.
– Sinto por ter interrompido a aula de vocês. - Ele falou.
"Idiota" Iza sussurrou. "A aula nem começou."
– Venho anunciar um evento importante. - A pança falou.
Evento importante. O que poderia ser tão importante a ponto de ter que levar a pança e mais dois funcionários para lá?
Se fosse Hora Cívica, eu ía me matar. Cantar o hino do Sant`Anna era insuportável, principalmente em um dia de inverno no meio do pátio.
– O prédio novo será inaugurado hoje. - O Diretor anunciou, sua pança sendo impulsionada na nossa direção.
"Corram que a pança vai explodir!" pensei enquanto enquanto Saulete assobiava.
Sério. Às vezes sou muito sádica.
Dois funcionários parados na porta esperavam a nossa reação que, de acordo com a previsão deles, deveria ter sido entusiasmada. O Diretor aguardava ansioso, provavelmente imaginando que estaríamos emocionados demais para falar.
Algumas garotas lá no fundo deram gritinhos histéricos, e o resto ficou em silêncio, esperando para ver se era só isso.
– Para que todos os alunos possam conhecer nossa nova estrutura - ele olhou o relógio. -, haverá uma interrupção nas aulas da manhã.
"Imbecil." Lucas murmurou. "Nós só temos aulas de manhã".
– Então - O Diretor sorriu. -, as aulas a partir do recreio serão canceladas.
Houve um brado alegre e algumas batidas nas carteiras lá da parte de trás. Qualquer situação que nos fizesse perder aulas carecia de aplausos para nós.
A cento e quatro urrava triunfante, e juro que pude ouvir um "lindo" referente ao Diretor das gurias lá de trás.
Sim, eu estava contente. Talvez porque havia escapado de mostrar o meu tema-não-feito a professora de química, e ter mais uns dias pra fazê-lo antes que aquela sonsa me desse um negativo.
Lucas dançava "born this way" em um ritmo frenético e alegre. Iza e Effie contavam dinheiro para ver o quanto poderiam comprar no bar novo.
Por alguns momentos, Lola pareceu um tantinho decepcionada por não haver aulas, mas logo sorriu na direção das garotas começando a contar o seu dinheiro também.
Sinceramente, eu não sei o que estava errado comigo.
Tudo bem. Eu não estava contando o meu dinheiro porque não tinha nenhum...
Mas de alguma forma, eu devia estar exultante como eles.
Quando o professor de matemática chegou, notei que ainda estava ansiosa para voltar para minha cama quente e confortável. Não estava nem aí pra essa história de prédio novo, só achei que daria mais trabalho explodir o Sant`Anna com mais um bloco de cimento aterrador.
Não, "aterrador" não seria a palavra certa.
O prédio novo era branco e reluzente. Lembrava o shopping center nas vésperas do Natal, com todo aquele povo entrando e saindo cheio de sacolas.
Ele ficava do outro lado do pátio, em uma distância segura do prédio antigo. Talvez O Diretor visse alguma possibilidade de contaminação.
E quando as pessoas passavam na rua ao lado da Av Independência, era um constraste completamente perfeito do modelo rústico vitoriano ao estilo neoclássico "clean".
O prédio estava sendo construído desde o ano passado, e eu tento ignorar sua existência de todos os modos. É como um símbolo de utopia negativa para mim. Um contraste que não deveria existir e muito menos ser bem vindo.
Não é que eu odeie mudanças...
Mas odeio essa especificamente.
– Eu quero todo o capítulo quatro do módulo dois pronto para terça-feira que vem. - O professor falou, olhando diretamente para mim.
Lúcio tinha uma voz típica de apresentador, uns olhos miúdos e uma pança de chocolate. Ele usava aparelho, falava de futebol e costumava ser bem amigo quando se tratava da entrega de temas.
Acima de tudo, ninguém imaginaria que ele é professor de matemática, e uma pessoa que eu não gosto de decepcionar.
Veet, cabelos castanhos e sorriso simpático, era apaixonada por ele. Ela também era do nosso "clube da loucura", e costumava ter um grau de inteligência próximo ao da Lola.
Podia ser incrível, mas eu não estava com paciência para Lúcio naquele momento. Ele me encarava como se soubesse que eu não faria o tema, e eu o encarava de volta como se fosse óbvio que eu não iria fazer. Cá entre nós, matemática não é minha praia.
Foi uma surpresa quando Lygya (professora de história em quem jogamos aviõezinhos) simplesmente declarou o terceiro período encerrado dez minutos antes e sem nos passar tema. Foi quando nos demos conta de que não tinha mais aula, e todo o colégio estava reunido na passarela que levaria ao prédio novo.
De um jeito meio mórbido, me levantei da classe ainda morrendo de frio e encostada no Lucas. Quando ele saiu de perto de mim, grudei na Effie. E só que fiquei ali, andando grudada nela e esperando o frio passar.
Quando chegamos ao pátio, o vento cortava o meu maxilar e fazia meus dentes zunirem. Iza reclamou alguma coisa sobre o frio, e logo estava congelando abraçada na Lola. Effie escondeu seu cabelo ruivo no capuz e eu me apertei ainda mais em meu casaco.
Outros alunos passavam por nós, encolhidos e abraçados uns nos outros. Todo o colégio parecia estar se dirigindo ao prédio novo, e eu duvidava que ele pudesse abrigar tanta gente, ainda que aquela coisa parecesse um shopping.
Só esperava que lá fosse um pouco mais quentinho...
Olhei para nós quatro seguindo na direção das escadas. Digamos que nós não éramos muito populares (pelo menos, não juntas). Tínhamos os nossos momentos, é claro... Lola sempre sabia das coisas que aconteciam dentro daquelas paredes. Ela podia não conhecer todos, mas conhecia umas tantas pessoas certas. Iza e Effie sabiam de bastante coisa também.
Ok. Digamos que entre nós, eu era a menos popular.
Sabe, não sou muito de me socializar em um sanatório. As pessoas agem mais como animais aqui dentro, loucas para mostrar o poder da selva e ver quem chega primeiro ao bar depois da aula.
Quando me aproximei de Lola, foi por conta de um livro, e não para ver qual de nós duas tinha um rugido mais forte. Logo, éramos quatro... Por conta dos livros e das fanfictions.
Escrevemos. Todas nós.
Penso que, se um dia nós quatro morrermos ao mesmo tempo, deixaremos muitas histórias para contar.
– Como será que a gente abre essas portas de vidro? - Iza perguntou.
Olhei para o prédio reluzente à três passos do nosso alcance, e experimentei a sensação de chegar à superfície do novo mundo. Isso é o que eu chamo de século vinte e um.
– Elas abrem sozinhas, abobada. - Effie declarou. A rainha do shopping center.
E as portas, de fato, se abriram. Acredite em mim, era como entrar em um mundo completamente diferente de onde saímos.
É claro, íamos ao shopping sempre que podíamos. Fazer compras, ir ao cinema ou apenas incomodar alguém são atividades próprias para esse lugar.
Mas é completamente diferente ter algo como isso na frente do colégio.
Quer dizer... Sendo parte do colégio.
E essa coisa possui salas de aula, auditórios, ginásio, bar, livraria e área de convivência ao mesmo tempo!
– Eles fizeram um bom trabalho. - Lola observou.
O saguão era enorme, e eu juro que meu apartamento inteiro cabia ali pelo menos três vezes. O bar ficava ao lado dos elevadores, que eram três.
Três elevadores.
O prédio antigo tinha apenas um elevador. Às vezes, alguns alunos ou funcionários entravam lá com a intenção de subir três andares, e saiam apenas no dia seguinte.
O prédio antigo.
É muito estranho chamá-lo assim. Até porque, nunca achei que denominaria-o de "prédio". Geralmente, era "inferno" mesmo.
Mas o cheiro do prédio novo era... Clean. Sim. O cheiro típico de ar-condicionado, tecnologia e limpeza.
Minha mãe sempre me dizia que eu sinto uns cheiros estranhos.
Bom, tenho que concordar.
– Para onde vamos? - Effie perguntou, tirando o capuz e olhando para os elevadores.
– Eu não sei. - Lola parecia estar analisando a situação. - São tantos lugares.
Hm, eu não estava a fim de andar de elevador. Muito menos de ir visitar salas de aula. Estava prestando mais atenção nos cheiros, e na agradável ausência do frio.
– Minha barriga chama por comida. - Afastei meu casado enorme e pressionei meu estômago. - Sério... Vocês não estão ouvindo.
Iza chgou mais perto, afastando seu cabelo loiro e me olhando estranho.
– Então era de ti que vinha esse som! - Ela exclamou.
Lola revirou os olhos.
– É isso ae, galera. - Effie sorriu, satisfeita. - Vamos ao bar.
Bom, você deve imaginar. Pelo resto da manhã, nós comemos feito loucas, vendo estudantes ansiosos indo e vindo para conhecer o novo local.
– Só eu não achei tão impressionante assim? - Iza perguntou.
– Aham. - Lola respondeu, dando uma boa olhada em um calouro que ía passando.
– É sério - Iza continuou, entre um bolinho e outro. -, achei que a livraria fosse maior...
– Ele é do terceiro? - Effie encarou o garoto.
– ...Pensei em mais andares...
– Acho que sim. - Os olhos de Lola brilharam.
– ...Mais mesas...
– Ele é lindo. - Effie afirmou.
– ...Mais tevês.
– Calem a boca. - Sussurei para elas.
Ele era realmente bonito.
Mas foi embora, e sabíamos que as possibilidades de encontrar com ele e ainda sermos notadas eram muito remotas.
Lola sorriu triste enquanto Effie suspirava e comia seu bolinho.
– Ele era realmente bonito. - Iza murmurou.
Olhei para o meu bolinho. E de repente não o quis mais.
Ele não era calouro. E não era do terceiro ano.
Maldito bolinho!
– Não vamos visitar o resto do prédio? - Me levantei de repente. O cheiro estava mudando.
Lola estava completamente desanimada ao guardar o chocolate na mochila e começar a brincar com a lata de coca. Iza parecia a beira do tédio ao começar o seu "tique" matinal de ficar balançando a perna sem parar. Effie estava aparentemente bem e satisfeita, se não fosse pelos seus suspiros pouco convencionais de quem está de saco cheio.
E eu? Aquele desejo de voltar para minha cama quentinha martelava em minha cabeça.
– E agora? - Lola se virou de repente.
– Vamos para casa. - Effie bocejou.
– Não! - ela me jogou um canudo. - Quis dizer... - Lola franziu as sobrancelhas. - Como as coisas serão a partir de agora?
– Hm. - Iza olhou em volta. - Espaçosas?
– Um pouco mais...Claras? - Effie apertou os olhos.
Iza bufou irritada, cruzando os braços na altura do peito, como se de repente tivesse entendido a linha de pensamento.
– Acho que todas as atenções se voltarão para essa belezinha aqui. - Ela olhou em volta.
– Tem razão, Iza. - Effie sorriu. - Quando na verdade, deviam estar voltadas pra mim.
Acabei engasgando com a minha coca a caminho de uma risada, em quando Lola xingava Effie de mil coisas por não ter levado o assunto a sério.
O que eu achava? Era só mais um prédio. E ele serviria para a mesma coisa de sempre.
– Eles vão fazer um jogo de marketing. - Consegui falar depois de ter inalado minha coca. - Vão usar o novo prédio como desculpa de "melhora na educação".
– Mas o Sant`Anna sempre teve uma boa educação. - Lola falou.
– Um pouco peluda, às vezes. - Iza se referiu ao Aranha.
– Fora de moda, de vez em quando. - Aposto que Effie pensou na Lygya.
– Mas boa. - Lola grunhiu. - De qualquer forma.
E o assunto se encerrou por aí, concordamos que era bobagem discutir sobre algo que não estava em nossas mãos. O que quer que o novo prédio representasse, teríamos de aturar, certo?
Estudávamos nesse inferno assustador. E agora ele tinha um novo misterioso estabelecimento, que cheirava muito bem para mim.
– Vejo vocês amanhã. - Lola sorriu, ainda com uma centelha de tristeza no olhar.
Ela desceu pela saída do prédio novo, que deveria ser tão reluzente e cheirosa quanto o saguão. E nós, Iza, Effie e eu, seguimos na direção do "prédio velho" para a outra saída.
Quando as portas deslizaram, lembramos da existência do frio e do vento cortante que o inverno trazia consigo. Nos juntamos um pouco mais, para depois começar a caminhar, observando o pátio deserto.
No Sant` Anna, nosso pátio tinha alguns bancos nas extremidades, amarelinhas pintadas no chão cinza, um palco pequeno e uma única árvore no centro de tudo. Todos os corredores externos davam para esse pátio, por isso em dias de Hora Cívica ou Gincana, quando todo o colégio era motivado à assistir, estar no pátio era como estar em um presídio.
Todos os alunos iam para os corredores externos e se apoiavam nas balaustradas, a fim de observar o discurso do diretor. Era como se todos os presidiários se aproximassem para um festim. Doentio e assustador.
– De quem é a vez de escrever hoje? - Iza se encolheu no casaco enquanto seu queixo tremeu.
– Ãh, minha? - Falei um pouco mais alto para abafar o som do vento.
Estávamos cruzando o pátio, no centro no colégio, e o vento já não nos alcançava ali. Só podíamos escutar o som do sopro e de coisas batendo e caindo.
Iza relaxou um pouco, tirando o capuz e ajeitando o cabelo loiro. Seus olhos assustadores se distraíram um pouco com a árvore, enquanto eu dirigia meu olhar mais além. Além do palco, além das amarelinhas... Pensando em como eles fariam a divisão. Seria algo como, metade num prédio e metade no outro?
Não... Não poderia ser assim. Talvez o novo prédio servisse apenas como auxílio, certo?
Mas foi muito estranho quando o vento deixou de soprar e as janelas deixaram de ranger. O frio não nos abandonou, é claro. Só tenho a impressão de que naquele instante ele se tornou mais forte, talvez mais úmido. Do tipo que chega até os ossos e faz suas pernas ficarem dormentes.
Sim, eu não estava alucinando. Iza pareceu ter sentido também.
Nos aproximamos da árvore a medida que cruzávamos o pátio. Iza grudou em mim feito pasta de dente, e apertou a mão de Effie como se sua vida dependesse disso.
– O que você acha disso? - Iza sussurrou.
– É raro termos silêncio no colégio. - Me encolhi ainda mais.
Nós continuamos a andar pelo pátio, dessa vez meio correndo, como se houvesse fogo em nossos calcanhares. E não paramos até chegar às escadas, que subiam dentre os corredores externos, adornadas com os mesmos balaustres de sempre.
Subíamos mais devagar do que antes, e Iza ofegava ao meu lado. Imaginei que quando chegássemos lá em cima eu teria que pagar uma água com gás para ela.
Continuamos no mesmo ritmo até eu notar que alguém tinha ficado para trás.
– Effie? - Iza se virou. Já havia se livrado do casado, e o suor escorria da têmpora.
Droga! Voltamos nossos olhares ao pé da escada, onde Effie estava parada e olhava para o pátio lá embaixo como se tivesse notado alguma coisa. Seu cabelos ruivo balançava com o vento, havia uma ruga formando-se em sua testa e sua boca estava aberta em um "o", como se houvesse notado algo.
– Effie? - Chamei-a.
Iza me cutucou de leve, me dizendo para descer. Chegamos devagar por trás dela, enquanto Effie continuava na mesma posição, encarando o pátio como se tivesse visto algo estranho.
O vento chegava contra nós, me tirando os poucos minutos de prazer com o calor. Ela parecia totalmente congelada na base das escadas, mas não havia nada no pátio. Não havia nada para olhar.
Só a árvore. Solitária no meio de tudo, rodeada de amarelinhas.
– O que você está vendo?
Iza estremeceu, esperando pelo o que vinha a seguir. Olhei para Effie atentamente.
– Ãh. - Ela nos encarou como se fôssemos loucas. - Vocês não viram...?
– Vimos o quê? - Iza forçou a barra.
Ergui as sobrancelhas.
– Aquele cara... - Effie apontou para o pátio.
Ah, então ela tinha visto um cara? A situação estava muito estranha para mim. Meu dia estava acabado depois daquela afirmação. Será que sempre tinha que acontecer algo ruim ou desconexo?
Bom, tínhamos um novo prédio. Eu não sabia se isso era bom ou ruim, mas era algo. E havia todo aquele lance de nova estrutura disciplinar, do qual nunca havíamos ouvido falar. para completar, Effie agora estava tendo alucinações, como se tivesse ingerido alguma droga.
Opa.
Será que havia alguma coisa naqueles bolinhos?
– Effie, não há nada lá. - Iza falou o óbvio.
– Eu sei. - A ruiva concordou rapidamente. - Foi só um lapso qualquer...
Um lapso qualquer?
– Como era "o cara"? - Perguntei depressa.
– Eu já disse. - Effie me puxou para cima. - Eu não vi nada.
– Vamos acreditar nela, Dábliu. - Iza piscou, me puxando também.
Ficamos tanto tempo paradas ali na base das escadas, que quando subimos eu nem precisei comprar uma água para Iza. O frio já estava em nossas veias, deixando tudo dormente. E o aspecto sombrio da visão de Effie ainda congelava o meu sangue.
É claro que já havia acontecido coisas estranhas no Sant`Anna antes. Assassinatos, suicídios, bombas, desaparecimentos...
Mas tudo isso fora muito antes, na ditadura talvez, no tempo que minha tia estudou lá. Ela sempre conta umas histórias sangrentas que me trazem alguns pesadelos, mas sempre antigas, como se o horror do colégio já tivesse se dissipado há tempos.
Sinceramente, não parecia.
Para mim, o Sant`Anna nunca deixaria de ser um mausoléu assombrado.
– É melhor irmos. - Effie ainda parecia pálida ao cobrir o cabelo novamente com o capuz.
– Sim. - Iza pegou o cartão na mochila. - Tenho academia agora.
– E eu comi demais. - Sorri para elas, abrindo a porta da frente. - Já falei que estou tendo um caso com o meu travesseiro?
– Haha. - Effie riu sem graça. - Certamente o meu é com o professor de literatura.
Todas rimos pela última vez no dia, com alguns olhares assombrados em disfarce e cada uma seguiu o seu caminho. Enquanto Iza pegaria a condução, Effie pegaria um táxi e eu atravessaria a rua. No dia seguinte teríamos mais uma sequência de aulas chatas, e essa noite eu deveria escrever o melhor possível para a nossa fanfiction receber mais comentários do que nunca.
Essa costumava ser a nossa vida. Escrever, receber os elogios e passar de ano.
Quando fui dormir aquela noite, eu não fazia ideia de que Effie pensava cada vez mais no cara que tinha visto no meio do pátio, e que para mim era fictício. Muito depois, eu fui saber que ela pensou nele noites a fio e que já tinha o visto antes.
Naquele dia, eu ainda não sabia. Tudo era muito normal, exceto que estudávamos em um colégio assustador e controlado por um homem suspeito com barriga de cerveja.
Quer dizer... Uma parte de mim estava tranquila. O que poderia nos atingir ali? Não podia ser nenhum assaltante ou estuprador. O colégio estava ainda mais seguro com o acréscimo de funcionários e catracas nas entradas. Nada que viesse de fora poderia nos perturbar com aquela segurança máxima. Isso nos garantia o poder de tripudiar pela disneylândia sem que nossos pais se preocupassem.
É, certamente eu deveria agradecer ao Diretor por isso.
Agradecer por nos trancar lá dentro quando o mundo lá fora era tão perigoso.
Ah, mais tarde eu iria descobrir...
Sim, nós iríamos descobrir.
Que o perigo no Sant`anna jamais viria de fora.
Nunca estaríamos seguros lá dentro.
E quando as assombrações voltassem, não poderíamos sair.
As catracas estavam lá pra isso.
Autor(a): clarawyrda
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Era fevereiro. Quente, agitado e tétrico fevereiro. Eu estava parada no meio da calçada da Avenida Independência, observando uma corrente de ciclistas exaustos e suados atravessando a faixa de pedestre. O sol forte me fazia franzir o rosto para tentar enxergar alguma coisa na eterna luminosidade do asfalto. Do outro lado da rua, eu usava uma blusa cav ...
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