Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono
É claro que ninguém acreditou em mim quando eu disse que tinha morado quatro meses no quarto de um cara que podia ou não ser o deus dos mortos, e que só consegui escapar de lá quando dois garotos e um menino bode me levaram pra cabine telefônica do metrô de barcos.
Todo mundo já sabia que eu era meio louca mesmo.
De qualquer forma, isso complicou um pouco as coisas. Meus pais resolveram brigar pela minha guarda, e mamãe acabou vencendo, então, eu fui morar com ela no seu apartamento fancy as fu*k em Manhattan.
Bem, morar é relativo, já que eu passava muito mais tempo naquela clínica psiquiátrica, onde dezenas de pediatras e terapeutas tentavam fazer lavagem cerebral em mim todos os dias, do que em casa.
Quando eles finalmente me convenceram de que, não, eu não tinha passado quatro meses no inferno, brincando com um cachorro de três cabeças e conversando com o deus da morte, e sim numa cama de hospital em coma, eu tinha doze anos.
Aos poucos, fui sendo reintegrada à sociedade. Eu compensei os meses que tinha perdido de aula com a coisa toda do coma, terapia e reintegração, e consegui entrar no Ensino Médio com apenas um ano de atraso.
Mas nunca consegui alcançar o tão aclamado equilíbrio físico, social e mental para uma saúde integral que eles vendiam lá na clínica em que a mamãe me colocou.
Foi importante, mesmo assim, porque pelo menos eu aprendi a manter a minha boca fechada.
Por exemplo, eu nunca disse a ninguém que minha professora particular de inglês se transformou numa mulher cobra e tentou se enrolar em mim pra me esmagar até a morte, e que ela só não conseguiu fazer isso porque o chão se abriu – exatamente como aconteceu no lago/metrô – e a esmagou primeiro.
Eu nunca disse a ninguém que meu instrutor de educação física era um monstro marinho, e que tentou me afogar na piscina da escola quando eu estava sétima série, ou que o menino da oitava que me chamou pra ir ao cinema tinha uma espada de bronze e tentou me levar sob sua custódia – em nome do Grande e Poderoso Titã Cronos, o novo rei da Terra.
Eu nunca disse que vi aquele menino Percy na televisão várias vezes, sendo procurado por agressão, vandalismo, destruição de patrimônio público e invasão de propriedade privada.
Também não disse que eu o vi várias vezes depois da minha morte – John aparecia geralmente quando eu estava com problemas, resolvia as coisas e ia embora, assim, sem nem dizer nada.
Todavia, da última vez que nos encontramos, ele estava tentando arrombar a entrada do Empire State Building. Sei lá por que, eu não parei pra perguntar.
Depois disso, as coisas até que ficaram relativamente tranquilas, e eu pude ter uma vida mais ou menos normal por cerca de uns... Oito meses, algo assim.
Daí eu fiz dezesseis anos, e tudo voltou a dar errado.
Era o primeiro dia de primavera...
Ah, eu adorava a primavera. Era minha estação do ano preferida. Uma das coisas que eu mais gostava em morar no hemisfério norte era que meu aniversário coincidia com o primeiro dia da primavera, o que tinha tudo a ver.
Então, como eu mantinha a tradição de dar pelo menos uma voltinha no Central Park naquele dia, mesmo sabendo que havia uma festa esperando por mim em casa, disse ao senhor Bukowski, o motorista que a minha mãe tinha contratado pra me levar a todos os lugares, que me deixasse lá, que eu voltaria a pé pra casa.
Ele fez um pouco de corpo mole, é claro, dando uma de João-Sem-Braço, dizendo que minha mãe queria que eu fosse direto pra casa, porque tinha algo muito importante pra falar comigo.
E eu disse “aham, Sr. Bukowski, eu sei disso, mas tenho algo muito importante pra fazer aqui também, só vai levar uma meia horinha”, aí abri a porta e saí do carro.
Estava um dia lindo. O clima tinha esquentado mais cedo naquele ano, todas as árvores já estavam floridas. E o sol estava ótimo.
Perfeito pra tirar uma soneca.
Dormir à noite sempre foi um problema pra mim, – eu ficava agitada demais no escuro – e acabava tendo sono durante o dia, ao voltar da escola. Então, sempre que tinha a chance, eu parava no Central Park, achava um banco com bastante sol e ficava lá a tarde toda, dormindo que nem uma mendiga.
Minha mãe odiava que eu fizesse isso, ela vivia dizendo que um dia eu ainda ia acabar sendo assaltada, – ou coisas piores – mas sonecar nos bancos do Central Park em dias como aquele era uma das minhas maiores alegrias, uma das quais eu não tinha a menor intenção de abrir mão num futuro próximo.
Mal sabia eu que não voltaria a fazer aquilo por um bom tempo.
Uma parada chata de dormir em público é que sempre existe a chance de aparecer alguém para encher o seu saco. Às vezes são crianças jogando frisbee com o cachorro. Às vezes é um bêbado matutino querendo fazer strip-tease na sua frente. Às vezes são senhorinhas querendo conversar sobre a vida e apresentar você aos netos delas.
De qualquer forma, a probabilidade nunca é nula.
Naquele dia, foi um cara sem noção.
Ele simplesmente parou na minha frente e ficou ali, me encarando.
— Dude, — disse eu, tirando meus fones — você tá bloqueando totalmente o sol, cara.
— Não tem de que. — Ele respondeu descaradamente, sorrindo pra mim como se estivesse me fazendo um favorzão.
Eu levantei meus óculos escuros para que ele visse a expressão de incredulidade no meu rosto.
Isso não pareceu afetá-lo nem um pouco, porém.
Como a gente aprende desde cedo que não é bom dar trela pra esse tipo de gente, eu nem discuti, joguei minha mochila pro outro lado e deitei minha cabeça nela, na esperança de que ele fosse embora.
Em vez disso, o cara puxou meus pés pra fora do banco com seu sapato e se sentou onde eles estavam.
— Ei, — essa eu não aceitei — sabia que tem um zilhão de bancos nesse parque? Coincidentemente hoje, esse não está vago, que tal você ir procurar outro?
— Eu gosto desse. Tem uma boa vista. — Disse. Mas ele não estava olhando “a vista”, estava olhando pra mim, tipo, fixamente.
Eu não conseguia nem acreditar nisso.
Eu não costumo ter o melhor dos bons humores quando quero dormir e não me deixam. Na verdade, posso ser mais letal do que uma cobra cascavel se me acordarem sem um bom motivo.
Mas era o primeiro dia da primavera. Resolvi relevar.
Fui embora.
— Eu não dei permissão a você para se levantar. — Ele disse, fazendo parecer a coisa mais normal do mundo de se dizer.
Eu olhei pra ele, apenas.
Por alguma razão, pensei que aquilo seria algo que John diria.
Não que alguma vez ele tivesse dito isso pra mim, eu só fiquei pensando.
— Whatever, man.
Eu me virei.
Daí ele agarrou meu pulso e foi me puxando na direção oposta.
— Muito bem, então. Vamos dar uma volta.
Ah, essa não...
Ele devia ser um daqueles... Um daqueles garotos que andavam com armas estranhas por aí, falando de mitologia grega como se fosse tudo verdade.
Eu olhei em volta, torcendo para que alguém tivesse visto aquilo. Mas ninguém tinha. Ninguém nunca via. Um marmanjo fantasiado de soldado espartano podia apontar uma lança de três metros pra minha cara no meio da Av. Madison que nenhuma alma viva ia sequer olhar duas vezes.
Era sempre assim.
— Você devia me soltar. — Avisei o carinha. — Ou pode se dar mal.
Não era uma ameaça, eu estava só avisando, mesmo.
— Veremos isso.
Ele não me soltou.
Para bem ou para o mal, John não apareceu, como costumava fazer em ocasiões como essas, e o cara foi me arrastando até a Fonte Bethesda, que ficava mais ou menos vazia àquela hora no meio da semana.
Ainda assim, havia um número considerável de testemunhas, cuja maioria dos malfeitores provavelmente gostaria de evitar, então eu não entendi muito bem o que o cara estava pretendendo fazer comigo.
Ou talvez ele soubesse que, qualquer que fosse a coisa bizarra que ele quisesse fazer, contando que fosse especificamente contra mim , ninguém ia prestar atenção.
— O que você acha? Tem bastante espaço aqui, não? É bem aberto.
— Depende de com o que você estiver comparando. — Respondi na lata. Eu não achava que o cara tivesse me levado lá por causa “da vista”.
Ele avançou alguns passos na minha direção.
Sei que isso ainda vai me meter em problemas algum dia, mas não tenho o costume de recuar quando alguém tenta me intimidar desse jeito. Portanto, fiquei completamente imóvel, indiferente à aproximação dele, até que estivesse tão perto que meu nariz ficasse praticamente roçando na sua blusa.
Minha palavra para aquilo era “desnecessário”.
— Eu gostei de você, Rainha dos Mortos. — Argh. Eu sabia que ia dar naquilo. Era geralmente assim que minhas alucinações começavam. Não com “gostei de você”, mas tinha sempre alguém me chamando de “Rainha dos Mortos”. — E, já que devo tomar o lugar do Senhor do Submundo, talvez eu devesse torná-la minha esposa. O que acha disso?
— Eu acho — olhei pra ele. Eu sempre fui meio baixinha, e, por tabela, a maioria das pessoas era mais alta do que eu, mas ele era alto. Quase tão alto quanto John, e isso quer dizer alguma coisa — que você tem que largar as drogas.
Ele sorriu.
— Você é muito abusada. — Disse, e pegou uma mecha do meu cabelo. Apenas pegou, ele não fez nada com ela.
Ainda assim, eu quase surtei.
Pra começar, porque nenhum cara – a não ser, é claro, meu pai e John – nunca tinha chegado tão perto assim de mim. Eu nunca tinha tido um namorado, nem sequer tinha dado meu primeiro beijo ainda.
Não que eu não fosse bonita. Eu era, ou, bem, pelo menos, era o que todo mundo dizia.
Sem brincadeira, às vezes eu me sentia o tal do lobo mal daquela história da Chapeuzinho Vermelho quando alguém chegava pra mim e começava a dizer: “nossa, que olhos grandes você tem, eles são tão escuros”, ou “nossa, que cabelo lisinho você tem, ele é tão macio, não tem nenhuma ponta dupla”, ou “nossa, você tem uma pele tão perfeita, não tem nenhuma manchinha, nenhuma espinha”.
E eu ficava meio, tipo, aff...
Então, nunca suspeitei que meu problema com garotos pudesse ser algo relacionado a minha aparência. As a matter of fact, vários meninos já me disseram que eu sou muito bonita, que eu pareço uma boneca, que eu devia ser modelo.
Até modelos já me disseram isso.
Embora talvez eu não tivesse altura suficiente.
Mas o fato é: sempre que um garoto começa a mostrar algum tipo de interesse por mim, ele simplesmente para de se interessar, e passa a me ignorar completamente, assim, dois ou três dias depois.
Sem brincadeira, o mais perto que eu já cheguei de sair com um menino foi daquela vez com o garoto da oitava série, o que tentou me levar sob sua custódia em nome de Cronos e tal.
E agora esse cara estava pegando no meu cabelo...
Então eu dei uns passos pra trás.
E ele riu.
— Tudo bem, não precisa responder agora. — Ele se afastou um pouco também. — Foi-me dito que você renasceria com a próxima geração se eu a matasse por acidente. Seria uma pena, mas eu realmente preciso saber a que nível o poder dos deuses atuais se compara ao meu. Espero que você não se incomode.
— Eu não sei do que você tá falando. — Eu disse. Porque é isso que eu digo quando essa gente começa a falar loucuras com tanta convicção.
Mas é claro que eu entendi que ele tinha acabado de ameaçar me matar.
Então achei que seria uma boa hora pra John aparecer, quer dizer, se por acaso ele estivesse vindo...
Não que eu tivesse esperado por isso.
— Bem, peço que se esforce um pouco mais. Eu gostaria que me enfrentasse com toda a sua força...
Ele levantou um braço na direção do Sol, e eu me encolhi, achando que fosse jogar alguma coisa em mim, ou sei lá.
Mas nada aconteceu imediatamente.
E, então, alguns segundo depois, o céu começou a escurecer, como se uma grande tempestade de repente tivesse se materializado bem em cima de Manhattan.
Mas não era uma tempestade.
Era apenas... Escuridão.
—... Ou seria mais apropriado que a Rainha dos Mortos morresse passivamente? — Agora ele estava rindo, era o maior loucão do Central Park. — Como desejar. Que a morte de Perséfone, a Deusa Maldita, sirva de aviso para os deuses do Olimpo! Que todos saibam que Apógnos, filho de Erebos, e deus das trevas e do desespero, — ih, isso não parece ser bom, fiquei pensando. A massa negra acima da cabeça dele estava tomando uma forma muito concreta envolta por estática, próxima demais para o meu conforto. Mesmo assim, eu só fiquei olhando — reivindicará seu lugar de direito entre os tronos do Ol...
E aí...
Um frisbee bateu na cabeça dele.
Ruuuuuuuuuuuuuuuun! Eu ouvi. Era a voz da sabedoria ecoando como uma sirene dentro da minha cabeça.
E eu corri feito o Road Runner.
Eu nem parei, nem vi pra onde estava indo, nem liguei para os carros, apenas continuei correndo até conseguir me convencer de que eu tinha imaginado tudo aquilo.
Quer dizer...
Apógnos? Sério mesmo? Erebos até vai, ele era o deus da sombra, mas Apógnos? O deus das trevas e do desespero?
Já não bastava passar noites em claro pesquisando sobre mitologia grega, agora eu estava inventando a minha também.
Apógnos.
Rá.
Que brisa.
Eu voltei pra casa.
Minha mãe tinha convidado meio mundo pro meu aniversário, e, é claro, eu não conhecia quase ninguém, só umas garotas da minha escola, que, na verdade, não eram bem minhas amigas, mas fingiram gostar de mim direitinho, porque, afinal, todos os outros convidados eram conhecidos da minha mãe – ou seja, empresários bem sucedidos, artistas e modelos famosos.
E, por minha vez, eu fingi estar muito surpresa, já que esse parecia ser o objetivo oficial daquela coisa toda.
Mamãe me mandou pro meu quarto com um dos seus estilistas – evidentemente, eu não podia ficar perambulando pela sua, digo, minha festa com o uniforme da escola – e, vinte minutos depois, eu estava absolutamente fabulosa, tanto quanto ou até mais do que qualquer uma daquelas celebridades.
E minha mãe saiu me exibindo pra todo mundo como se eu fosse a filha perfeita.
Ah, se eles soubessem que eu tomava remédio pra gente louca...
Eu nunca me importei muito que ela fizesse isso, mas também não gostava, exatamente. Não tinha o menor interesse por todas aquelas pessoas, ou por aquelas roupas, ou por qualquer coisa que aquelas pessoas se interessassem.
O que provavelmente queria dizer que eu também não tinha o menor interesse pela minha mãe ou pelas coisas que ela achasse importante – sim, eu sei que isso é algo horrível pra uma filha dizer, mas é, é isso aí mesmo.
Por mim, eu vestiria sempre minhas roupas de princesinha do campo, como papai diria. Eu adorava vestidos de menininha, aqueles floridos e soltinhos com mangas curtas, e adorava andar de rasteirinha.
Minha mãe vivia dizendo que por isso eu não arranjava um namorado.
Mas eu tinha minhas próprias suposições a esse respeito.
De forma ou de outra, não foi por falta de esforço da parte dela, mamãe vivia me apresentando à prole masculina do seu círculo de amizades. Sempre havia um Adam Não-sei-do-que, filho de um grande investidor no mercado imobiliário, ou um Gabe Não-sei-quem, filho de uma apresentadora de tevê.
O carinha da vez era um tal de Mikal Ahmeddoganenimehmedov – ou qualquer coisa com a pronúncia aleatória muito parecida. Eu já não fazia a menor ideia de onde ele vinha ou do que os seus pais faziam da vida, tudo que eu sabia é que ele não tinha parado de listar os lugares onde sua família tinha residências desde que nos apresentamos.
Por fora, eu sorria e acenava.
Por dentro, eu estava tipo assim “aaaaaaaaa-AAAAAAAA-AHH! T-é-d-i-o”.
Eu queria que Sten estivesse lá.
Stenio era uma das poucas pessoas com quem eu gostava de conversar na escola. Não que ele fosse o cara mais profundo e intelectual do mundo, mas, pelo menos, sabia quem eram os Cavaleiros do Zodíaco, e não deixava de levar seu Nintendo 3DS para escola só pra não ser chamado de nerd.
E, também, ele sempre dizia umas coisas engraçadas como, por exemplo, “você sabia que, na verdade, massagens anais funcionam melhor do que sustos para curar soluços”. Coisas assim, sem o menor contexto.
Meu pai também fazia isso. Soltar informações inúteis sem muito contexto, eu quero dizer.
Não coisas tão impressionantes assim, é claro, e definitivamente nada que envolvesse massagens anais, mas, uma vez, a gente estava amassando folhas de eucalipto para perfumar a casa e ele me disse: “você sabia que bebês coalas não podem comer folhas de eucalipto? Ela tem uma toxina que eles não podem digerir, então, em vez de folhas, os filhotes comem as fezes dos pais”.
“Argh”, eu disse, “pai! Que nojo!”.
E ficou por isso mesmo.
Confesso que parte da minha indisposição com aquela festa se devia ao fato do meu pai não estar lá.
Ele tinha me avisado que não poderia comparecer, que estava enrolado com suas tartarugas ou sei lá o que, – ele provavelmente devia saber que mamãe ia dar uma festa, meu pai odiava aquele tipo de coisa – mas ainda assim.
O nome daquilo era traição.
Anyway.
As coisas iam piorar a qualquer instante.
— Com licença. Será que posso cumprimentar a aniversariante?
Eu sabia que ele ia aparecer.
John também reservava suas aparições para os meus aniversários, por alguma razão. Ele não chegava a dizer, “ei, Pierce, olha só como você cresceu, feliz aniversário!”, nada do gênero. Como eu já disse, John não falava comigo.
Mas aquele aniversário estava sendo um dia de muitas surpresas.
Primeiro, o malucão tentou me matar no Central Park e John nem deu sinal de vida.
E agora ele estava falando comigo.
Bem, tecnicamente, estava falando com Mikal, ou, mais precisamente, tentando intimidá-lo muito efetivamente.
Mas estava falando perto de mim.
— Hm. Claro. Então... Depois a gente se fala, Pierce, eu tenho que... Ir.
E ele foi mesmo.
Eu olhei para John que, impressionantemente, ainda estava lá.
E, então, uma coisa ficou muito clara pra mim.
— É você! — Acusei. — Você tá me sabotando pra eu não arrumar um namorado!
Não que eu quisesse um, mas ainda assim.
— Eu não sei do que você está falando. — Retrucou ele, todo sério, pegou-me pelo cangote e foi me guiando até a saída.
— Ow, ow, ow! Qual é o seu problema, cara?! — Eu protestei, tentando me soltar sem muito sucesso.
— Nesse momento, você é meu problema. Fique quieta.
John entrou comigo no elevador. Ele não apertou nenhum botão, mas usou sua chave de segurança, sabe-se lá por que tinha uma, e girou-a para a esquerda.
Eu não sei bem o que aconteceu quando fez aquilo, mas o elevador fechou suas portas e deu um solavanco, como se tivesse saltado para frente, e então começou a descer.
O que me deixou bem nervosa.
Aquilo era a cara dele: me puxar para o elevador do meu próprio prédio e transformá-lo em um transportador saltitante com sua chavinha mágica.
Eu tinha um mau pressentimento quanto àquilo.
— Você tá me levando... — Eu engoli com força. — De volta?
Ele olhou pra mim.
— Onde esteve essa tarde? — Quis saber, sem dar atenção a minha pergunta.
Quase sendo morta por um cara que disse que vai pegar o seu lugar, pensei em dizer.
Mas eu não disse. Dizer seria como admitir que eu acreditasse naquela baboseira toda, e eu não acreditava.
— Em lugar nenhum. Aqui. Na escola. Pra que você quer saber?
— Pra que eu quero saber? — Ele chegou mais perto. Dava pra ver que estava bem irritado, como se tudo que tivesse tentado fazer naquele dia estivesse dando errado. Eu fui ficando apreensiva. — Não é da sua conta. Você vai me dizer exatamente o que fez hoje, passo a passo, e nós não vamos sair daqui até que tenha terminado.
Ele devia saber alguma coisa. Ou desconfiar de alguma coisa. Será que aquele cara apareceu pra ele também? Eu fiquei pensando.
Se eu tivesse dito de uma vez o que acontecera naquela hora e acabado logo com o suspense, muito provavelmente alguns problemas teriam sido evitados.
Mas entenda: quando você faz tratamento por seis anos pra encontrar uma coisa chamada “equilíbrio físico, social e mental”, conversar com caras que ninguém mais consegue ver sobre coisas que podem ou não ser um fruto da sua imaginação saindo do controle, é, assim, meio que...
Sabotar a si mesmo, sabe.
Totalmente anti-terapêutico.
Então estendi o dedo para apertar o botão do nosso andar, decidindo ignorá-lo.
John segurou minha mão antes que eu fizesse.
— Você ouviu o que eu disse?
— Não. — Droga. Eu não deveria estar respondendo.
— Eu disse — ele ainda estava me segurando — que você não vai sair daqui até me contar o que aconteceu.
— Olha, — falei, tentei soltar minha mão, mas seu aperto não cedeu — eu não sei o que você quer comigo. Primeiro você me leva pra viver no seu castelo, me deixa presa lá e fica dando uma de gostosão, como se estivesse me fazendo o maior favor do mundo, depois fica me seguindo pra todo lado, bancando o cavaleiro negro do cavalo branco, e nem se incomoda de parar pra me dar oi de vez em quando... Ou dizer pra minha mãe que você existe e que eu não sou completamente maluca. E agora você simplesmente invade a minha casa pra me dar ordens e fazer exigências? Não te interessa onde eu estive. Isso não é... Não é da sua conta! E... E... E se você continuar andando atrás de mim eu...
Sei lá.
John continuou me olhando daquele jeito sério dele.
Porque era só assim que ele me olhava agora, desde que eu fugira do seu castelo.
— O que? — Quis saber. — O que você vai fazer?
Eu não respondi. Eu tinha perdido o dom da resposta na ponta da língua, meus anos de internação reprimiram isso em mim.
Então só fiquei encarando.
John suspirou.
— Eu tentei encontrá-la... — Ele hesitou, de um jeito preocupado, como... Bem, como alguém que realmente se importasse... — Apenas me diga se alguma coisa aconteceu...
E eu quase confessei tudo, bem ali.
Quase.
— Eu fui ao Central Park e tirei uma soneca.
John olhou nos meus olhos, meio desconfiado.
— Foi só isso?
— Só isso.
E então relaxou.
— Outra coisa: — disse na sequência, bem mais casualmente — pode ser que você encontre alguns garotos dizendo que deve ir com eles para um “Acampamento Meio-Sangue” nos próximos dias... Bem, ignore-os. Você não vai querer ir pra lá.
— Acampamento... Meio-Sangue...? — Eu levantei uma sobrancelha. Nunca tinha ouvido falar sobre nada parecido. — O que é isso?
— Não importa. Não é lugar para você.
— Por quê?
— Porque, — ele estava meio irritadiço naquele dia — porque não é. Se disserem qualquer coisa sobre isso, você recusa. Você entendeu o que eu disse?
Não discuta. Não discuta, não discuta, não discuta...
— Tá, tanto faz. — Falei, meio de má vontade. Ele olhou feio pra mim. — Tudo bem, eu entendi, eu recuso, okay? Satisfeito? Posso ir embora agora?
— Espere.
John tirou uma caixa preta retangular de veludo do bolso. Eu olhei pra ela e meus olhos cresceram até ficarem do tamanho de duas ameixas.
Ele ia me dar aquilo? Fazia sentido, afinal, era meu aniversário...
Mas eu nunca tinha ganhado nada dele antes. Quer dizer, além de frutas esquisitas.
E, por alguma razão, eu fiquei su-per-em-pol-ga-da. Como uma criancinha alegre numa manhã de Natal.
Ainda mais quando ele abriu a caixa e me mostrou a linda gargantilha que tinha lá dentro.
A correntinha era muito delicada, toda trançadinha e trabalhada, de um metal estranho muito escuro, como o da armadura que eu o havia visto usando no dia em que nos conhecemos.
E, do centro dela, pendia uma pedrinha do tamanho de uma semente de avelã, com um brilho perolado como o de uma selenita.
Só que vermelha... Muito vermelha...
Como...
Bem, como...
Cerejas!
— Eu gostaria que você o usasse. — Ele disse, muito lentamente. Certamente achava que eu fosse recusar.
Eu também achava que eu fosse recusar, na real.
Quer dizer... Pra ser sincera, eu não confiava muito nele me dando coisas, porque, como eu disse, a única coisa que ele já tinha me dado até aquele dia foram aquelas frutas.
E alguma vez eu disse a você o que significava aquilo?
Casamento.
Pois é, é isso aí que você ouviu. John tentou, e não apenas uma vez, me fazer comer uma fruta que simbolizava casamento quando eu tinha nove anos. Como Hades fez com Perséfone, para aprisioná-la para sempre no mundo dos mortos.
Então espero que você possa entender a minha relutância.
— Okay... — Me ouvi dizer.
E até hoje não faço a menor ideia do por que concordei com aquilo.
John, também, mal podia acreditar.
Ele não questionou minha decisão, no entanto, apenas pediu licença para colocá-lo em mim.
E eu deixei.
— Feliz aniversário. — Ele disse, quando me virei para agradecer. E ficou me olhando. — Você... Está muito bonita.
Nesse momento, eu senti a coisa toda subindo lá de baixo, aquela excitação instantânea de algo-incrível-está-prestes-a-acontecer, e, por um segundo, achei que ele fosse me beijar.
Mas ele se virou e saiu do elevador, para um andar que eu nunca tinha visto no meu prédio.
E que nunca mais voltei a ver.
Autor(a): ookamipuppy
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Quando olhei, já era tarde demais. Eu dei uma trombada espetacular com a pessoa a minha frente, e minhas coisas se esparramaram todas pelo corredor. — Me desculpe. — Eu falei, embora não fosse exatamente minha culpa. Uma pessoa não podia simplesmente parar no meio do corredor pra conversar àquela hora, perturbava completamente o deli ...
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