Fanfics Brasil - 1. Minha primeira NDE A Maldição de Perséfone

Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono


Capítulo: 1. Minha primeira NDE

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Era uma vez... Eu. E então, POOF!, eu não estava mais lá.


Toda vida chega ao fim. Pelo menos, foi isso que ele me disse.


E, pelo jeito, a minha não era uma exceção.


Mas aqui vai um relato fiel em primeira mão do que aconteceu – do que realmente aconteceu, não a versão melodrama-mexicano-totalmente-exagerado que contam por aí. Prometo que me aterei apenas aos fatos.


Então.


Lá estava eu, tomando banho no ofurô novo do papai – não me pergunte por que meu pai tinha um ofurô, ele apenas tinha.


Mamãe diz que homens como papai, quando chegam a uma certa idade, começam a colecionar coisas.


Alguns colecionam carros.


Outros colecionam guitarras de artistas famosos. 


Meu pai coleciona coisas inúteis. Tipo ofurôs, cadeiras de massagem e aparelhos de ginástica.


E você acha que ele se dá ao trabalho de ler os manuais de instruções? É claro que não. Papai usou o elíptico eletromagnético uma vez, e então disse que estava com defeito, porque depois ficou com dor nas costas.


Quando, na verdade, ele é que estava fazendo errado.


Então você pode apostar que papai não fazia a menor ideia de que não devia deixar sua criança tomar banho de ofurô sozinha, menos ainda que o tempo de permanência máxima dentro do ofurô não pode ultrapassar trinta minutos, pois causa hipotermia, podendo levar ao suor excessivo e consequente desmaio – é fato, eu pesquisei.


E foi assim, foi isso que aconteceu. Eu entrei. Eu desmaiei. Eu me afoguei. E aí eu morri.


É, é, eu morri tomando um banho, rá, rá, rá, muito engraçado. Não foi legal, pra sua informação. Nada glamoroso. Mas foi calmo e pacífico – bem diferente das near-death experiences que eu tive depois disso – então você já pode morrer de inveja.


Figurativamente falando.


É claro que meu remédio pra gente louca talvez tenha colaborado um pouco para o resultado final da minha situação. Pois é, eu tomo remédio pra gente louca, porque, além de ser hiperativa, eu tenho déficit de atenção e terror noturno.


E dislexia também, diga-se de passagem.  


É verdade, eu fui diagnosticada e tudo.


E foi precisamente isso que gerou a gama de fofocas que se seguiu a minha morte.


Desmaie dentro de um ofurô por suor excessivo, no one bats an eye. Afogue-se na banheira depois de tomar remédio pra gente louca, everyone loses their minds.


Agora, imagine a cena.


Você está meio grogue. Você pode até sentir seu corpo adormecendo.


E então você acorda num lugar completamente diferente, um lugar que você nunca viu na vida.


O que é que você diz?


— Mas o que? — Foi o que eu disse.


Eu me lembro daquele lugar como se estivesse olhando pra ele nesse exato momento, mas tudo que você precisa saber é que havia um lago, dois barcos, um túnel e uma cabine telefônica.


A primeira coisa em que eu pensei foi que aquilo devia ser um metrô.


Obviamente, porque eu nunca tinha entrado em um.


Meu pai é biólogo marinho. Ele é especialista em reprodução de tartarugas brasileiras – se é que isso é realmente uma especialidade – e, até meu acidente, eu morava com ele numa pequena ilha ao leste de Fernando de Noronha.


Então, para alguém que ia de lancha pra escola todos os dias, você pode imaginar que barco + túnel = metrô poderia parecer uma equação bastante razoável.  


Havia também três filas. Uma era quilométrica, a outra tinha mais ou menos um terço da quantidade de gente da primeira, – essas duas estavam seguindo em direção aos barcos – e a menorzinha tinha só umas vinte pessoas, que pareciam contentes em esperar pacientemente pela sua vez de usar a cabine telefônica.   


Eu não gosto de filas, sejam elas grandes ou pequenas – hiperativa, lembra? – mas minha mãe sempre me orientava a ligar pra ela ou pro papai se por acaso eu me perdesse, então convenci a mim mesma de que tinha sorte pela minha fila ser a menor de todas e fui esperar no final dela.


— Ei, você. Você, menininha. Você, eu estou falando com você! — Disse um guarda. Eu só percebi que ele estava falando comigo, comigo, estava falando comigo, quando agarrou meu braço e gritou seu “VOCÊ” acusatório no meu ouvido.


 — Que é? — Respondi. Eu não gostava muito de guardinhas, ou policiais, ou qualquer coisa do gênero, nunca gostei. Eles sempre pareciam prontos pra me culpar por alguma coisa que eu não tivesse feito.


— De onde você saiu?


— Dali. — Falei, apontando exatamente o lugar de onde tinha ido andando até onde eu estava.


— Muito engraçadinha. Qual é o seu nome? — Exigiu ele, consultando uma pequena agenda eletrônica que cabia na palma da sua mão, como aquelas que os garçons usam para anotar os nossos pedidos nos restaurantes em que a mamãe me leva.


— Pierce. — “Seu nome inteiro, querida,”, papai sempre dizia. Então eu completei. — Pierce Oliveira.


O moço checou meu nome, e isso o deixou com uma cara azeda.


— Você é aqui mesmo. Não saia da fila. — E foi embora.


Depois disso, não demorei muito para perceber algumas coisas estranhas naquele lugar.


Primeiro, havia algumas pessoas de camisola – que nem aquela branca e folgada de mangas compridas que a tia Rose usou para ser batizada, quando ela resolveu entregar o coração a Jesus – enquanto o resto usava roupas normais. Eu era uma dessas pessoas de camisola, não tinha percebido até então. 


Segundo, o barco ao qual se dirigia a fila quilométrica era muito mais apertado do que o outro barco, o que não parecia lógico, já que na outra fila tinha bem menos gente.


E, terceiro, o mais esquisito: as pessoas que estavam na minha frente continuavam entrando na cabina telefônica, mas ninguém estava saindo dela.


Isso me deixou meio bolada.


Sempre que havia alguma coisa errada, meu tio, irmão de mamãe, pedia pra falar com o gerente. Ele dizia “eu não quero falar com um subalterno como você, eu quero falar com o gerente”.


Tio Josh não estava lá naquela ocasião, mas eu tinha o pressentimento de que alguma coisa devia estar errada.  


Então fui procurar pelo gerente.


Não achei nenhum logo de cara, mesmo porque, eu não tinha muita certeza de pelo que devia estar procurando.


Até que um cara da fila quilométrica perdeu completamente a linha.


Eu não entendi muito bem o que houve, porque a confusão aconteceu bem rápido. Tudo que eu vi foi uma manada de guardinhas se atirando como lutadores de sumô pra cima do maluco, que ficava gritando “Isso não é justo!”.


E, então, eu tive certeza de uma coisa: eu só podia estar sonhando.


No momento em que ficou claro que aquele bando de guardinhas não ia conseguir dar conta do recado, – de alguma forma, o maluco injustiçado estava arregaçando todos eles – o chão se abriu. Fez um barulho horrível, como mulheres e crianças lamentando aos berros por toda a desgraça do mundo, e de lá saíram três sombras de aspecto letal, que começaram a atacar o coitado do cara.


Todo mundo entrou em pânico.


Aquilo era ruim. Tipo, muito, muito ruim. Pior do que quando eu deixei cair o microscópio de dez mil dólares do papai no mar. Pior do que quando a mamãe disse que queria o divórcio. Pior até do que quando proibiram que a cantina vendesse refrigerante lá na minha escola.


Aquilo era meu pânico noturno. As coisas evoluíam de uma tranquilidade campestre para loucura selvagem num piscar de olhos, e, se eu não me controlasse, podia chutar o abajur de cima do criado mudo e receber cinco pontos no tendão de Aquiles – bom, não mais, porque, depois que eu fiz aquilo, meus pais nunca mais me deixaram ter nada quebrável ou pontiagudo num raio de dois metros da minha cama.   


De qualquer forma, eu não me movi. Eu estava me controlando. O sonho ia acabar, eventualmente, e eu ia acordar, se tivesse sorte, sem um novo hematoma.


No entanto, não foi o que aconteceu. As coisas pioraram, e o cara – que até então tinha parecido apenas um cara – foi virando um bicho esquisito. Uma mistura de leão com cabra com dragão do komodo, que ficava de pé como uma pessoa.


E, é claro, aquilo veio na minha direção, com todas as sombras letais bem atrás dele.


Porque é isso que os monstros fazem nos meus sonhos.


Vêm atrás de mim.


Mas eu geralmente não sou salva por ninguém neles.


Dessa vez, por alguma razão, eu fui.


Uma carruagem incrível – tipo aquelas que usavam na Roma Antiga naquelas corridas de carruagem – voou bem por cima da minha cabeça. Ela era puxada por dois corcéis pretos, e, assim que aterrissou, derrapando de lado cheia estilo, um cachorro colossal saltou lá de dentro.   


Cerberus, eu pensei no ato. Eu era meio ligada nessa coisa toda de mitologia – sempre achei que isso fosse influência de Cavaleiros do Zodíaco, que passava na Band Kids e eu assistia todos os dias, mas recentemente descobri que não.


De qualquer forma, eu nunca tinha visto um como aquele. Ele era do tamanho de um elefante indiano, tinha o pelo todo preto, e três cabeças de rottweiler.


E elas despedaçaram o animal mutante descontrolado numa fração de segundo, o que foi um choque pra mim. Eu não estava acostumada a ver violência natureza mutante VS natureza mutante nos meus sonhos.


Eu não aguentava nem assistir Predadores Selvagens no Discovery Channel.


Foi então que eu o vi.


O condutor – ou motorista... Piloto... Whatever – da carruagem era irado. Debaixo do braço, carregava um elmo; era meio parecido com aqueles elmos de oficiais romanos, sabe, com aquelas coisinhas vermelhas espetadas pra cima, só que todo trabalhado. O negócio parecia ter uns cem mil anos, mas não tinha um arranhãozinho.


Em sua outra mão, tinha uma lança. Uma lança estranha, na verdade, parecia mais um tridente, só que com dois dentes.


E ele estava usando uma armadura incrível, toda preta, mas brilhante como prata polida, embora ali nem tivesse uma boa iluminação.


O moço desceu da carruagem. É claro que eu tinha reparado no set todo dele antes de começar a detectar características fisionômicas, mas, quando eu olhei para o seu rosto, todo o resto ficou parecendo nem-tão-impressionante-assim.


Sua pele era pálida, quase acinzentada, bem distante do que eu estava acostumada a ver, já que onde eu morava só tinha gente bronzeada.


O cabelo parecia branco, mas na verdade era prateado, e bem comprido. Mais comprido que o meu, e eu estou deixando o meu crescer faz dois anos.


Ele tinha olhos afiados da cor do pôr-do-sol, e uma expressão dura de alguém que está no comando de uma tarefa muito difícil há muito tempo.


É claro, na hora eu não fiquei listando todas essas características.


Na hora, pra mim, ele pareceu...


Bem. Um gerente.     


— Voltem para as suas filas. — Vociferou, sem fazer o menor esforço, como se tivesse um alto falante embutido na garganta ou algo assim. — Não há nada para ver aqui.


Todo mundo obedeceu. Por que, né, quem quer discutir com um cara que tem um cachorro de três cabeças como animal de estimação?


Ah, sim, eu queria.


— Moço, — disse eu, puxando o manto escuro que cobria parte de sua armadura para chamar a atenção dele — você é o gerente daqui?


Ele olhou pra mim, de cima. Ele era alto pra cacete. Tipo. Too. Damn. High.  


— Perdão? — Disse, me olhando daquele jeito impaciente. Como se eu o tivesse assustado. Como se eu, com meu um metro e vinte e dois não-suficientes-centímetros para andar na montanha russa, pudesse assustar um cara daquele tamanho.


— Você é o gerente, né?


Ele não respondeu, apenas continuou olhando. De alguma forma, aos olhos dele, eu devia parecer bem impressionante.


— Olha, eu preciso ligar pra minha mãe. Eu sei o telefone dela, ela me fez decorar. Mas tem muita gente na cabine telefônica. O pessoal não tá saindo de lá. Eu acho que devia ter outros telefones aqui, tipo orelhões, porque aí todo mundo ia poder usar sem ficar apertado lá dentro. Orelhões são que nem cabines telefônicas, sabe, só que sem as cabines. E aquele barco lá é muito pequeno, por que tem tanta gente entrando nele? Você sabe que barcos tem um limite máximo de tripulantes, não sabe? Porque se não ele pode afundar. E você pode ser processado. Além disso, eu não acho legal o chão abrir, as pessoas podem cair lá dentro. Isso é ruim, sabe, as pessoas usam o metrô pra ir pro trabalho, meu pai me disse. Imagine se você fosse trabalhar e o chão abrisse quando você estivesse em cima dele? Você já pensou nisso? Foi por isso que aquele moço ficou bravo, e os guardas pularam todos em cima dele. Minha mãe diz que os consumidores têm seus direitos. E os animais também. Meu pai é biólogo marinho. Ele ia querer ter visto a cabra-leão-lagarto, porque você deixou seu cachorro matar ela?


Eu já estava meio chorosa e incoerente. Em parte, eu sabia que aquilo ainda devia ser um sonho, mas tudo parecia tão errado. Eu queria acordar. E ligar pra minha mãe.


O moço apoiou um joelho no chão, o que o deixou mais ou menos da mesma altura que a minha.


— Eu fiz aquilo porque ele ia machucar as pessoas aqui se eu não fizesse nada. — Disse ele. Sua voz não parecia mais estar no alto falante. Na verdade, ele parecia meu pai falando comigo quando o Sr. Cartola, meu coelho, pulou do penhasco atrás da nossa casa.


— Como você sabe? Só por que as pessoas ficam com raiva e se transformam em animais, não quer dizer que elas sejam más. — Minha psiquiatra dizia muito aquilo. Eu sempre sonhava que meus professores e as tias da cantina se transformavam em animais, e depois ficava com medo de ir pra escola porque achava que eles fossem me atacar.      


— Não quer dizer, mesmo. Mas ele era.


— Como você pode saber?


— Sabendo.


— Então você não tem provas! — Eu o acusei. Minha mãe era advogada. Ela não exercia a profissão, mas sempre falava sobre deveres e direitos, e provas. Provas eram importantes.


Eu estava chorando e as pessoas em volta estavam começando a encarar. Àquela altura, eu já devia ter acordado.


— Qual é o seu nome, querida? Quantos anos você tem? — Ele perguntou, de um jeito legal, como se estivesse pensando em me dar uma bala, ou coisa assim.


— Pierce Oliveira. Tenho nove anos, mas vou fazer dez no dia vinte de Março.


O moço pegou uma agenda eletrônica igual às dos guardinhas. Não sei de onde ele tirou aquilo, a armadura não parecia ter bolsos.


Sua testa franziu e ele olhou pra mim cuidadosamente, fazendo considerações.


— O que? — Demandei. — O que é?


— Quer ir a um lugar comigo, Pierce? Eu estava indo comer alguma coisa.


Eu virei o rosto, com minhas suspeitas.


— Que lugar? — Eu perguntei. “Não” seria a resposta certa. Eu não devia aceitar nada de estranhos, quanto menos “ir a lugares” com eles para “comer coisas”.


Mas as regras mudam quando você está sonhando. Às vezes, você tem que seguir o fluxo, acompanhar o andar da carruagem, por assim dizer.


— Um lugar bem mais legal do que aqui, com uma lareira e um monte de comida.


Uma lareira e um monte de comida. Aquele cara sabia como seduzir uma criança, isso era certo. Eu nunca tinha visto uma lareira, a não ser na televisão, e estava com fome.


— Tá bem. — Disse eu.


Foi aí que tudo começou a dar errado.


O moço se levantou, disse alguma coisa para um guardinha, e então me pegou no colo e me colocou dentro da carruagem.


— Mantenha braços e cabeça dentro da quadriga o tempo todo. — Avisou.


E, antes que eu pudesse dizer “o que é uma quadriga?”, a carruagem já estava avançando na maior velocidade.


Eu pisquei uma vez, e então já estava em outro lugar, numa varanda tão ampla quanto um salão de festas. Eu não conseguia imaginar como tínhamos ido parar ali. “Mágica”, disse ele. Aquele lugar era tão alto. E a vista era um pouco assustadora, não era bonita. Eu achei que estivesse olhando para dentro de um vulcão gigantesco, mas o moço não me deixou ficar olhando pra lá por muito tempo.


— Venha, eu quero mostrar uma coisa a você.


Eu o segui para longe daquela varanda de bom grado, esperando chegar logo ao lugar que tinha a tal da lareira. No entanto, não gostei mais da construção à medida que fomos entrando. Era tudo muito escuro, duro e frio. O chão era liso demais, o teto era alto demais, e os corredores estreitos demais. Não havia muitos objetos decorativos, exceto por uma ou outra pintura mórbida e estátuas de mármore.


Eu devia ter ficado no metrô, fiquei pensando. Aquele sonho horrível parecia cada vez pior.


— Eu não gostei daqui. — Falei finalmente. — Podemos voltar?  


— Estamos quase chegando. — Ele disse, colocando uma mão nas minhas costas, e me guiou adiante.   


— Tá, mas aonde? — Não era por nada, não, mas eu não achava que aquele lugar pudesse ficar muito melhor do que aquilo.


— Você vai ver.


E, pois é, eu vi. Depois de tanto suspense, a gente acabou chegando lá.


Era um quarto.


Ou, pelo menos, parecia um. Eu supunha que, se houvesse uma cama, o cômodo devia ser automaticamente promovido à quarto, independentemente do que ele realmente fosse. Pelo menos, enquanto a cama continuasse lá.


No entanto, a meu ver, aquilo era grande demais para ser um quarto.


Além de todos os elementos incompatíveis que tinha lá. Tipo, a mesa de jantar. A lareira. O divã de couro.


E a gigantesca biblioteca suspensa da metade da parede pra cima, a qual a plataforma anexada a uma escada espiral dava acesso. 


Também havia uma sacada, mas essa tinha uma vista bonita. Campos floridos, até onde eu podia ver.


— Você gostou daqui? — Ele perguntou.


Eu olhei pra ele, e então percebi que estava completamente diferente.


Sua armadura tinha desaparecido, ele estava usando uma camisa social preta e jeans preto. Também não parecia mais tão alto e seu cabelo tinha diminuído de comprimento, e se tornado grisalho.


Até o rosto dele tinha mudado um pouco. Ele parecia mais, hum, velho. Provavelmente por causa daquela barba preta e aparada, que não estava lá antes. Ela dava a ele um ar menos rígido e mais bondoso. Mais como alguém que você pode chegar e conversar do que com o general que ele parecia lá no lago.


— Você mora aqui? — Eu respondi. Eu não era tão boa em elogiar e admitir gostar de alguma coisa quanto era em apontar defeitos.


Por exemplo, que a cama e a mesa eram desnecessariamente grandes, e que ele não devia jantar onde dormia.


 — É mesmo? Eu acho que a cama tem um tamanho bom. — Ele falou, só pra começar a discutir comigo.


Mas eu sempre tinha uma resposta na ponta da língua, meus professores viviam reclamando disso.


— Só se você for casado.


— Eu sou casado.


— Mesmo assim, ela ocupa muito espaço.


— Mas eu tenho muito espaço.


— É, mas, você podia usar esse espaço pra outras coisas.


— Como o que?


— Você podia... Ter uma mesa de pebolim. Ou uma mesa de ping-pong.


Ele pensou sobre isso.


— É verdade. E qual é o problema com a minha mesa?


Não era óbvio?


— Ela é enorme! Você convida as pessoas pra jantar aqui? No seu quarto? Você não acha estranho convidar pessoas para comer no lugar onde você dorme?


— Na verdade, eu geralmente não convido ninguém para comer comigo.


— Então pra que você precisa de uma mesa tão grande?


— Ué. Quanto maior a mesa, mais comida cabe nela.


— É, mas... — Eu parei de discutir.


Não porque eu não tinha uma resposta na ponta da minha língua, mas porque um enorme banquete, com todo tipo de coisas boas, tinha aparecido em cima daquela mesa. 


Assim, magicamente.


— Não está com fome? — Perguntou ele, pousando a mão sobre a minha cabeça.


“Nunca aceite comida ou bebidas de pessoas que você não conhece, Pierce. Quando estiver numa festinha, sempre fique de olho no seu copo.” Sinceramente, eu já tinha ouvido aquela instrução vezes suficientes para gravá-la.


Mas tinha uma bacia cheia de cerejas lá, bem no centro da mesa.


Eu adorava cerejas.


Então, você já pode imaginar o que foi que eu fiz.


O moço puxou uma cadeira e se sentou perto de mim. Ele não devia gostar de cerejas tanto quanto eu, porque pegou uma outra fruta lá e ficou comendo aquilo, olhando pra mim. Era uma fruta estranha. Quando ele a abriu, não saiu suco, nem fez bagunça, porque dentro dela só tinha um monte de sementinhas cor-de-rosa. 


— O que é isso? — Eu quis saber, muito curiosa.


— Isso? É uma fruta chamada romã. — Ele me ofereceu uma metade. — Quer experimentar?


Peguei a metade que ele me deu e cutuquei as sementinhas.


Aquilo parecia sagu, aquele doce esquisito de bolinhas, sabe, só não era melequento.


Eu detestava sagu.


— Não, obrigada. — E devolvi a tal da romã.


O moço não pareceu chateado e não insistiu que eu comesse, mas descobri mais tarde que me livrei de uma boa por ter recusado aquela fruta.


— Sua esposa não vem comer com a gente?


— Não. Ela está... Viajando. — Ele respondeu. Eu não percebi esse delay, é claro, mas me lembro dele.   


— Hm. E quando ela volta?


— Logo.


— Hm... Qual é nome dela?


— O nome dela é Perséfone. Como o seu.


— O que? Meu nome não é Perséfone. É Pierce. Pierce Oliveira.


— Ah, é. Tem razão. — Ele sorriu. Foi um sorriso suspeito, mas eu não suspeitei.


— E qual é o seu nome?


— Meu nome é... muito feio. Então você pode me chamar de... John.


— É seu apelido?


— É. É meu apelido.


— E qual é o seu sobrenome?


— Hum, Doe.


— John Doe? — Eu pensei. Eu estava familiarizada com aquele nome. Minha mãe vivia dizendo “John Doe fez isso, John Doe fez aquilo”, e, como ninguém nunca se deu ao trabalho de me dizer que John Doe não era realmente uma pessoa, eu acabei associando. — Você é amigo da mamãe?


— Na verdade, — John tratou de se aproveitar da situação rapidinho — eu sou. — Ou talvez ele soubesse mais sobre a minha vida do que eu gosto de pensar que sim, como, por exemplo, que eu cresci com meus pais me confundindo com seus respectivos idiomas. — E foi por isso que a sua mãe me pediu pra cuidar de você.


— Hum? Como assim?


— Bem... Você vai ter que ficar aqui por um tempo. Mas vai ser divertido. — Ele me garantiu, tirando uma mecha do meu cabelo do meu rosto, então se ajoelhou a minha frente e segurou minhas mãos. — Nós vamos fazer um montão de coisas legais, e você vai poder comer o que quiser.


Era mentira.


Nós não fizemos um montão de coisas legais, e, embora ele me deixasse comer o que eu quisesse, cada dia parecia haver mais daquelas romãs e menos das outras coisas.


A maior parte do tempo, eu ficava no quarto. Ele me deixava andar pelo seu castelo livremente, – era um castelo, pelo que concluí depois – eu não gostava muito, no entanto; ah, e me deixava brincar com o cachorro, que, embora tivesse tamanho suficiente para me pisotear, passava bem mais tempo comigo do que John.


Mas ele não me deixava sair.


E, por mais que eu explorasse o castelo à procura, nunca encontrei uma saída pra mim.


Até que um dia, eles apareceram.


Eu estava procurando por Cerberus quando os ouvi passando. Havia três deles. Um menino e uma menina, que deviam ter mais ou menos a minha idade, e um garoto mais velho, sentado num burrinho – ou, pelo menos, foi o que pareceu pra mim.


Eles estavam conversando com John.


Eu não entendi bulhufas.


Os garotos falaram qualquer coisa sobre uma guerra entre os deuses, algo sobre o raio de Zeus e não sei quem de Poseidon.


Pra mim, estavam falando de Cavaleiros do Zodíaco.


E John parecia estar bravo por ter perdido seu elmo ou alguma coisa, e gritou com os garotos por causa disso.


Quando a discussão terminou, ele os mandou embora – para irem procurar seu elmo, eu imagino.


Eu aproveitei a chance, e fui atrás.


Minha intenção era apenas segui-los, porque, sabe como é, um dos garotos tinha chamado John de tio e eu não estava afim de ser dedurada.


Mas, de novo, hiperativa, lembra?


— Eu acho que tem alguém seguindo a gente. — Sussurrou o garoto em cima do burrinho, que os outros dois chamavam de Grover.


E eles pararam.


— Quem quer que esteja aí, é melhor sair! — Gritou a menina, Annabeth.


Não! — Grover relinchou. — Ela não quis dizer isso! Quem quer que esteja aí, continue aí, nós estamos só de passagem... Não queremos perturbar seu descanso eterno, nem nada do gênero...


— Gente. — Disse o outro, o Percy. — É só uma garota.


Ah, droga.


Eu saí do meu esconderijo, e o garoto em cima do burrinho respirou aliviado.


Só então eu percebi que aquilo não era um burrinho.


— Você é um fauno! — Apontei pras pernas dele. Ele tinha pernas de bode.


Não. — Disse ele, ofendidíssimo. — Eu sou um sátiro.


— Sátiro?


— É. Sátiro. Sabe? Da natureza. Tocamos flauta.


— Qual é a diferença?


— A diferença, garota, é...


— Nenhuma. — Percy completou.


— Quem é você? — Perguntou Annabeth.


— Eu sou Pierce. Pierce Oliveira. Vocês são Percy, Annabeth e Grove, e estão indo embora daqui, não estão? Eu quero ir com vocês.


— Calma. Calma, calma, calma. — Grover levantou os braços, balançando a cabeça solenemente. — Primeiro, como sabe nossos nomes?


— Ela estava seguindo a gente, cabeça de bode. — Disse Annabeth.


— Pierce, o que está fazendo num lugar como esse? — Perguntou Percy.


— John me trouxe pra cá. — Comecei a contar. — Eu estava na minha casa, e então estava no metrô, aquele que tinha dois barcos. Eu estava esperando pra usar o telefone, mas aí o moço virou uma cabra-leão-lagarto e o chão abriu, e aquelas coisas saíram de lá de dentro. Aí, John apareceu, e o Cerberus matou o bicho. Depois, ele me levou pro quarto dele, e me disse que minha mãe disse que eu tenho que ficar aqui, mas ele não me deixa ligar pra ela, e não me deixa sair, nem ir embora. Por isso eu quero ir com vocês.


— Peraí. — Disse Percy. — Quem é John?


— John. John Doe. — Expliquei. — Ele é seu tio, não é?


Eles se entreolharam.


— Quem? — Perguntaram, quase os três juntos.


— John Doe! Ele é o dono do castelo! Ele é seu tio, vocês estavam falando com ele agora há pouco!


— Hades? — Annabeth falou num tom agudo.


— É... Vocês estavam falando alguma coisa sobre isso. Cavaleiros do Zodíaco e tal.


— Cavaleiros do que?


— Não importa! Foi ele que me trouxe. Podemos ir logo? Eu não quero que ele me veja.


— Você disse que ele trouxe você pra cá? — Grover foi falando lentamente, como se eu fosse retardada ou coisa assim. — Quando foi isso?


— Faz um tempão! Eu já estou aqui há meses!


Quantos meses?


— Não sei. Muitos. Foi antes do meu aniversário. Que importância tem isso?


— Quando você faz aniversário?


— Vinte de Março.


Isso pareceu esclarecer alguma coisa.


Fosse lá o que fosse.


— Ele te deu uma romã?


— O que? Aquela fruta? Deu. Como você sabe?


— Espera, Grover, — Annabeth olhou pra mim, como se algo, ou eu, a perturbasse — você não acha que ela... 


— Acho. — Disse Grover, torcendo os dedos de uma maneira nervosa. — É exatamente o que eu acho. Por isso Deméter se recusou a trazer a primavera esse ano. Por isso as safras têm sido tão ruins... — Sua voz foi diminuindo até virar um sussurro. — Por isso os sátiros estão morrendo de fome...


Okay... — Disse Percy. — Alguém quer compartilhar a informação?


— Ela é a Perséfone. — Annabeth apontou pra mim. — Hades a raptou de novo.


E eu pensei: “wuuuuuuuuuutt...?”.


— Você é uma deusa? — Percy perguntou pra mim.


— O que? Não!


— Nós precisamos tirá-la daqui. Rápido. O quanto antes. — Grover parecia estar tendo uma convulsão, de tanto que tremia, sei lá.


— O que? Você ficou louco? — Protestou Annabeth. — Nem pensar, nós já temos problemas demais com Hades, ele vai mandar a gente direto pros Campos de Punição se roubarmos a noiva dele.


Noiva? — Eu me ouvi dizer em voz alta, como se tivesse um caroço de abacate entalado na minha garganta.


— E o que você sugere? Deixar o mundo morrer de fome?


— Como assim? Ele vai devolvê-la em seis meses, não vai?


Seis meses? Eu pensei. Eu tenho que ficar aqui por seis meses?


— E se não devolver? Ele não devia ficar com ela durante a Primavera, e já estamos quase no Solstício de verão!     


Primavera?


Naquela época, eu ainda não sabia a ordem das estações, mas sabia que a primavera não costumava ser perto do meu aniversário.


E, embora isso tenha soado estranho pra mim, fiquei distraída com a expressão “Solstício de verão”, que eu não conhecia.


— Okay, agora foca no Solstício de verão! — Continuou Annabeth. — O que a gente tem que fazer até lá? Devolver o raio, e, graças ao Percy, encontrar o elmo de Hades também. Não temos tempo pra resgatar garotas deusas sequestradas por Hades, sinto muito. Nada pessoal. — Ela disse pra mim.


Eu estava começando a desgostar daquela garota.


— Olha, — eu falei — em primeiro lugar, eu não pedi pra ninguém me salvar. E, seja lá quem for esse Hades de quem vocês tanto falam, eu não fui sequestrada por ele, e não preciso de ajuda pra sair daqui, okay? Vocês só precisam andar até o lado de fora, e eu sigo vocês.


— Não! Nada de seguir a gente pra lugar nenhum.


— Qual é, Annabeth, não podemos deixar a garota aqui. Como você se sentiria se Hades sequestrasse você pra ser sua esposa e te prendesse aqui por seis meses? — Disse Percy.


— Ninguém me sequestrou! E eu não vou ser esposa de ninguém!


— Isso pode começar uma nova guerra. Além disso, nós só temos três pérolas.


— É, mas as pérolas não são todas dela?


Nós ouvimos um barulho. 


— Isso é o que eu acho que é? — Grover gaguejou.


— Cerberus. — Falei, alegremente. Eu reconhecia aquele “barulhinho” que as patas dele faziam quando andava no mármore polido.


— Corram! — Gritou Percy, agarrando o meu braço e disparando pelo corredor.


— Por quê? Aonde vamos?!


— Eu tive uma ideia!


Nós continuamos correndo, descemos uma longa escada e passamos por um jardim noturno.


E, então, estávamos fora. Naquele mesmo lago.


Bom, talvez não o mesmo, mas um parecido.


— Ow, ow, ow, qual é o seu plano exatamente, cabeça de alga? — Annabeth freou com tudo, agarrando nós dois pela gola da blusa.


— Grover disse que a cabine telefônica leva as pessoas de volta ao mundo dos vivos. Só formos por ela, talvez a gente saia pelo lugar em que entramos, o último lugar em que estive no mundo dos vivos, certo?


— É. Ou talvez a gente morra. — Informou Grover. — Você não ouviu o que eu falei? Aquilo lá é para pessoas que tiveram NDE only!


— Ei, me disseram que eu era naquela fila. — Falei. — O que são NDE?


— Era pra você entrar naquela cabine? — Perguntou Annabeth.


— Não naquela. Na do outro metrô.


— Metrô?


— Calma, você teve uma NDE? — Disse Grover. — Você morreu pra vir pra cá?


— Como assim? O que é uma NDE?


Grover segurou meu braço e começou a me arrastar pra fila.


— Com licença, com licença, abram caminho, Rainha do Submundo passando. — Ele foi dizendo, e furando a fila. — Escute, — disse então pra mim — você vai entrar na cabine, fechar a porta e ligar para o número quatro.


— Ligar para o número quatro?


— Sim, só aperte o número, okay?      


— Okay, apertar o número quatro.


— Isso é uma péssima ideia. — Disse Annabeth.


— E quanto a vocês?


— Nós temos as suas pérolas. — Falou Percy. — Obrigado por isso, by the way.


— Minhas pérolas?


— Chega de papo, vai. VAI! Go, go, go, go, go!


Grover me empurrou para dentro da cabine telefônica, e bem a tempo, um dos guardinhas já estava vindo encher o saco.


Eu segui suas orientações. Peguei o telefone e disquei o número quatro.


A próxima coisa que eu sei é que estava acordando numa cama de hospital, quatro meses depois da minha morte.


Eu estava bem viva.    



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Autor(a): ookamipuppy

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

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É claro que ninguém acreditou em mim quando eu disse que tinha morado quatro meses no quarto de um cara que podia ou não ser o deus dos mortos, e que só consegui escapar de lá quando dois garotos e um menino bode me levaram pra cabine telefônica do metrô de barcos. Todo mundo já sabia que eu era meio louca mesmo. De qua ...



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