Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono
... e ficar de castigo num acampamento cheio de crianças meio deusas, tudo no mesmo dia.
— Certo... — Eu disse. — Então imagino que vocês estejam mortos e que eu possa falar com fantasmas agora. Fantástico, por que nunca pensei nisso antes?
— Você não está morta, está? — Percy retrucou. — Morrer não é o único jeito de entrar no Submundo.
— Ah, não? E qual é o outro jeito?
— Pela porta da frente. DOA Recording Studios, West Hollywood, California.
— Ah. Claro... — Afinal, por que não? — Tudo bem então. Algum de vocês sabe o que foi aquilo lá atrás?
— Nós íamos perguntar a mesma coisa. — Disse Grover. — O que eram aquelas bolas enormes tentando te matar?
— Como assim? Vocês não viram o cara?
— Que cara? — Perguntou Percy.
Nem as minhas alucinações sabiam do que eu estava falando.
— Ninguém. Eu devo ter me confundido. — Desbaratei, recostando-me ao banco. — Então, o que exatamente é isso aqui? Um carro-subaquático?
— Não, é só o carro da minha mãe. — Respondeu Percy.
— Que eu destruí. E ela vai me matar. — Lamentou-se Grover mais uma vez.
— Vai nada. Até parece que você não a conhece... Enfim, eu improvisei a parte do subaquático, já que optamos por uma saída de emergência.
— Você improvisou? — Aquilo parecia cada vez melhor.
— Pois é, uma das vantagens de ser filho do deus do mar. — Ele se gabou.
E eu fiquei só olhando.
— Você é o filho do deus do mar?
— É isso aí.
— E... Por deus do mar você quer dizer... Poseidon?
Quando eu disse isso, o carro estremeceu um pouquinho, como se estivéssemos entrando numa zona de turbulência ou em uma grande correnteza.
— Okay, primeira regra do clube-Acampamento Meio-Sangue: — colocou Grover — você não usa o nome dos deuses em vão.
— Segunda regra do clube-Acampamento Meio-Sangue: — Percy logo emendou — você não usa o nome dos de...
— Calma. — Eu interrompi. — Você disse “Acampamento Meio-Sangue?”
— Sim, foi o que eu disse. É pra lá que nós vamos.
— Ow, ow, ow, peraí, amigo. — Eu já fui atalhando o negócio. — Vocês não são uns daqueles garotos otakus que saem por aí se vestindo de saintos e prendendo as pessoas e nome de Cronos, são?
O carro estremeceu de novo.
— O que-e-e-e? — Grover soltou num balido. — É claro que não!
— Não estamos do lado dos titãs. — Esclareceu Percy. — Nós somos os mocinhos.
Okay, muuuuuita informação pro meu cérebro com ADHD.
— Então quem são vocês?
— Eu já disse. Eu sou Percy, e ele é o Grover. Eu sou um semideus, e ele é um fauno.
— Sátiro!
Percy revirou os olhos.
— Potato, potato, tomato, tomato. É a mesma coisa.
— Não é, não! Como você se sentiria se eu começasse a te chamar de mexicano, só porque sua mãe nasceu em Porto Rico?
— Minha mãe não nasceu em Porto Rico, cara. Ela nasceu no Texas.
— Exatamente.
Eu coloquei a minha pobre e sobrecarregada mente pra funcionar.
Semideus. Percy. Entrando no inferno e saindo vivo...
— Você não é aquele Perseu da mitologia, é? O que cortou a cabeça da Medusa.
Percy torceu o nariz. Pelo jeito, meu comentário trouxera-lhe más recordações.
— Hum, não aquele Perseu... Embora, sim, eu tenha cortado a cabeça da Medusa uma vez.
— Uma vez? Como assim, você pode cortar a cabeça dela várias vezes ou coisa assim?
Os dois se entreolharam.
— O que Ha... O que meu tio contou a você exatamente, Pierce?
— Quem? John? Ele era mesmo seu tio? — Eu parei e pensei. E então me lembrei. — Hum... Na verdade, eu acho que não vou poder ir com vocês pra esse tal de Acampamento do Sangue, não. Veja, eu tenho que estar de volta em casa às sete, então, se vocês pudessem só me deixar ali na superfície, já ia ser bom...
Eles fizeram um coro de “hãããã” e Grover se mexeu.
— Mas você... A senhora... Está em perigo...
Ele acabou de me chamar de senhora?
— O que? Aquilo lá? Que nada, acontece sempre.
— Mas sua mãe disse...
— Minha mãe? Vocês conhecem a minha mãe?
— Bem. Sim. — Grover ficava mandando lampejos de olhadinhas discretas para Percy, que parecera resolver ignorá-lo sem o menor pudor, e então voltava a encarar seus próprios dedos calejados, como se achasse que estivesse fazendo tudo errado. — Todo mundo conhece a sua mãe...
— É. Ela é a deusa da colheita, certo?
Ah.
Eles estavam falando de Deméter.
— Okay... E o que foi que ela disse?
— Ela nos disse onde encontrar você. E disse que meu tio faria alguma coisa para impedir que viesse com a gente.
Então foi isso, pensei.
— Tá, mas sobre aquela parte do “você está em perigo”, — falei. Aquilo já estava me deixando um pouquinho preocupada. Quer dizer, eu vinha tendo empates razoavelmente difíceis com o “perigo” desde os meus dez anos, e ninguém nunca tinha aparecido para me avisar sobre eles. Agora, se dois supostos deuses já tinham se levantado pra me dar o alerta, a coisa devia estar pegando pro meu lado — ela disse algo sobre isso?
— Então, não nos disseram muito. — Percy coçou um resquício de barba mal feita no cantinho de sua mandíbula, parecendo um tanto incomodado. — Por enquanto, o que a gente sabe é que Rachel citou você numa profecia, mas, até que se prove o contrário, isso é um assunto exclusivo dos deuses, e eles, hum, vocês não gostam muito de dividir essas coisas com a gente. Quíron e o Sr. D. provavelmente vão explicar melhor quando a gente chegar, eu acho.
Bom.
Até ali, eu já tinha captado duas informações importantíssimas.
Primeiro – que existia uma pessoa chamada Rachel me difamando por aí.
Segundo – que eu era assunto exclusivo dos deuses.
Eu devia me sentir super honrada ou alguma coisa assim.
— Então tá, deixe ver se eu entendi direito: eu estou indo pra um lugar chamado “Acampamento do Sangue” com vocês porque alguém fez uma profecia sobre mim?
— Acampamento Meio-Sangue. — Grover corrigiu. — Isso e porque... Bem, você ficaria segura. O quer que esteja, hum, atrás de você... Não vai poder te seguir até lá. A colina toda é abençoada pela proteção dos deuses.
Ah, sim, fiquei pensando, a proteção dos deuses.
Confesso que aquilo não me convenceu muito, não, mas que outra opção eu tinha?
Eu não tinha como saber se o maluco do Central Park era real, não tinha como saber se ele ia tentar me matar de novo. De todo jeito, também não podia simplesmente deixá-lo me seguir até o meu prédio, até a minha casa, onde morava a minha mãe, caso ele fosse.
E, como eu nunca tinha tido nada parecido com uma “proteção dos deuses”, imaginei que mal não pudesse fazer.
Então deixei que me levassem ao tal acampamento lá.
Eu não sei que bruxaria Percy fez com aquele carro, mas nós levamos menos de vinte minutos pra ir de Yorkville até Montauk, percurso que, por terra, teria nos tomado no mínimo umas três horas, se o trânsito estivesse bom.
— Teremos que pedir aos filhos de Hefesto para darem uma mãozinha com essa belezinha depois. — Disse Percy, presenteando o capô destruído do Camaro com dois tapinhas amigáveis, e deixou-o estacionado na praia de Long Island Sound.
Eu pensei em comentar que ele tinha acabado de usar o nome de um deus em vão, mas resolvi não dizer nada.
— Bom, hum, bem-vinda ao Acampamento Meio-Sangue. — Falou Grover, com um gesto amplo abrangendo todo o campo.
— Uau. — Falei.
Aquilo não era nada como eu tinha imaginado.
O termo “Acampamento do Sangue” devia ter grudado na minha mente, eu meio que estava esperando um, sei lá, campo de treinamento espartano, com arenas de gladiadores, leões despedaçando pessoas e sangue pra todo lado.
Foi um alívio indescritível chegar lá e descobrir que não. O lugar era praticamente um acampamento de verão, não muito diferente daqueles para os quais as mães mandam suas crianças gordinhas pra tentarem emagrecer durante as férias.
Mas isso me deixou também um tanto inquieta.
Como eu poderia ficar segura naquele lugar? Aliás, como aquele lugar poderia ser seguro comigo lá dentro?
Eles tinham criancinhas.
Tipo, campistas de verdade, sabe, vestindo jeans e camiseta laranja com o slogan do acampamento.
Aquilo só podia ser gozação.
Enquanto passávamos, os outros campistas olhavam pra nós, e acenavam para Percy, que devia ser uma espécie de Julian Keener daquele lugar.
E, quando já tínhamos passado, cochichavam coisas como:
“É ela?”
“... não parece uma deusa...”
“... deve ter quase a nossa idade.”
— Ali fica o pavilhão de jantar, os nossos chalés e os banheiros. Pra lá temos a parede de escalada, o anfiteatro, a lagoa de canoagem, a quadra de vôlei e o ateliê, e, do outro lado, a arena, o arsenal, estábulos e forja. Mais pra lá fica nossa plantação de morangos, e essa é a casa grande. — Percy ia apontando à medida que avançávamos.
Ao chegarmos à “casa grande”, uma garota ruiva e sardenta apareceu na varanda. Ela não estava vestindo o uniforme do acampamento, e sim uma camiseta verde com a inscrição “SAY NO! to Polution and Stuff”, coturnos, calças camufladas e boné do exército.
Ela olhou para nós, como se não esperasse nos ver ali.
— Ué. Olá, vocês. Já foram e já voltaram?
— Mas é claro. Essa deve ter sido a missão mais rápida do milênio. — Percy abriu um sorriso enorme, e então nos apresentou. — Pierce, essa é Rachel Elizabeth Dare, nosso Oráculo. Rachel, Pierce, hum... Oliveira, certo?
Eu acenei que sim.
— Você é a pessoa que faz profecias?
— Sou eu. — A garota pegou minha mão e a sacudiu freneticamente, toda receptiva. — É um prazer conhecê-la, Perséfone. Então você é a deusa da profecia? Percy e Annabeth me falaram de você. É verdade que você tem que morar no Submundo durante o outono e o inverno? Me explique uma coisa: como funciona o esquema de inversão das estações entre hemisfério norte e sul? Porque, se aqui é verão quando lá é inverno, e aqui é inverno quando você está no Submundo, então lá deveria ser sempre outono e inverno, não acha?
Eu imaginei que “hã...” fosse a resposta certa para aquela pergunta. Mas em vez disso eu respondi:
— Então. Meu nome é Pierce.
— Pierce não é abreviação de Perséfone?
— Hm. Não.
— Ah. Okay. Então posso te chamar de Pierce, sem problemas?
— Pode. — Falei. E enfatizei, olhando para Grover. — Por favor, me chamem de Pierce.
— Tudo bem, Pierce. O Sr. D. e Quíron estão lá em cima, acho que você quer conversar com eles, não é? Quer que eu a leve até lá?
— Hum... Okay.
Eu pensei que Percy e Grover fossem entrar comigo, mas os dois apenas sorriram e disseram que ficariam esperando ali fora, e que depois me mostrariam melhor todo o acampamento.
Então eu entrei.
A casa grande era realmente...
Grande.
O primeiro andar era quase todo ocupado com uma enfermaria meio improvisada. Não parecia faltar nada ali, mas ela era mais lotada do que qualquer enfermaria em que eu já tivesse entrado – cheia de redes, esteiras e macas estendidas pra tudo quanto é canto para poder abrigar todo mundo. Pelo que me pareceu, os próprios campistas cuidavam dos seus enfermos, mas tinha um cara mais velho lá, ajudando a carregar um dos garotos pra dentro. Argos, como Rachel me apresentou. Ele tinha pelo menos uns trinta olhos na cara.
O segundo andar parecia uma central de operações de alguma agência do serviço secreto, cheia de computadores de alta tecnologia, telas interativas e painéis digitais, além de alguns artigos mais antigos, como instrumentos de navegação, mapas e maquetes de estratégias, mostrando campos de batalhas e suas distribuições de forças.
Rachel me levou ao terceiro andar. Como me disse, aquele era o apartamento do Sr. D., mas havia ainda dois andares – o apartamento de Quíron, e o sótão, acima dele.
A ambientação do apartamento do Sr. D. era bizarra, – percebi ao por os pés ali dentro que quem quer que tivesse decorado aquele lugar devia gostar muito de Sin City – sério, eu senti como se estivesse entrando no Kadie’s Club Pecos, numa versão Extreme Makeover Home Edition.
E a única coisa que eu queria saber era como um lugar como aquele podia sequer existir dentro de um acampamento cheio de crianças.
— Nem me pergunte. — Disse Rachel, lendo minha expressão pasma. — Vamos andando.
Eu a acompanhei até uma sacadinha com vista para a praia, onde encontramos os dois moços que estávamos procurar. Um era quase um senhorzinho, vestia um suéter azul e calças de moletom brancas, estava sentado numa cadeira de rodas, tomando chá. O outro homem era um cara de meia idade, vestia bermudas cáqui e camisa de jogador de golfe, usava um penteado casual cuidadosamente desarrumado e tinha aquele olhar confiante de quem se acha um presente de Deus para todas as mulheres – o visual perfeito para substituir Charlie Sheen em Two and a Half Men, se você quer saber.
— Olá, Quíron, olá, Sr. D. Olhem só quem eu trouxe. — Rachel acenou para mim. — Ela acabou de chegar com Percy e Grover.
— Vejam se não é minha irmã querida. — Disse o Sr. D., pelo que entendi das gesticulações de Rachel. — Seja bem vida de volta. — Ele levantou sua latinha de Coca Diet numa saudação pra mim. — Agora, não espere que eu vá fingir estar feliz em vê-la a partir daqui.
— Tá bom, então. — Eu respondi, imaginando se ele cumprimentava todas as pessoas assim.
“Yep. Preeetty much”, respondeu Percy mais tarde a essa pergunta.
— Ora, vamos, D., não seja assim com a menina. — Disse o outro. Por ordem de eliminação, Quíron, eu deduzi brilhantemente. — É um prazer conhecê-la pessoalmente afinal, Pierce. Estivemos procurando por você por um bom tempo.
— Hum... Certo. Sobre isso. — Eu apontei. — Me disseram que vocês têm uma profecia pra mim. Algo sobre os assuntos pessoais dos deuses ou qualquer coisa assim.
— Sempre colocando a quadriga na frente dos cavalos. Que tal um “obrigada por mandar alguém para salvar a minha pele, Sr. D.”, ou um “obrigada por me deixar ficar no seu acampamento por um tempo, Sr. D.”, hã? As mães não ensinam mais às filhas o que é educação?
Eu olhei pra ele.
E voltei a olhar para Quíron, que parecia ser uma pessoa bem mais compensada.
— Por favor, sente-se. — Ele indicou a cadeira. — Rachel, querida, pode ir dizer a Percy que Argos não alimentou a Sra. O’Leary hoje de manhã?
— Claro. — Ela disse, me mandou uma piscadela e saiu saltitando, com seu rabo de cavalo ruivo balançando atrás das costas.
Eu me sentei.
— Então... Qual é a da coisa toda da profecia...?
— Tudo ao seu tempo. — Abrandou Quíron com um sorriso ancião e bondoso, oferecendo-me uma xícara de chá. — Você deve ter perguntas. Imagino que John não tenha contado muito sobre nós.
Quíron foi a primeira pessoa que se referiu a John pelo nome que eu conhecia.
Isso me deixou com um conjunto de mixed feelings a seu respeito.
Por um lado, senti que seria seguro falar com ele sobre John, assunto o qual eu me proibira de mencionar para qualquer adulto desde a quarta série.
Por outro lado, tive a impressão de que fora essa a sua intenção ao referir-se a John por esse nome.
— Eu tenho algumas. — Admiti. — Por que vocês mantêm uma boate de striptease dentro de um acampamento de verão?
— Chama-se decoração temática de apothéke, garota. — Informou-me o Sr. D. — Se você não gosta, pode ir embora.
Eu sabia que Apothéke significava boteco.
E eu sabia disso porque...
Bem.
Porque eu sabia.
Quíron manteve seu olhar terno em cima de mim, esperando que eu fizesse mais perguntas – e eu percebi, naquele momento, que teria que fazer uma escolha. Uma escolha que poderia afetar o resto da minha vida.
Eu poderia simplesmente esperar que me dissessem o que tinham pra dizer – sem jamais questionar, eu seria totalmente imparcial – ouviria o que quer que fosse, esqueceria o que quer que fosse, procuraria um lugar com sinal de telefone, e então ligaria para a minha mãe pra dizer que, de alguma forma, eu tinha ido parar em Long Island. Aquele seria apenas mais um dos muitos eventos inexplicáveis pelos quais eu já havia me visto passar – apenas mais um sonho – e eu seguiria em frente com a minha vida, fingindo, como sempre, que ela poderia ser normal.
Ou...
Ou eu podia despejar ali, naquela mesa, seis anos de dúvidas e questionamentos nunca antes respondidos, e mergulhar de cabeça na minha loucura.
Resolvi começar devagar.
— O que é esse lugar afinal? Esse acampamento. O que exatamente vocês fazem aqui?
Quíron arqueou suas grossas sobrancelhas.
— Percy e Grover não lhe disseram?
— Eu não cheguei a perguntar.
— Bem. — Ele examinou meu rosto então, provavelmente tentando adivinhar quanto eu sabia, ou, sei lá, quanto tempo levaria para me explicar tudo. — Esse acampamento é onde treinamos nossos heróis, para que possam enfrentar os perigos do mundo lá fora. Muitos pelos quais você deve ter passado antes de chegar até aqui, a menos que eu esteja muito enganado.
— Hm, certo. Heróis. Você quer dizer aquele bando de crianças lá embaixo?
O Sr. D. soltou uma risada abafada, como quem diz “olha só quem fala”, e fez surgir um baralho na mesa, passando a embaralhar as cartas para se entreter.
— Sim. Nós procuramos trazê-los jovens. Quanto mais cedo possível, melhor. A maioria não sobrevive até a sua idade sem nossas orientações.
— Então... — Como foi mesmo aquela palavra que Percy usou, fiquei pensando. — Eu sou como eles? Tipo um herói. — E então lembrei. — Ou um semideus?
Sr. D. riu bem alto dessa vez, sem nem se dar ao trabalho de disfarçar.
— “John” a deixou bem informada dessa vez, não foi, menina? Quíron, olhe pra ela. A garota não deve saber o próprio nome, como você pode me dizer que isso faria alguma diferença nos planos divinos?
Planos divinos.
Aquela fora a expressão mais aloprada que eu já tinha ouvido até então.
— Meu nome é Pierce Oliveira. — Falei. — E você é Dionísio, não é? O deus do álcool? — Eu quase disse “deus dos alcoólatras”, mas decidi me comportar.
— Vejam só! Finalmente, alguma coisa que ela saiba.
Aquele cara estava me dando nos nervos.
— E daí? — Eu explodi. — Vocês vão me dizer que eu sou a Rainha do Reino dos Mortos? A deusa da primavera? Koré, a eterna adolescente? Vocês acham que essa é a primeira vez que eu ouço tudo isso? Eu não vim todo o caminho desde Upper East Side pra ouvir a mesma ladainha que ouço desde os meus dez anos, sinto muito. Se vocês não tem nada novo pra me dizer, eu vou embora, muito obrigada pelo seu tempo. — Eu me levantei. E então falei: — E pelo chá. — Porque me pareceu indelicado sair sem dizer isso. — Passar bem.
— Sente esse seu traseiro na cadeira, garota. — Comandou Dionísio.
E eu sentei.
— Tem razão, pode ser um pouco difícil que ela compreenda isso com a idade que está agora... — Quíron falou, soltando um longo e demorado suspiro. Supus que não estivesse falando comigo, até que olhasse pra mim. — Pierce, entenda, a uma razão pela qual a trouxemos a esse acampamento... Bem. De certa forma, sim, na condição em que está agora, você não é muito diferente das crianças que viu lá embaixo, mas não é exatamente como eles. E não é uma deusa, pelo menos, não por tempo indeterminado. Veja, existem certos... Atributos que uma personalidade declarada como divindade deve apresentar para que seja reconhecida como tal. Entre eles, a imortalidade. Esse é um fator importante, e eu adoraria discuti-lo com você em algum outro momento, mas existem ainda outros atributos... Outro exemplo seria a eternidade da alma. Você compreende? Sem um corpo imortal, um deus estaria ligado a esse mundo, e seria fadado a nascer e morrer entre os mortais num ciclo interminável.
Uau, eu pensei.
O que será que ele colocou naquele chá?
— E você está me dizendo isso porque... Esse seria o meu caso?
— Exatamente.
— Gênia. — Disse o Sr. D, dando um último gole em sua Coca, e amassou a latinha até que ela desaparecesse entre suas mãos gorduchas.
— Tá, então, o que você está dizendo é que eu já fui uma... Deusa... Já que eu tenho uma “alma eterna” ou sei lá. Mas daí o que? Eu perdi meu corpo imortal em algum lugar, alguma coisa assim?
— Mas é claro. — Continuou D., jogando mais uma de suas sacadas muito sarcásticas pra cima de mim. — Você vê, irmãzinha, nossos atos consistem em consequências. Você não pode simplesmente sair por aí, loucamente, desobedecendo ao Pai e namorando as ninfas, e ainda esperar que ele não te coloque num regime estrito de abstinência, pra cuidar de crianças malcriadas e deusas amaldiçoadas como você.
Entendi que ele estivesse dando um exemplo por sua própria experiência.
— Foi isso? — Eu arquejei, sem acreditar. — Eu desobedeci Zeus e ele resolveu me colocar num ciclo eterno de vida e morte até o fim dos tempos?
Um trovão retumbou ao longe. Imaginei que aquele fosse meu aviso por quebrar a primeira e a segunda regra do Clube-Acampamento Meio-Sangue.
— Eu seria um pouco mais cauteloso com minhas palavras em seu lugar, — Dionísio me alertou — você não vai conseguir sua vaga na condicional tão cedo com essa atitude.
— De fato, é apenas uma condição temporária. — Disse Quíron, daquele jeito ora-vamos-não-é-tão-ruim-assim. — Você poderá reaver sua imortalidade se comprometendo a cumprir com os termos do trato entre você e seu pai, falaremos mais sobre isso também depois.
— Hum... Certo. — Eu olhei meu relógio. Já eram quase cinco horas. — Isso tudo parece ótimo, mas, pra falar a verdade, eu não acredito muito em mitologia grega, então... Vocês têm, hum, um ônibus pra fora daqui a qual horário?
— Você não acredita? — Relinchou Sr. D.. — Quíron, você ouviu isso? A menina diz que não acredita. Então me diga, garotinha, como acha que veio parar aqui? Hum? Quem você pensa que somos? Dois aposentados dedicando os melhores anos de suas vidas a educar uma pirralhada de semideuses ingratos? Depois de cento e trinta e seis encarnações, você vem me dizer que não acredita? — Dionísio jogou o pires de Quíron para cima, – num gesto de revolta, eu imagino – que misteriosamente desapareceu no ar e reapareceu de volta na mesa, quando ele cruzou os braços e disse: — Eu nem sei mais porque ainda estou tendo essa conversa com você.
Ele estava emburrado? Ou era só impressão minha?
— Veja agora, Pierce, eu sei que é muito para processar de uma vez, mas você conhece a história, imagino que também conheça os mitos. De que outra forma explicaria tudo que presenciou até hoje?
Eu ri, apenas.
— Senhor Quíron, se eu fosse tentar explicar tudo que eu presenciei até hoje, não teriam nem me deixando sair do hospício.
— Entendo. — Respondeu ele, lançando-me um olhar triste.
Eu fiquei meio, eeeer...
— O que eu quero dizer, hum... Não me leve a mal, — me apressei em falar, sentindo-me estranha por fazer aquele senhorzinho legal se deprimir por minha causa — não foi tudo ruim, sabe, mas... Assim, só porque eu vejo alguma coisa, não quer dizer que ela esteja lá. Então eu, bem, procuro manter uma quantidade razoável de ceticismo quanto a tudo, entende? E, mesmo se eu fosse uma dessas pessoas de fé, acho que politeísmo antropomórfico mitológico grego não estaria entre as minhas primeiras opções de religião... Sem ofensas.
— É mesmo? E como é isso? — Dionísio fez aparecer outra latinha de Coca Cola. Essa não era Diet. — Você acha que todas as coisas deste universo simplesmente brotam de buracos no chão? Ou, como é mesmo aquela teoria mais recente? Num “Big BOOM”? Humanos e suas teorias. Qual é a graça de um big boom, anyway? E como raios isso aconteceu exatamente? O espaço soltou um pum e tudo simplesmente apareceu? Isso não explica absolutamente nada. Já a mitologia grega, por outro lado, tem todo um embasamento filosófico, pensamentos de homens que tiveram realmente alguma coisa útil na cabeça. Vocês ainda aprendem isso na escola? Filosofia. Talvez devêssemos implantar um programa de classes teóricas por aqui, esses garotos andam muito ignorantes.
— Ah, sim, não foi isso que eu quis dizer, de forma alguma. Eu acho mitologia muito legal e tal. — Respondi, encarando Dionísio de uma forma que ele provavelmente não acharia muito prudente. — Cheio das flores e das ninfas, até alguém chegar pra você e dizer que Zeus se transformou numa cobra pra entrar escondido no seu quarto e seduzir você, e que daí você arranjou uma gravidez adolescente, que gerou uma criança cheia de chifres, que mais tarde foi destroçada por um bando de titãs, só porque Hera estava com ciúmes. E, como se isso já não fosse ruim o bastante, que sua irmã pegou o coração do seu filho morto antes que ele fosse totalmente estraçalhado, e deu pra uma mina lá comer, pra daí ela ter o seu filho morto de novo – que depois cresceu e virou um fanfarrão, que só quer saber de beber e pegar as ninfas – e ser morta também, porque Hera continuava com ciúmes. Tudo isso antes que Hades aparecesse pra levar você pro mundo inferior, e obrigar você a casar com ele. Então, sim, é claro, eu com certeza posso ver todo o embasamento filosófico por trás disso.
Nesse meio tempo, acho que deu pra ouvir uma meia dúzia de trovoadas, e eu tive que resistir a uma tentação forte de levantar meu dedo para o céu e mandar todas elas pra aquele lugar.
— Bem, aí entramos num mérito completamente diferente... Há controvérsias no que diz respeito a pontos como esse. — Alegou Quíron. — Nem todas as histórias descrevem fatos num sentido denotativo, mesmo porque, algumas são tão antigas que nem mesmo os deuses conseguem se lembrar.
Hm. Eu pensei. Acho que eu lembraria se tivesse me transformado numa cobra para estuprar a minha filha.
Mas talvez fosse só eu.
— E, garotinha, — Dionísio apontou pra mim com um Ás de espadas, falando muito calmamente, mas com uma voz bastante séria — você pode, ou não, ser minha primeira mãe biológica, mas ainda é uma mortal, e, se não começar a mostrar algum respeito, não vou pensar duas vezes antes de transformá-la numa parreira de uvas pelos próximos cinquenta anos.
Confesso que eu tinha mais uma ou duas coisas pra dizer, mas, diante daquela delicada insinuação de ameaça, resolvi engolir o sapo, e apenas me levantei e declarei polidamente:
— De qualquer forma, isso não tem nada a ver comigo. Me desculpem se vocês acharam que eu poderia fazer alguma coisa quanto a... Hum... Seja lá o que fosse que vocês queriam que eu fizesse. Eu realmente adoraria poder ajudar, mas... Eu não quero-hum... Posso, digo, não posso... Então acho que eu vou... Voltar pra casa agora.
— Eu lamento, Pierce, — respondeu Quíron — temo que terá que ficar conosco pelos próximos meses. Seus pais deixaram instruções para que não saísse do acampamento até que... Bem... Até que tudo tivesse voltado ao normal.
A parte do “até que tudo tivesse voltado ao normal” prendeu minha atenção por um momento.
Até cair a ficha de que aquela era a velha história da “sua mãe me pediu pra cuidar de você por um tempo” all over again.
— Meus pais nem sabem que eu estou aqui! Minha mãe deve achar que eu ainda estou tomando sorvete com um garoto da minha escola. — Falei, quase sibilando.
E então pensei...
Talvez eu ainda estivesse tomando sorvete com o garoto da minha escola.
Talvez eu tivesse pegado no sono, enquanto ele e Ellen se pegavam.
Talvez eu estivesse pra acordar a qualquer momento...
— Ah, desculpe, eu quis dizer seus pais divinos.
Ou talvez não.
Autor(a): ookamipuppy
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Eu segui Quíron de volta à varanda. Ali, ele parou e inspirou, enchendo os pulmões de alívio. — Ah, finalmente, posso esticar as pernas. — Disse. E então se levantou. Algo estranho para um cadeirante fazer, se você perguntar pra mim. Ainda mais se as calças dele continuarem na cadeira e da cintura pra baixo o c ...
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