Fanfics Brasil - 5. Pra completar o dia, descubro que tenho uma penca de irmãos e uma cacetada de sobrinhos. A Maldição de Perséfone

Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono


Capítulo: 5. Pra completar o dia, descubro que tenho uma penca de irmãos e uma cacetada de sobrinhos.

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Eu segui Quíron de volta à varanda.


Ali, ele parou e inspirou, enchendo os pulmões de alívio.


— Ah, finalmente, posso esticar as pernas. — Disse.


E então se levantou.


Algo estranho para um cadeirante fazer, se você perguntar pra mim.


Ainda mais se as calças dele continuarem na cadeira e da cintura pra baixo o cara for um cavalo.


— Você é um centauro?


— Sim, obrigado por notar.


— Por que você usa uma cadeira de rodas?


— Ah, isso? É apenas meu disfarce, mas D. fica uma fera quando arranho o piso do apartamento com meus cascos, então eu o uso lá dentro. 


— Ah... — Bem, o que eu esperava que ele dissesse? Que usava uma cadeira mágica pra esconder seu traseiro de cavalo porque não fazia sentido praticar nudismo dentro de casa? — Já que é assim.


— Vamos lá.


Como Percy tinha ido alimentar um cão gigante, o que podia levar algum tempo, e Grover fora se reportar ao Conselho do Casco alguma coisa, Quíron se oferecera para me mostrar o acampamento, depois de termos dado uma passadinha na enfermaria pra fechar um corte de quinze centímetros no meu antebraço.   


Lá, me deram um conjunto de jeans e camiseta do acampamento, sabe como é, pra eu me enturmar e tal, e também porque, bem, meu uniforme do colégio já era, estava todo rasgado e empapado de sangue – nada que tivesse preocupado alguém assim que eu cheguei, no entanto.


— Há ainda que se resolver o tópico da sua acomodação, eu imagino. Eu ficaria feliz em ceder-lhe meu apartamento na Casa Grande, mas, se por acaso quiser ficar com as outras crianças nos chalés, — Quíron foi dizendo, só pra ser educado – porque, vamos ser sinceros, é claro que ele queria que eu ficasse nos chalés — temos ali o chalé de Deméter. Tenho certeza de que seus irmãos adorariam a ideia...


Wait, what? — Eu arquejei. — Meus irmãos? Eu tenho... Eu tenho irmãos?


— Sim, evidentemente. Bem, meio irmãos, tecnicamente. Você também poderia usar o chalé de seu pai, eu suponho, ele está vazio no momento.


Eu não tinha pensado nisso.


É claro que já tinha lido em algum lugar que semideuses eram filhos de deuses com mortais – bom, não lido, visto na internet.


Mas, sei lá, “é isso que a cegonha traz quando os deuses não vestem a camisa pela causa” não foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça quando eles me disseram que as crianças eram semideuses.


E, meu Deus, haja cegonhas. Aquele acampamento estava cheio e era só o segundo dia da primavera.


— Você quer dizer que todos aqueles chalés... São, tipo, um pra cada deus, e todos os deuses tem um milhão de filhos?


— Não todos eles... — Ele pensou por um momento. — Imagino que eu deva explicar isso. Veja, deuses...


E parou por aí.


Concluí que Quíron não fosse muito bom em colocar aquilo em palavras.


Eu me lembrei de quando meu pai tentou ter uma conversa parecida comigo. Suas primeiras palavras foram “sabe, Pierce, quando um coelhinho ama muito a coelhinha...”, e a conversa rolou daí completamente sem freios toda a ladeira abaixo.


— Gostam muito de sair com humanos? — Sugeri, tentando dar uma mãozinha.


— Exatamente. E isso muitas vezes gera...


— Bebês?


— Atritos. — Ah, sim, foi o que eu quis dizer. — Você entende? Semideuses podem se tornar muito poderosos, e, às vezes, muito perigosos. Foi por esse motivo que, após a Segunda Guerra, os Três Grandes fizeram um juramento sobre o rio Styx, comprometendo-se a nunca mais ter filhos com mortais. Desde então, seu chalés ficam praticamente vazios.


Praticamente.


— Os Três Grandes não são Hades, Zeus e Poseidon?


Ouvi três trovões.


E eu realmente não estava mais nem ligando.


— Isso mesmo.


— Percy me disse que era filho de Poseidon.


— Bem. Sim.


Então.


E eu ali achando que o juramento sobre o rio Styx fosse grande coisa.


Mas meh.


— Devemos seguir em frente, não?


Quíron continuou me guiando em nosso tour pelo acampamento, sem mais tocar em assuntos delicados como juramentos quebrados, profecias ou maldições.


Ele me apresentou a alguns campistas pelo caminho. Entre eles, Connor e Travis Stoll, filhos de Hermes, que me lembraram muito dos gêmeos Weasley de Harry Potter, embora eles não fossem gêmeos. Os dois pareciam muito bons em pregar peças também – um deles, eu não saberia dizer qual, deixou uma daquelas balas jawbreakers cair no caminho de Quíron, que demorou um tempão para conseguir tirá-la da sola do seu casco depois.


Conheci também uma menina chamada Clarisse, filha de Ares. A primeira impressão que me deu foi que seria capaz de fazer crescer chifres da própria cabeça e me perseguir que nem um touro raivoso pelo acampamento todo se eu a irritasse, mas depois ficou me olhando de um jeito estranho, como se estivesse pensando em me adotar.


Conheci Drew, a conselheira-chefe do chalé de Afrodite, que me olhou de cima a baixo e decidiu me odiar a partir de então.  


Jake Mason, o chefe do chalé de Hefesto, Will Solace, chefe do chalé de Apolo, e Malcolm Kyle, o conselheiro-adjunto do chalé de Atena, foram todos bem legais comigo, me disseram que, se eu precisasse de um forja, aulas de arco e flecha, ou ainda de uma análise SWOT, era só falar com eles.


Eu não fazia a menor ideia de quando ia precisar de qualquer uma daquelas coisas, mas prometi me lembrar disso, porque, afinal, nunca se sabe.


Por fim, Quíron me apresentou a Katie Gardner, a chefe do chalé de Deméter. Ela foi toda querida, falou que já tinha até arrumado um lugar pra mim no seu chalé e que, como não ficava muita gente lá àquela época do ano, eu ia ter bastante espaço.


Eu agradeci, e aceitei a oferta. Embora duvidasse que fosse me sentir lá muito confortável num chalé com irmãos dos quais eu jamais tivera conhecimento antes daquele dia, eu não queria tirar Quíron do apartamento dele, e definitivamente não queria morar no chalé de Zeus.


E, assim, segui Katie para o seu chalé.


O chalé era uma construção de mármore escuro meio amarronzado, com ramos de tomateiros subindo pelas paredes e um jardim na cobertura do telhado. Em volta, várias árvores frutíferas esticavam seus galhos como dedos finos e compridos pra dentro das janelas, e o chalé era rodeado por um perfume suave de flores, grama e terra molhada, fluindo por dentro e por fora da casa numa brisa leve.


Eu amei aquele lugar instantaneamente. Estar ali foi como entrar num mundo em que a Branca de Neve, a Bela Adormecida e a princesa de Encantada viveriam, cheio de animaizinhos pequenos e cantantes que entrariam no seu quarto pra arrumar a cama pra você.  


— Bem vinda ao lar. — Disse Katie, gesticulando para o interior da casa. Havia uns doze conjuntos de beliches, todos arrumadinhos e aparentemente bem confortáveis. Todos os cantos do chalé eram enfeitados com arranjos de flores, vasos de plantas, bonsais floridos e fontes artificiais. Passarinhos tinham construído ninhos nas proeminências das janelas, e parecia haver tocas de roedores debaixo de algumas camas. — Pessoal, essa é Pierce, ela vai ficar com a gente por um tempo. Pierce, esse é o pessoal.


Ainda custou-me acreditar que todos aqueles fossem meus irmãos, mas eu tive que admitir as semelhanças mais nítidas. Todos tinham cabelos longos com tons variados de castanho e bronze, pele ligeiramente bronzeada, traços delicados e silhueta fina. Os meninos eram bem altos e magros, e as meninas pequenas e esguias.


Além de Katie, havia apenas mais três meninas e três meninos, – seus nomes eram Wendy, Natalie, Lonnie, Yuri, Terry e Pascal – mas me disseram que, durante o verão, todos os beliches ficavam ocupados.


O mais velho era Terry, de vinte e dois anos, nosso conselheiro-chefe, e ficava com Katie no acampamento por período integral, e a mais nova, Wendy, de oito anos, tinha acabado de chegar.


Depois de um momento de agradável socialização, nós oito seguimos para o pavilhão de jantar.


Os outros se agruparam em filas com seus respectivos chefes de chalé, com exceção de Percy, que ficou de braços cruzados num canto, esperando que o resto dos campistas se organizasse, e, aos poucos, fomos enchendo os bancos compridos do pavilhão.


Grover e alguns outros sátiros apareceram pra comer com a gente, saindo da floresta com menininhas fofíssimas e saltitantes, por volta dos nove a quatorze anos, todas usando vestidinhos de verão e andando por aí descalças. Wendy me disse que eram ninfas, e então apontou para algumas garotas mais velhas que pareciam ter acabado de sair da piscina e as chamou de náiades.


Quíron e o Sr. D. apareceram logo em seguida. Sr. D. sentou-se a mesa doze, junto com meia dúzia de sátiros e alguns garotos gordinhos com cara de bebê, e Quíron ficou de pé perto da fogueira.


Percy se sentou sozinho na mesa três, e as mesas um, dois, oito, treze e dezesseis ficaram vazias.


— Aos deuses! — Proclamou Quíron, levantando uma taça de bronze ao céu da noite.


— Aos deuses! — Disseram todos os outros, repetindo o gesto, então as meninas bonitinhas começaram a trazer um monte de comida, e Terry se inclinou para me dizer: — Vá em frente, peça qualquer coisa pra beber, contando que não seja nada alcoólico, você será servida.


— Hum... Pedir pras ninfas?


— Não, apenas peça.


Eu olhei em volta.


As pessoas ao meu redor estavam dizendo nomes de bebidas, tipo, guaraná, chá verde, limonada, vitamina de beterraba, smoothies e afins.


Então eu peguei meu copo e pronunciei, meio na incerteza:


— Quero um... Tropical Banana Arara Vermelha sem açúcar.  


E meu copo se encheu de Tropical Banana Arara Vermelha sem açúcar.


Wendy, que estava sentadinha ao meu lado, ficou olhando pra ele com uma carinha de “droga, por que eu não pedi um tropicalbananaararavermelha?”, então eu dei o meu pra ela, e fiquei despedaçando uma fatia de queijo suíço, olhando para Percy, que estava conversando com Pascal sobre qualquer coisa relacionada à equitação com cavalos alados.


— Vocês têm Pégasos aqui?


— Na verdade, — respondeu Pascal. Ele usava óculos, e o empurrou pro lugar enquanto falava. Tinha cara daqueles nerdinhos que gostam de explicar as coisas — Pégaso é um cavalo alado específico, não uma espécie. De fato, ele é o pai dos cavalos alados, mas...


— Nós temos Blackjack e Guido. — Disse Percy, abrindo um sorriso amável, como se falasse de velhos amigos. — Eles devem estar migrando pra cá por esses dias.


— Cavalos alados migram?


— É claro que migram. Você acha que eles iam querer ficar aqui? Congelando durante o inverno, quando podem voar pras praias tropicais do sul?


Eu ri, imaginando um monte de cavalos aterrissando na praia de Copacabana, assustando os turistas e cagando na areia toda.     


— Acho que eu nunca vi um cavalo alado. — Falei, pensando nos corcéis da carruagem de John. Existia na minha memória a lembrança de que eles pudessem voar, embora eu não me lembrasse de asas, exatamente.


— Você vai amá-los. Blackjack vai adorar você. Ele gosta muito de garotas bonitas.


Eu fiquei piscando.


— Ah. — Falei. — Que legal.


E joguei um mirtilo na minha boca.


— E então, — Percy se inclinou mais pro meu lado. Pascal já tinha se desinteressado da nossa conversa e voltara-se para Natalie, e nenhum dos dois parecia se importar com o que estávamos falando — o que está achando do acampamento?


— Hum... Eu acho que... É um bom acampamento... — Disse eu. Aquilo não soou muito como um elogio, então acrescentei. — Sei lá, eu realmente não tenho parâmetros de comparação. Nunca fui a um acampamento antes.  


— É... Mas eu imagino que, mesmo se você tivesse ido, não ia poder comparar com isso aqui.


— Imagino que não. — Eu me mexi. — Percy, você é amigo daquela menina ruiva, não é? Rachel.


— Sou, sim. Por quê?


— Hm... Ela não vem jantar?


— Acho que ela já foi embora. Quando Rachel aparece, ela geralmente não fica muito.


— Hm...


— Ela disse alguma coisa? Sobre a — ele cochichou — profecia.


— Não pra mim. — Falei. E resolvi jogar um verde. — Mas aposto que ela disse pra você.


— Ah, — ele já foi logo se preparando pra bancar o desentendido — eu gostaria. Mas, não, ninguém me disse nada ainda.


Eu coloquei a minha melhor cara de yeah right, e resolvi apertar seus botões mais um pouquinho.


— Na verdade, eu aposto até que você e Grover já sabiam desde antes de eu entrar naquele carro. Grover quase não falou comigo enquanto estávamos juntos, e todo o tempo ficou tomando cuidado com o que ia dizer. E, depois, vocês dois sumiram assim que me deixaram com Rachel. Então, sim, eu acho que vocês sabem de alguma coisa que não podem, ou não querem me dizer.


É claro que eu estava só fazendo especulações. Eu não tinha pensando em quase nada daquilo até aquele momento, só fui deixando minha paranoia correr à solta.


Mas Percy provavelmente achou que eu devia ter olhos difíceis de enganar. Ele se empertigou, esticando as costas, cruzou os braços e ficou me olhando, pensando no que deveria dizer.  


— Até aí, você também não está nos contando muito. Quando entrou no carro, você mencionou um cara, e então derrubou o tópico como se fosse batata quente.


Ele não estava se justificando, nem se defendendo, nem negando nada. Mas também não parecia estar tentando barganhar por informações, o que tornava todo o processo de negociação um pouco mais difícil. 


— Olha, eu tenho uma condição médica rara, e sou mentalmente instável. — Expliquei. Não tinha a menor vergonha de expor aquilo – eu costumava achar que as pessoas iriam sempre aliviar pro meu lado, uma vez que eu o tivesse feito. — O que eu vejo e falo nem sempre corresponde à realidade, e é por isso que eu tomo remédio. Vocês me trouxeram aqui e me disseram que era uma situação importante, só que ninguém está me dizendo mais nada. Eu tenho uma família, sabe, não posso ficar aqui por tempo indeterminado se isso não for totalmente incontornável.


— Calma, você disse que toma remédio? Que tipo de condição rara você tem?


Eu pisquei.


— Isso importa?


— É claro que sim.  


E fiquei piscando.


— Eu tenho ADHD associado a alucinações e terror noturno.


— E dislexia também?


— É... Como você sabe?


— Pierce, todos nós temos isso... Aliás, nenhum de nós tem isso. Essa é a explicação que eles dão pra gente. Você não tem ADHD, essa é só a forma como reage a situações de perigo. Transtorno de déficit de atenção? Uma pinoia! Você presta atenção em tudo, muito mais do que pessoas normais. Quanto à parte da hiperatividade, é simples: você não consegue ficar quieta. Se for como nós, você nasceu pronta pra lutar, precisa estar em ação. Por isso eles querem que você tome remédio. Para deixá-la confusa, menos reativa. É tudo que eles precisam: que você esteja só um pouquinho mais vulnerável.


— Eles? — Meus remédios deviam estar funcionando, eu estava realmente confusa. — Eles quem?  


— Os monstros.


— Cara. — Eu me afastei um pouquinho. — Tem certeza de que você não tá precisando tomar seu remédio?


— Não, Pierce, pense nisso! Suas alucinações. Seus pesadelos. Não são coisa da sua cabeça, eles são reais. Perigosamente reais. Tipo, letalmente reais.


Uau.  


E, por alguma razão, aquilo não me fez sentir muito melhor.


— Okay... E o que a minha dislexia tem a ver com tudo isso?


— Sua dislexia, na verdade, quer dizer que seu cérebro foi pré-programado pra ler grego antigo. É por isso que a linguagem ocidental contemporânea não nos vem tão naturalmente, é muito mais difícil pra nós.


Eu pensei sobre isso.


E concluí:


Nope. Isso não faz o menor sentido.


Afinal, desde quando o cérebro de alguém já era pré-programado pra ler alguma coisa? Quer dizer, se meus pais fossem chineses e nós mudássemos pra Noruega, eu teria dislexia ao tentar ler norueguês? Ou, se eu nascesse no Iraque e me mudasse pra Tailândia, nunca aprenderia tailandês?


É claro que não!


Percy estava pirando na batatinha.


— Cara, eu não sei, não, mas... Acho que te passaram a informação errada sobre isso, você tem que ver isso aí. — Eu estreitei os olhos. — Ou você tá só tirando uma da minha cara?


— Não, eu estou falando sério, olha, hm... Papel... — Ele olhou em volta, e então apontou pra minha mesa. — Me passa o seu guardanapo.


Eu entreguei a ele.


Percy tirou uma caneta esferográfica do bolso e anotou alguma coisa no papel, o que me deixou imaginando que tipo de cara andava com uma caneta no bolso num acampamento de verão.


Percy devia ser uma pessoa bem prevenida.


— Aqui, tente ler isso.


Eu peguei o papel.


— Eu estou dizendo, eu sou disléxica, isso é perda de...


Olhei para o que estava escrito.


Por um momento, o que vi foi um amontoado de letras gregas, formando um amontoado de palavras gregas:


 


“ΌΠΟΙΟΣ ΜΠΑΊΝΕΙ ΕΔΏ ΝΑ ΠΑΡΑΤΆ ΚΆΘΕ ΕΛΠΊΔΑ”


           


Mas, assim que olhei de novo, pude entender o que estava escrito.


O que também não fez o menor sentido.


— Onde você viu isso aqui?


— Você reconhece? — Ele perguntou, estudando meu rosto atentamente.


— Sim. — Eu disse, lendo a frase novamente. — É o que está escrito no Portal do Inferno, na entrada do Mundo dos Mortos. “A qualquer um que entrar aqui, apesar de toda a esperança.” Aparece no capítulo cento e vinte oito de Cavaleiros do Zodíaco, na Saga de Hades. Significa que eles deviam perder a esperança ao entrar no Submundo. Nunca percebi que estava escrito em grego.  


E, pelo que pude ver, Percy não fazia a menor ideia do que eu estava falando.


— Saint Seiya. — Esclareci.


— Ah. — E ele conhecia! — É de lá que isso vem?


— Sim. Por quê? Onde você viu?   


— Era o que estava escrito na caixa em que encontramos suas pérolas. — Ele pensou. — Sempre achei que tivesse um significado mais profundo.


— Minhas pérolas?


— Sim. Quer dizer, as “pérolas de Perséfone”. As histórias dizem que, como ela, digo, hum, você não poderia deixar o Submundo antes da primavera, preparava pérolas para que os heróis que fossem visitá-la pudessem sair. Lembra? Foi assim que nós saímos.  


— Oh. — Imaginei que eu já fosse meio nerd naquela época.


— Mas você conseguiu ler isso.


— Ah... — Falei. — É, acho que eu consigo...


Nesse momento, várias pessoas começaram a se levantar. Elas foram até a fogueira e jogaram boas porções de seus jantares nas chamas – mas não como se tivessem acabado de comer e estivessem jogando o resto da comida fora, o que provavelmente também seria um tanto estranho, mas com certa, hum, reverência.


— O que eles estão fazendo?


— Oferendas. — Disse Percy. — Fique olhando.


Então foi até lá e jogou uma parte da sua comida no fogo também.


— À Perséfone. — Disse em voz alta, e olhou pra mim com um sorriso. — Muito obrigado por nos ajudar a sair do inferno.


Quando fez isso, embora eu não possa explicar, eu me senti toda contente e aquecida, como se alguém que eu gosto tivesse feito sopa pra mim, e precisei contrair meus lábios algumas vezes para parar de sorrir que nem uma idiota.


— Então... — Falei, depois que ele voltou. — Você acha que eu deveria fazer isso também, ou...?


— Eu não sei. Quer dizer, eu nunca vi o Sr. D. fazendo.


— Ah, bom. — Se D. não fazia, eu também não ia. — A propósito, não tinha uma garota com vocês naquela época...? Anna... Alguma cosia?


— Annabeth. Você provavelmente vai vê-la no final de semana. Eu acho... Ela disse que suas finais estavam chegando, então talvez fique em casa estudando, ou terminando os trabalhos... Eu vou ligar pra ela depois. Ela provavelmente vai querer vir se souber que você está aqui.


— Hm... Sim, faça isso. — Eu falei. Apesar de não estar lá muito empolgada com a ideia de rever Annabeth.


Nós continuamos conversando. Percy conseguiu manejar a conversa habilidosamente, em prol de mantê-la longe do tópico ao qual eu gostaria de voltar, e logo todos fomos orientados a seguir para os nossos chalés, para nos prepararmos para tomar banho e ir dormir.


Pouco mais de uma hora depois, eu estava na cama de baixo de um beliche, com Wendy encolhidinha contra mim. A garota chorara por cerca de quinze minutos com saudades de casa, recusando-se a dormir com Katie ou Terry, antes de revelar seu desejo de dormir comigo – euzinha, que ela tinha acabado de conhecer.


Vá entender crianças.


Sendo assim, lá estava eu, me espremendo pra não cair da cama, sem conseguir dormir.  


Quando pude me certificar de que Wendy tinha finalmente adormecido, eu me levantei.


Não havia professores do lado de fora, ou mesmo monitores certificando-se que todos estivessem dormindo, como eu imaginei que teria – acho que ninguém pensava que haveria algum campista acordado àquela hora, depois de ter ralado no treinamento heroico o dia inteiro – então foi fácil fazer meu caminho até a praia, onde eu me sentei pra ficar jogando pedrinhas na água, vendo as ondinhas irem e voltarem.


Eu tinha bastante de com o que alimentar minha mente até o amanhecer, mas ficar ali estava me deixando cansada, então resolvi voltar pro chalé.


Porém, quando eu me levantei, uma sombra se mexeu, e eu percebi que não estava sozinha.


A primeira coisa que eu pensei foi que devia ser o malucão do parque. À sombra, pelo menos, aquele indivíduo era bastante parecido com ele. Alto, magro, cabelo até os ombros, vestindo roupas escuras e silencioso como um gato.


Então eu falei, tentando soar o mais confiante possível, mas não exatamente fazendo um bom trabalho:


— V- você não devia estar aqui. Eles disseram que esse lugar é protegido por uma coisa dos deuses... Tipo... Pode ser que você exploda em mil pedaços se chegar mais perto, então é melhor pensar duas vezes...


— A única que não deveria estar aqui é você. — Ele disse.


Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar.


John?


Ele saiu da sombra e andou até mim. À luz do luar, sua pele brilhava como roupas brancas dentro de uma boate. Isso o fez parecer fantasmagórico com aqueles olhos que, pra mim, um dia pareceram tão agradáveis de olhar, – como o pôr do sol de Fernando de Noronha – mas que agora queimavam mais que fogo e lava quente.


— O que você está fazendo aqui, depois de eu ter dito explicitamente que não deveria vir? — Ele fez essa pergunta calmamente, mas sua voz soou como da primeira vez que eu a tinha ouvido, como em alto-falantes, embora ele não estivesse nem falando alto.


E eu passei por um mal bocado tentando pensar debaixo daqueles olhos.


— Isso... Eu não... Isso não foi minha culpa, pra sua informação! Quer dizer, o malucão do Central Park, ele...


— O malucão do Central Park? — Ele falou, e eu soube no ato que tinha sido pega na mentira. — Quem é esse?


— Hum... É... Você não conhece...


— Não, mas talvez você devesse me apresentar a ele. Estou morrendo de vontade de conhecê-lo. — Eu conseguia quase ver a barrinha de anger level sendo preenchida no topo da sua cabeça dele. — Por que me disse que nada tinha acontecido no Central Park?


— Não foi naquele Central Park... — Eu estava cavando a minha cova com a língua. Literalmente. — Dia. Não foi naquele dia.


— Ah, não. E quando foi?


— Foi em... Outro dia.


Você pode ver como eu estava sendo convincente.


Quem é ele, Pierce? Eu quero uma resposta direta, pare de ficar me enrolando.


— Ele... Eu não sei quem ele é. Eu não sei nem se ele é real! Até onde eu sei, ele pode ser só mais uma das minhas alucinações, como você, e esse lugar, e os deuses, e os monstros...


Com essa eu consegui. John estava bravo, e eu digo realmente bravo, de um jeito que os caras só ficam se você conseguir cutucá-los onde dói pra valer... E eu nem sabia disso, na real.


Imagino que acusá-lo de ser uma invenção da minha cabeça o ofendeu de verdade.


— Suas alucinações não destroem metade de Yorkville por sua causa, Pierce. Isso é algo que eu faria.


Ele estava me intimidando. Tipo, realmente me intimidando, me fazendo recuar e tropeçar nos meus próprios pés para que pudesse me segurar e tudo mais.


Aquilo aconteceu? — Eu perguntei, sentindo o inchaço na minha garganta se tornar tão grande que fosse até difícil respirar. — Ele destruiu um hospital e aquela lanchonete de verdade? Por minha causa?


John se arrependeu bem daquilo. Eu estava prestes a chorar e ele estava me olhando como se quisesse me enrolar num edredom e me ninar como um bebezinho.


Mas se manteve firme.


— Isso é sério, Pierce. Se você sabe alguma coisa que não está me contando, eu quero que me diga. Agora.


Eu me encolhi.


Sim, aquilo era sério. Tipo, some serious sh*t de tão sério. Tudo aquilo devia ser. Eu tinha sido estúpida por achar que ainda estava tendo uma alucinação – minhas alucinações não duravam tanto assim desde que eu ficara presa no quarto de John por quatro meses, e agora eu estava pensando que, talvez, nem aquilo tivesse sido uma ilusão.


— Ele disse — falei, fungando todo o choro pra dentro, para tentar pôr algumas palavras inteligíveis pra fora — que ia tomar o seu... O lugar do Senhor do Submundo. Ele disse que eu tinha que lutar com ele porque precisava medir seu poder com o dos deuses do Olimpo, e... Que era filho de Erebos.


Erebos? — John pareceu genuinamente preocupado ao ouvir esse nome, mas, assim que percebeu que eu estava olhando, retomou sua poker face meticulosamente construída.


— Isso é bem ruim, não é? — Eu tentei adivinhar. — Tipo bem, bem ruim...  


— Você não tem que se preocupar com isso.


Daí John segurou meu rosto muito delicadamente e beijou a minha cabeça.


Não foi nada demais, apenas um beijinho na testa...


Ainda assim, senti minha sanidade vazar um pouquinho – ou o que sobrara dela.


John nunca tinha me beijado antes.    


— Venha comigo.


— Aonde? Pra onde vamos?


— Eu vou levá-la de volta. Você vai ter que convencer sua mãe a deixá-la voltar a viver com seu pai por um tempo. Nova York não é um bom lugar... — Ele disse, puxando-me para a floresta escura.


Mas, no momento em que meus dedos saíram da luz prateada e tocaram a sombra da orla da floresta, eu senti um choque.


E não foi um choquinho, não. Não foi nada como colocar o dedo na beiradinha desprotegida de um aparelho VHS, ou como abrir a torneira do chuveiro com os pés descalços, foi um choque de verdade, tipo, me fez dar um berro e puxar minha mão de volta.


— O que foi? — Perguntou John, saindo de lá. Por um instante, tive a impressão de que ele tivesse desaparecido, se dissolvido nas sombras.


— Eu levei um choque! A sombra me deu um choque!


— O que?


— Assim que eu entrei na sombra, ela me deu um choque... — Choraminguei. Meu braço estava doendo à beça, parecia que eu tinha passado o dia todo levantado tijolos. E foi o braço que eu tinha machucado na lanchonete, ainda por cima... 


John torceu as sobrancelhas, veio pra trás de mim, envolveu minha mão com a sua e estendeu-a até a sombra de novo.


Eu levei outro choque. Não foi forte dessa vez, mas deu pra sentir.


Zeus. — John rosnou atrás de mim, tão grave e malignamente que me fez querer pular na sombra eletrocutadora só pra me afastar dele. — Eu não acredito que ele fez isso.


— O que? Não acredita que ele fez o que?


— Era exatamente por isso que eu não queria que viesse pra cá! Isso é simplesmente perfeito. Agora você está presa aqui!


Acredite ou não, ele estava brigando comigo por eu estar presa lá.


— E o que eu deveria ter feito? Ele estava atirando bolas gigantes em mim!


— Eu queria que você tivesse me contado. Se você tivesse, não estaria aqui agora.


— Mas... Como assim?! Afinal, qual é o grande problema de eu estar aqui? Isso tem a ver com a tal coisa da profecia, que ninguém quer me contar? Você sabe alguma coisa sobre isso?


— Eles disseram isso?


Não! — Eu gritei. — Como eu disse, ninguém está me contando nada nesse lugar! Você não me ouviu acabar de dizer isso?


E então, pronto, eu o deixara furioso de novo.


— Eu não quero que faça perguntas por aí sobre isso, entendeu? Não quero que saia xeretando por sua conta, não quero que tente adivinhar o que é isso, não quero que fale sobre isso, não quero que pense sobre isso, não quero nem que você sonhe sobre isso. Se pedirem que faça qualquer coisa em relação a isso, dessa vez, recuse. Você entendeu?


Eu fiquei pasma.


— Por quê?


— Confie em mim, você não quer saber.


ele já estava querendo demais.


Aquilo me deixou louca. Mais do que suas exigências estúpidas, e mais do que suas acusações injustas.


“Confie em mim”, ele disse?


Ah, pode deixar.


— E por que eu confiaria em você, John? Hm? O que foi que você já fez pra merecer a minha confiança, além de aparecer no meu aniversário e me salvar de uns monstros? Me diz. Você me sequestrou quando eu tinha nove anos, e me deixou presa no seu castelo por quatro meses! Quatro meses! E nem tente me dizer que você fez isso porque eu estava morta, porque eu não estava! Eu estava na fila de NDE, e teria acordado direitinho se não fosse por você!


— Eu só estava tentando proteger você. — Ele me disse, de um jeito muito controlado, o que me deixou ainda mais alucinada.


— Estava nada! Não vem com essa desculpa pra cima de mim, não, que eu sei muito bem o que você estava tentando fazer! Esfregando aquela frutinha idiota no meu nariz e se apresentando pra mim como “John Doe”! Você é só um esquisitão com tendências pedófilas, é isso que você é! Mas, ei, aqui vai uma dica: eu não comi sua fruta estúpida, e não sou sua maldita esposa! Você não tem direito nenhum de chegar pra mim e ficar me dizendo o que eu tenho que fazer, okay? Eu sou uma cidadã livre americana! E mais! Tenho dupla cidadania – o que quer dizer que eu tenho muitos direitos pra você respeitar! E como é que você tem coragem de vir me dizer que o que aconteceu em Yorkville foi minha culpa? Você deixou todo mundo pensar que eu fosse louca! Você me deixou pensar que eu fosse louca! Você me deixou tomar remédio sob falsa prescrição! Isso é crime! Eu sou menor, você praticamente me deixou usar drogas, sabendo que eu estava fazendo isso sem a menor necessidade! Se eu achei que estivesse vendo coisas no Central Park, isso é sua culpa, não minha! Você já bagunçou bem a minha vida até agora, então eu acho que vou fazer um pouco as coisas do meu jeito, pra variar. Isso parece bom pra você? Porque se não, ótimo, não tem ninguém aqui tentando te agradar!


Eu girei sobre meus calcanhares pra ir embora, mas John pegou meu braço e me virou pra ele, então pegou meu outro braço e me manteve ali.


Eu não fiquei me debatendo, porque isso seria estúpido. Ele não me soltaria, a menos que quisesse, mas também não podia fazer nada comigo além de me segurar, então eu só o encarei.


— O que eu deveria ter feito, então, Pierce? — Ele me perguntou, calmo e pesado como um mamute. Eu não gostei muito disso. — Eu deveria tê-la levado de volta para o Submundo? Era isso que você queria? Bem, você podia ter me dito mais cedo. — Suas mãos apertaram meus braços, e eu o encarei mais forte. Minha vontade era de dizer “Rá! O que é isso, você está me ameaçando? Eu estou presa aqui, lembra? Você não pode me levar a lugar nenhum!”, mas eu não disse. — Você realmente achou que eu precisaria de uma fruta para mantê-la comigo pelo resto da sua vida?


Eu não respondi.


Mas, sim, eu realmente tinha pensado aquilo.


— Então tenha isso em mente: — ele continuou dizendo, pronunciando cada palavra como se fosse um texto completo — você é minha. Você pode receber um novo corpo e novas incertezas a cada geração, mas sua alma continua a mesma, e você é minha. Sempre foi minha, e sempre será minha, mesmo que o Sol escureça e a Terra apodreça, e não reste mais nada além do Mundo dos Mortos, onde você continuará sendo minha, quer coma do fruto que eu lhe der, quer não.


— Você costumava ser tão simpático quando eu era criança. — Falei, e nem precisei pensar para dizer isso.


Então John me soltou. Ele voltou pra dentro das sombras sem dizer mais nada, me deixando sozinha.


Mas ficar com a palavra final não foi o bastante pra mim, eu ainda tive que gritar “E você está ERRAAAAAAAAAAAAADO!”, arrancar o colar que ele tinha me dado no dia anterior e jogá-lo no meio do mar.


Assim, voltei para o chalé de Deméter, me sentindo bem mais leve.


Eu dormi como um bebê naquela noite, e dormi a noite inteira, como eu não dormia havia mais de seis anos.


Foi a melhor noite da minha vida.      


  



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Autor(a): ookamipuppy

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

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Acredite ou não, eu fiz exatamente o que John me mandou fazer. Só que ao contrário. Eu fiz perguntas, eu xeretei, tentei técnicas de adivinhação – okay, eu não cheguei exatamente a tentar isso – eu me cansei de falar sobre aquilo, cansei de pensar sobre aquilo, e, de tanto pensar e falar, eu até sonhei com ...


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