Fanfic: Como eu era antes de você - Laliter | Tema: Laliter

                                                    Lali.

2013

São cento e cinquenta e oito passos entre o ponto de ônibus e minha casa, mas é possível esticar esse número para cento e oitenta se você não estiver com pressa, ou, por exemplo, se estiver usando sapatos de plataforma. Virei a esquina na nossa rua (sessenta e oito passos) e logo pude ver a casa — uma casa geminada de quatro quartos numa sequência de outras casas geminadas de três e quatro quartos.

O carro de papai estava do lado de fora, o que significava que ele ainda não tinha ido para o trabalho. Às minhas costas, o sol se punha atrás do castelo Stortfold, sua sombra escura

escorrendo pela colina  parecendo que algo me perseguia. Quando eu era pequena, costumávamos fazer com que nossas sombras alongadas participassem das batalhas que anos atrás, deveriam ter ocorrido nesse imenso castelo. Eu poderia contar tudo o que vivi nessa rua:

Aqui foi onde papai me ensinou a andar de bicicleta sem rodinhas; onde a Sra. Julia Calvo, com suas perucas coloridas, fazia bolos galeses para nós; onde Euge, aos onze anos, prendeu a mão numa cerca elétrica e perturbou um ninho de vespas nos fazendo correr aos gritos por todo o

trajeto até o castelo. Caminho até a porta de casa, onde so recebida pelos gritos de minha mãe.

Gime: É você, querida?

Lali: Sou eu. — Pendurei minha jaqueta no gancho, lutando para conseguir um espaço no meio das outras.

Gime: Eu quem? Lali? Euge?

Lali: Lali.

Da porta da sala, olhei ao redor. Papai estava de bruços no sofá procurando algo, Thomas, meu sobrinho de cinco anos, o observava atentamente logo atrás.

Nicola: Lego. — Papai virou-se para mim, o rosto vermelho devido ao esforço. — Não sei

por que eles fazem as malditas peças tão pequenas. Você viu o braço esquerdo de Indiana Jones?

Lali: Estava em cima do aparelho de DVD. — Apontei para minha bochecha para Thomas dar um beijo. — Cadê a mamãe?

Thomas: Ta lá em cima. Olhas o que eu achei! Uma moeda!

Nicolas: Não ta em cima do DVD — bufou — Você pode achar o bendito braço para mim? Thomas está me obrigando a procurar por isso há meia hora e preciso me arrumar para o trabalho.

Lali: Você está no turno da noite?

Nicolas: Sim. São cinco e meia. — Dei uma olhada no relógio.

Lali: Na verdade, são quatro e meia. — Ele retirou o braço de baixo das almofadas e estreitou os olhos para conferir o relógio de pulso.

Lali: E o que você está fazendo em casa tão cedo?

Balancei a cabeça vagamente, como se não tivesse entendido a pergunta direito, e

entrei na cozinha. Vovô estava sentado na cadeira ao lado da janela, completando um sudoku. O

assistente social nos tinha dito que o jogo seria bom para melhorar a concentração dele, que ajudaria nisso depois dos derrames. Desconfio de que eu era a única a perceber que ele apenas preenchia os quadradinhos com o primeiro número que lhe viesse à cabeça.

Lali: Oi, vovô. — Ele me olhou e sorriu. — Quer uma xícara de chá? — Ele balançou a cabeça e abriu um pouco a boca. — Água? — Ele fez que sim e murmurou alguma coisa que poderia ser um obrigado quando lhe entreguei o copo.

Minha mãe entrou na cozinha carregando um enorme cesto de roupas lavadas e

cuidadosamente dobradas.

Gime: São suas? — perguntou, exibindo ostensivamente um par de meias.

Lali: São de Euge, eu acho.

Gime: Também pensei que fossem dela. Cor estranha. Devem ter ficado junto com o

pijama cor de ameixa do seu pai. Você chegou cedo. Vai a algum lugar?

Lali: Não. — Enchi um copo com água da torneira e bebi.

Gime: Benjamin vem aqui mais tarde? Ele ligou para cá de manhã. Você desligou seu

celular?

Lali: Aham.

Gime: Ele falou que está tentando marcar as férias de vocês. Seu pai disse que ele viu

alguma coisa sobre isso na TV. Vocês querem ir para onde? Papai, quer uma xícara de chá? Lali não ofereceu uma para você? — Ela colocou a chaleira com água para esquentar e olhou para mim brava. Finalmente deve ter percebido que eu não disse nada. — Você está bem, querida? Está tão pálida.

Colocou a mão na minha testa como se eu tivesse bem menos que meus vinte e seis

anos.

Lali: Acho que não vamos tirar férias. — A mão da minha mãe ficou imóvel. O olhar dela tinha aquela coisa meio raio x desde quando eu era criança.

Gime: Você e Benja estão com algum problema?

Lali: Mãe, eu…

Gime: Não estou querendo me intrometer. É que vocês estão juntos há tanto tempo. É

muito natural que as coisas se compliquem de vez em quando. Quer dizer, eu e seu pai,

nós…

Lali: Fui demitida — Minha voz cortou o silêncio. As palavras ficaram ali, no ar, esmorecendo na pequena cozinha por muito tempo após o som ter sumido.

Gime: Você o quê?

Lali: Vico vai fechar o café. Amanhã. — Estendi a mão com o envelope meio molhado que, em estado de choque, eu havia apertado ao longo de todo o trajeto para casa. Todos os cento e oitenta passos desde o ponto de ônibus. — Ele pagou os três meses do seguro.

* * *