Fanfics Brasil - Parte I - Ampulheta Imóvel MARAVILHAS DE CLARISSE

Fanfic: MARAVILHAS DE CLARISSE | Tema: Estupro


Capítulo: Parte I - Ampulheta Imóvel

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Sou consumista.


Enamoro facilmente coisas que não podem me amar.


Porque, afinal, são apenas coisas.


 


Às vezes sinto que nada do que tive até meus dezoito anos fora realmente meu. Nem mesmo as bonecas de cheiro adocicado e de nomes infantis. Nem mesmo os esmaltes colecionados, caros e raros. Nem mesmo a persiana colorida que enfeitava e decorava onde eu dormia – também não era meu quarto. Contudo, talvez eu fosse dona do meu corpo.


 


Costumava guardar três objetos preferidos: um par de botas rasteiras de couro pretas, um batom cor vermelho 50 e um lápis delineador preto de alguma marca francesa. Todos devidamente comprados e com suas notas fiscais guardadas na cabeceira antiga, de aspecto clássico. Alguns se surpreendem quando digo que foram por estes objetos que a louca dentro de mim se despertou. 


 


É um tanto quanto exagerado o nome que dou para esse súbito desejo de possuir algo que não era meu. Vinha, apenas. Veio três vezes e adormeceu. Simplesmente aquietou-se. Porém, chamo, sim, de cleptomania. Eu era cleptomaníaca. Feroz, violenta, agressiva. Era a minha fantasia; o conceito de descontrole.


 


Uma dose de coragem tomou conta de mim quando roubei da carteira de meu pai, pela primeira vez, para comprar as botas. Duzentos e trinta e oito reais. Guardei a nota fiscal e nunca tirei o par da caixa – até então. O mesmo aconteceu com o lápis e o batom. Eles eram essenciais para a alma do quarto. Sentia-me viva. 


 


E nada chegou tão perto de me pertencer. 


 


Eu tinha catorze anos.


 


Pelo menos uma vez por semana, meu pai cambaleava do bar até a porta de casa e vociferava impudores. Minha mãe esperava, em posição fetal, no perpendicular de duas das quatro paredes salmão da sala. Ela tinha deixado de chorar há três anos, um ano depois de tudo começar. Abra a porra da porta, Juliana!, ele exclamava tão alto, numa nota que me ardia até as entranhas. Tô aqui! Fiel! Não é o que você quer? Fiel, porra!. Ele acabava por arrombando a porta e segurando as mãos de minha mãe, tentando calar teu pavor com um beijo francês. Pavor nenhum se apagava, no entanto. Ele arrancava, rasgava, destruía as roupas dela e as próprias. Apalpava-a, dominado por puro êxtase. Ela, após tantas torturas, era obrigada a ser penetrada pela boca. Era um movimento tão forte, tão brutal, tão grosseiro. Fazia um som de sufoco desesperador. Eu gritava. Ele também. E, então, se encaixava no meio de suas pernas e ia e vinha. Minha mãe gemia toda vez que ele se introduzia e meu pai tentava vozear alguns comandos que nunca compreendi. Satisfeito, deitava-se nu, suado e bêbado no sofá. Minha mãe cobria-o com um lençol limpo e despedia-se com um beijo no rosto. Voltava, então, a dormir.


 


Nenhum deles parecia ter apreciado a situação. Mas este era, como dizem os poetas, o “consumo de seu amor”.


 


“Nenhum de Nós” tocava alto naquela madrugada. Era frequentemente minha saída para não acompanhar o terror daquelas noites. Com dez anos, eu gostava de observar e analisar com a curiosidade de qualquer criança. Imaginava que me faria bem entender o que estava acontecendo. Com o tempo, fui entendendo cada vez menos.


 


Nada mais me ocorreu senão substituir a harmonia negra da casa com CD’s antigos. Os vizinhos nunca reclamaram do som.


 


Eu que tenho medo até de suas mãos


Mas o ódio cega e você não percebe


Mas o ódio cega


E eu que tenho medo até do seu olhar


Mas o ódio cega e você não percebe


Mas o ódio cega


  


O rádio estava no máximo e eu estava com os olhos fechados contra o travesseiro. Ainda podia ouvir, bem ao fundo, gritos femininos: Não, por favor, por favor! Era sábado, quatro da manhã. O travesseiro parecia tão áspero e rígido quanto o próprio chão que eu me encontrava. De meus lábios, escorriam algumas poucas gotas de sangue e, da minha mente, escorriam pensamentos vazios. Lembrava-me do cheiro de meu pai quando ele me abraçava e de sua voz sussurrando em meus ouvidos, Minha bela. Ali já soava como um sonho.


 


Eu era tão oca.


 


Quatro e cinco da manhã.


 


Já me perdi em palavras de Camões, Shakespeare e Machado. Era apaixonada por GuernicaVenus de Milo e Male And Female. Mergulhava em artes e afogava-me nas ideias, nos sentidos, divergia-me (ou convergia-me) em Dionísio e Apolo.


 


E, na vida real, eu era oca.


 


Não derramava nem uma única lágrima. Nem no enterro do meu avô. Nem quando eu me cortava à noite. Nem quando as meninas e os meninos me olhavam com nariz empinado. Nem quando me lembrava de que estava o todo tempo crescendo. A dor só aparecia quando eu assistia Titanic e pensava no amor. Quando ouvia João e Maria e pensava no tempo em uma constante corrida. Quando lia Sylvia Plath e pensava na morte. Quando me encantava com as performances de Sasha Cohen e pensava na beleza, no charme, na doçura e no talento. Quando acompanhava as competições de Michael Phelps e pensava em todas suas conquistas e no conceito de superioridade. E quando observava o famoso Saturno Devorando Seu Filhoe, enfim, pensava na minha própria angústia.


 


Havia algo de insano


Naqueles olhos, olhos insanos


Os olhos que passavam o dia


A me vigiar, a me vigiar


 


Quatro e sete da manhã. Meus pais estavam transando, eu estava ouvindo Camila, Camila, deitada no chão, mordendo meus lábios, pensando em nada. O resto é literatura. Eu tinha catorze anos e queria entender tudo e acabava não entendendo nada.


 


Quatro e oito da manhã. Desisti.


 


Desisti como nunca tinha desistido antes, como nunca havia de desistir depois. Minha consciência, ela não estava mais ali. Levantei do chão, vesti o par de botas de couro, o batom vermelho 50 e o lápis preto e saí com a roupa do corpo, com o rádio ainda tocando, pela janela dos fundos. Corri.


 


Corri até não poder não poder mais ouvir o choque de pele, não poder mais ouvir meu pai me chamando de “minha bela”, não poder mais sentir minhas pernas trêmulas, o sangue da minha boca congelando e o desconforto do salto. Corri.


 


Parei em uma loja de conveniência. Estava vestindo uma peça única de pijama vermelha translúcida, curta, botas, batom e lápis. Tinha trinta reais na bota. O atendente do lugar era um rapaz com seus dezessete anos, moreno de olhos castanhos, com o rosto coberto de espinhas e de braços finos. Ele ficou me encarando, um olho em mim e um olho na pequena TV de dezenove polegadas. Perdida?, o menino balbuciou. Tanto quanto você, acho, refleti.


 


– Pegue uma Balalaika, então, sugeriu-me.


 


Com dezoito anos, eu já teria dinheiro o suficiente para comprar quantas Balalaikas quisesse – não que, naquela madrugada, eu soubesse de tal fato – mas, ao invés disso, me serviria apenas de sucos naturais de laranja que uma empresa nacional patrocinaria. Ás vezes, em algumas festas, ingeria goles de alguns drinques bem mais sofisticados. Eu tentaria me sentir tão limpa quanto naquela noite. E jamais conseguiria.


 


Concordei com o garoto. Ele mostrou uma pequena parcela de seus dentes amarelos e tortos e me instruiu não contar para ninguém que ele havia me vendido aquilo. Adicionei um maço de Malboro Light ali também, além do isqueiro. Estava na hora de crescer.


 


Voltei a correr por mais alguns metros. Corri até vir lágrimas aos meus olhos. As lágrimas vieram junto com Augusto dos Anjos.


 


Eu, filho do carbono e do amoníaco


Monstro de escuridão e rutilância


Sofro, desde a epigênese da infância,


A influência má dos signos do zodíaco


 


Deitei-me em um banco de alguma praça com os produtos embalados. Nunca havia bebido ou fumado antes. Álcool e tabaco era o odor de meu pai aos sábados e sextas. Minha bela, minha bela. Era, também, o odor leve de minha mãe às tardes, na varanda.


 


Eu nasci no dia 27 de Janeiro, mesma data do aniversário de Mozart. Éramos ambos aquarianos. Vivíamos de coração e lógica. Aliás, vivíamos de opostos em nosso interior: sensíveis e exuberantes, introvertidos e extrovertidos, pensativos e impulsivos. Tudo que sei sobre Mozart, além de suas perfeitas (e, mesmo assim, perturbadas!) melodias, é o que aprendi no filme Amadeus. Apesar de distorcido (ou é o que dizem), gosto de acreditar neste. Uma vida maluca, precária, desconhecida – mas que conseguiu atingir tantas outras desde então. É o mais próximo que a beleza consegue atingir da realidade (ou, no caso, da fantasia).


 


A beleza não é plena nem mesmo na fantasia; e, ainda assim, o mundo é tão belo.


 


Ou era o que a Astrologia me convencia.


 


Dei três goles matados da vodca barata pura. Uma ardência percorreu minha garganta, que espelhou em meus olhos. Gosto horrível, ácido, gosto de loucura. E eu bebia cada vez mais.


 


Pronfundíssimamente hipocondríaco


Esse ambiente me causa repugnância


Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia


Que se escapa da boca de um cardíaco


 


Acendi o cigarro. Desajeitado, mal feito, mas acendido. Deixei com que a fumaça branca que evaporava do centro da droga se penetrasse entre meus dentes trêmulos. De uma maneira estranha e difícil de explicar, o gosto e o cheiro eram idênticos. A sensação era de flutuar, aos poucos. Misturava-se com a tontura. Eu completava o poema em minha mente com esforço.


 


E o verme – este operário das ruínas! –


Que o sangue podre das carnificinas


Come, e à vida em geral declara guerra


Anda a espreitar meus olhos para roê-los


E há de deixar-me apenas os cabelos


Na frialdade…


 


Durante toda minha vida declamei Psicologia de um Vencido e nunca soube o significado de frialdade.


 


Na frialdade inorgânica da terra.



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Autor(a): ellemaurell2

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