Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono
... a tal da "Grande Profecia".
Eu acordei num sofá de couro.
Quer dizer, foi o que eu pensei que fosse, até lembrar que não se fazem sofás com couro de cobra.
Bem, assim espero.
Então eu olhei em volta, tentando identificar o local, mas tudo que consegui ver foi um abismo profundo, do qual subiam rajadas quentes de vapor, e vários metros de cobra gigante enrolados debaixo de mim.
Sem sacanagem, eu nunca senti medo de cobras, nem mesmo daquela vez, quando o aquário do laboratório caiu em cima de mim. Por alguma razão, eu gostava delas – mesmo que meu pai sempre dissesse que eu não devia brincar com répteis que não fossem criados em cativeiro.
E, bem, eu não tinha certeza de se aquele específico réptil tinha sido criado em cativeiro, mas duvidava muito disso.
Mesmo assim, experimentei me mexer. Se a cobra estava viva ou morta ou apenas dormindo, eu não fazia a menor ideia, mas, partindo da suposição de que eu ainda estivesse viva, e de que tivesse andado tirando um cochilo em seus rolinhos, apostava na segunda e na terceira opção.
E, como não detectei nenhuma reação ao meu movimento, decidi tentar ficar de pé.
Eu não sei se você já jogou futebol de sabão naqueles brinquedos infláveis, mas a sensação de andar em cima de uma cobra gigante é bastante parecida. Eu não conseguia ficar em pé direito, e devo ter caído umas três vezes antes que uma voz sedutora e sibilante me dissesse:
— Cuidado, crianççça. Não há caminho de volta para mortaisss que dessscem para o Tartarusss.
Holy c*ap!
A cabeça da cobra gigante tinha se esgueirado para trás de mim sem que eu percebesse. Com o susto que eu levei, acabei caindo de novo, tão perto da sua boca que ela poderia ter me lambido.
— Você pode falar?
— Voccccê não essstá me ouvindo? É claro que eu posssso.
Now.
Be cool about it...
Não vou enganar vocês, não. Eu sempre achei que seria muito legal poder falar com uma cobra.
Quando eu era criança, meu pai me levou em São Paulo para visitar a minha avó uma vez, e nós fomos ao serpentário do Instituto Butantan. Eu achava que, se eu imitasse o Harry Potter e ficasse sibilando sshhhhaaarrashashyshhisharshsaaharrshashy para as serpentes, elas me entenderiam.
Embora eu não soubesse exatamente o que estaria dizendo a elas falando aquilo.
— É claro que você pode. — Falei, tentando ficar de pé de novo, o que certamente não foi uma boa ideia. A serpente gigante me enrolou com a ponta de sua cauda, me transformando no que eu aposto que, aos seus olhos, devia parecer um belo e delicioso Rondelli de Pierce, and then I was like: — Oww, ow, ow! Calma, vamos conversar primeiro, okay! Olha, você não vai querer me comer, acredite, eu não sou nem um pouco saudável! Vivo me empanturrando de Mc Lanches Felizes e Frappuccinos, sou praticamente um infarto no prato...
E ela ficou lá, rindo.
Ouvir uma cobra rindo é uma das experiências mais fascinantes dessa vida.
Parecia um daqueles apitos que as tias distribuem em festa de criança. Só que mais... Quebrado, quer dizer, agudo.
— Eu não sssou tola a ponto de alimentar-me da cria da deusa da colheita, crianççça. Embora vocccê pareççça muito apetitosa, sssua mãe deixxxxaria que minhasss filhasss morressssem de fome, ssse eu fizesssse isssssso.
— Ah. Okay. — Eu disse. Eu não tinha muita prática em determinar se uma cobra estava mentindo ou falando a verdade, mas, mesmo que as histórias nos ensinassem que é quase uma certeza certa que a cobra vá mentir pra você – como aquela, da Eva e a serpente – algo me dizia que aquela ali devia ser uma serpente muito trabalhadora e honesta. E, mesmo que não fosse, eu é que não ia questionar a coisa toda da "minha mãe" deixando as "filhas dela" morrendo de fome. — Então, hum, dona cobra... Desculpe, eu não sei seu nome.
— Meu nome é Píton. Eu sssou a guardiã do Oráculo de Pytho, e a mãe de todasss asss cobrasss e serpentesss.
Oráculo de Pytho, eu pensei, tentando lembrar onde já tinha ouvido aquilo.
— Certo. Meu nome é Pierce. Pierce Oliveira. E eu sou...
— A deusa maldita. — Na verdade, eu ia dizer que era do signo de Áries e de Peixes, ao mesmo tempo. O que, na época, eu considerava ser uma das curiosidades mais interessantes a meu respeito. — Ssssim, eu sssei. E eu sssei tudo ssssobre vocccê.
Confesso que a maneira como Píton disse “eu sssei tudo ssssobre vocccê” me intrigou bastante. Simplesmente me deu a impressão que ela devia mesmo saber tudo sobre mim, de uma forma plena e absoluta, como se eu fosse uma tese científica que lhe tivesse conferido o Prêmio Nobel ou coisa assim.
Eu tive vontade de perguntar a ela onde eu tinha perdido a minha boneca Barbie Twilight Gala quando tinha seis anos, ou se um dia eu conheceria Brian Boitano pessoalmente. Se Píton ssssabia “tudo” sssobre mim, aquelas informações deviam constar no prontuário.
Mas não perguntei isso. Eu não queria que a rainha das cobras achasse que eu gastava meu tempo me preocupando com bonecas perdidas há milénios e com patinadores profissionais aposentados.
Então, eu sabiamente disse:
— Como assim? — E fiquei querendo ter dito outra coisa.
— Vocccê pode não ssse lembrar de mim, crianççça, masss nósss já nosss conhecccemosss. — Aquilo estava começando a me deixar com vontade de falar asssssim. Píton me moveu para mais perto e levantou a cabeça, até deixá-la a mesma altura que a minha. Eu não me senti desconfortável com isso, mas aí ela começou a me apertar com força. Tipo, de verdade. Doeu. — Ssseu pai veio a mim, há muito tempo, pedindo que lhe cccedessssse minhasss belasss formasss. “Vocccê tem belosss caracóissss!”, ele disssse, “Tão belosss caracóisss...”. Eu cossstumava ter belosss caracóisss, crianççça, até ssseu pai decccidir roubá-losss para entrar em sssua câmara. Sssua mãe me amaldiçççoou por isssso. Transsssformou-me nessssa ssserpente grotessssca que vosss fala, para que eu nunca maisss pudesssse “entrar sssorrateiramente em lugar nenhum”, ela disssse. Vocccê ssssabe por que, crianççça?
Ah, eu conseguia imaginar por quê.
Mas, àquela altura, Píton já estava me apertando com tanta força que eu sentia meus olhos saltando da minha cara. Eu tinha certeza de que não conseguiria dizer muita coisa, então escolhi minhas palavras com cuidado.
— Deuses podem ser um pé no saco, às vezes...
Foi a coisa certa a dizer.
Píton sibilou sua risada de apito quebrado e foi me soltando lentamente, até que eu conseguisse respirar de novo.
Mas, de alguma forma, o oxigênio me deixou mais idiota.
Afinal, pra que tentar distraí-la com algum assunto inteligente, quando eu podia insistir naquele?
— Então... Isso realmente aconteceu? Zeus se transformou numa serpente pra entrar no meu quarto e...
— Não diga esssse nome àsss portasss do Tartarusss, crianççça. Ele não é bem-vindo aqui.
E não devia ser mesmo. Alguma coisa colossal tinha se mexido lá em baixo, e eu não tinha certeza se queria saber o que era.
— Okay, desculpe. — Só então mudar de assunto me pareceu uma boa ideia. — Hum... Quando você diz Tartarusss, você quer dizer... O lugar onde foram jogados todos os Titãs?
— Quando eu digo Tartarusss, — ela não gostou muito de alguma coisa que eu falei, porque me apertou um pouquinho de novo — essstou me referindo ao deusss primordial Tartarusss. Vocccê deveria ssser um pouco maisss reverente com seusss modosss.
Ah, e meus modos deviam ser um problema e tanto, pra todo mundo ficar me repreendendo por eles.
— Certo, tem razão, eu sinto muito. — Me apressei a dizer. — Mas então, hum... Se... A senhora não vai me comer... E não quer que eu caia lá embaixo... O que estamos fazendo, hum, aqui? É, às portas do deus primordial Tartarus. — Eu acrescentei, com toda a reverência.
— Nada. — Ela respondeu, deitando sua enorme cabeça em seus caracóis, com a maior tranquilidade. — Essstou apenasss recuperando minhasss forçççasss para levá-la de volta à sssuperfícccie. Você pode voltar a dormir, sssse quiser, eu a acordarei quando essstiver pronta.
— Hã... Você vai me levar de volta à superfície... Por quê? Quer dizer, não que eu tenha alguma coisa contra isso. Eu não tenho. Só pra constar.
— Esssse foi o trato, criançççça. Deixxxxe-me dessscansssar agora, poisss essstou cansssada de meusss ferimentosss e muito esssforççço, e não posssso sssatisssfazer minha fome com a presa em meu ninho. Durma, filha dosss deusesss, durma e dessscanssse, poisss temosss um longo caminho pela frente.
A voz dela era meio hipnótica, sei lá. Como a voz de Julian Keener, quando ele tentava me explicar quais eram as etapas da divisão celular. Eu fui ficando cada vez mais sonolenta e, inevitavelmente, acabei dormindo.
Quando acordei, já estávamos em movimento. Eu estava estatelada no longo pescoço de Píton, praticamente babando, e demorei um minuto pra perceber como fora parar ali.
Quando as coisas mais importantes começaram a voltar, eu perguntei:
— Onde estamos?
— Nosss Camposss de Asssfódelosss. Talvezzzz vocccê queira cobrir o narizzz, menina, o ar não é muito bom aqui. — E não era mesmo. Embora estivéssemos viajando a certa velocidade, não havia vento, apenas aquele hálito quente e fedorento, como o de alguém que acabou de acordar e foi te dar oi sem escovar os dentes.
E, abaixo de nós, apenas uma vasta multidão de pessoas à paisana. Nenhuma delas parecia se incomodar com a cobra gigantesca ali só de passagem. Algumas nem saiam do caminho, deixavam-se ser atropeladas, se levantavam e continuavam andando, desorientadas, como se não houvesse nada melhor no mundo pra fazer. Porque provavelmente não devia ter mesmo.
— Eles estão mortos...?
— Sssim. Todosss mortosss. Todosss esssperando pelo dia do julgamento. A maioria já nem ssse dá ao trabalho de esssperar na fila. Muitosss vagam por aqui durante anosss antesss de ssserem chamadosss. Muitosss sssabem que o que osss essspera não é nada melhor do que aqui, e tentam ssse misssturar à multidão.
E eu pensei: uau.
Aquilo era horrível. Embora eu me lembrasse perfeitamente da expressão “Campos de Punição”, que Annabeth tinha usado quando nos conhecemos, eu não conseguia imaginar nada pior do que aquilo ali: vagar sem rumo no meio de uma multidão de pessoas que você não conhece, esperando que alguém grite o número da sua senha pra você ser julgado.
Aquilo era pior do que aquelas filas gigantescas da previdência social, que a minha avó me mostrou na rua uma vez.
Como John podia deixar tanto trabalho acumulado? Por que ele não contratava mais... Sei lá, pessoas? Por que não criava uns cargos públicos ou alguma coisa assim? Devia haver algo que se pudesse fazer quanto aquilo...
Eu guardei esse pensamento para uma análise posterior, comprometendo-me a discutir o assunto com ele quando nos encontrássemos de novo.
— E as barcas? Onde ficam as barcas?
— Asss barcasss ficam lá em cccima, depoisss do Pavilhão do Julgamento. Nósss não vamosss passssar por elasss.
— Ué. Nós não estamos indo pra superfície? As barcas não ficam na entrada?
— Como asss barcasss ficariam na entrada, crianççça? Onde asss almasss ssseriam julgadasss? Na recccepççção? Exissste apenasss uma balsssa na entrada. A balsssa de Chharon. Ele fazzz a travessssia dasss almasss do exxxterior para o sssubmundo. Você terá que pedir a ele para levá-la.
— Ah. Okay. Balsa de Charon. Beleza. — Eu fiquei repetindo aquilo mentalmente, pra ter certeza de que eu não iria esquecer. — Mas, então... Você, hum, a senhora disse que tinha feito um trato, certo? Pra me levar de volta... Foi com... Hades?
— Vocccê achhha? — Ela riu. E deixou claro que estava rindo da minha doce ingenuidade e inocência. — É claro que não, menina. Ssse dependesssse dele, vocccê essstaria trancada de novo em ssseu quarto nesssse momento. Quem vocccê achhha que enviou aquela cria para abrir a passssagem para o sssubmundo?
— Cria? — O termo não me disse nada imediatamente.
— A cria de Hadesss.
Ah, sim.
Píton estava falando de Nico, portanto.
Aquela notícia me chocou em alguns aspectos.
Acima de tudo, fiquei invocada com John por envolver sua cria, digo, filho nas tramoias dele. Se minha linha de raciocínio estivesse correta, o que ele fez foi basicamente jogar o garoto contra as ordens de Zeus.
E se Nico se encrencasse por causa disso?
Eu não dava a mínima pra que tipo de pai John queria ser, mas, poxa. Se você quer ser um mau pai, perca o jogo de futebol do seu filho, esqueça-o na escola, ou, sei lá, diga a ele que o Papai Noel não existe – não mande o garoto desobedecer às ordens de um deus loucão, temperamental e arbitrário, mesmo que o malucão seja seu irmão. Isso é apenas... Errado.
Mas eu também fiquei abismada que Nico fosse capaz de abrir uma passagem para o submundo, e me fazer cair lá dentro. Ele parecia ser um menino tão bonzinho.
Pensar sobre aquilo também ia ter que ficar para depois.
— Então, afinal, quem encomendou a minha liberdade?
— Ssssua mãe, evidentemente.
— Mas... — Eu falei, um tanto preocupada. — Eu achei que você odiasse Deméter.
— Isssso não sssignifica que eu possssa ignorar ssseusss pedidosss a minha vontade, menina. Por sssua causa, e de ssseu pai, essstou em débito com ela.
Fiz uma anotação mental para me lembrar daquele comentário.
Pra não ficar completamente perplexa se por acaso Píton tentasse me matar e fazer parecer um acidente, eu quero dizer.
Porque, afinal, ela não devia ter sido criada em cativeiro, mesmo.
Nós viajamos pelos Campos de Asfódelos por um bom tempo - até chegarmos a uma grande muralha.
E quando eu digo que era uma grande muralha, eu quero dizer grande mesmo. Ela era tão alta que mesmo Píton não parecia ser alta o bastante pra passar por cima dela.
E provavelmente não era.
— Esssse é o maisss longe que posssso levá-la. — Disse ela, me deixando ao pé da muralha. — Sssiga nessssa direççção. Vocccê vai ter que passssar pela ssseguranççça. Uma vezzz fora, procure por Chhharon. Ele pode levá-la atravésss do rio.
— Hm. Okay... Mais alguma coisa que eu precise saber?
— Apenasss uma.
Píton curvou sua cabeça para mim e, sem o menor aviso, foi lá e simplesmente lambeu o meu braço.
Quer dizer, eu acho que foi uma lambida, mas senti como se fosse uma picada, e, quando olhei, havia uma Píton em miniatura tatuada logo abaixo da minha cicatriz de vacina BCG.
— Uma de minhasss filhasss irá com vocccê. Vocccê pode falar comigo por intermédio dela, quando precccisar de mim.
Que linda. Pensei, admirando minha tatuagem. Mamãe vai ficar maluca quando souber disso.
Eu sempre tinha pensado em fazer uma tatuagem.
Até aquele dia.
— Sério? Como um walkie-talkie?
Ela me lançou um olhar ameaçador.
— Não abuse da minha boa vontade.
E foi embora.
— Okay... — Eu disse, e dei mais uma olhadinha na cobra enroscada no meu braço, imaginando como, exatamente, aquilo tinha ido parar ali.
Fui andando ao redor da muralha na direção que Píton tinha apontado pra mim, até avistar uma passagem, e preciso dizer que aquilo pareceu bem mais com os portões da escola pública em que meu primo estudava do que com o que eu achava que deveriam ser os portões do inferno.
Eles tinham câmeras de segurança espalhadas pra todos os lados, cercas elétricas, detectores de metais, scanners, guardinhas revistando as pessoas e... Cães do inferno?
É, cães do inferno também.
Eu não fazia a menor ideia de como poderia passar por aquilo tudo. Nunca fui muito boa em tapear guardinhas – se fosse, não teria passado tanto tempo numa clínica psiquiátrica.
De qualquer forma, eu não queria ligar pra Píton e dizer que já tinha me atolado na lama em frente ao primeiro obstáculo...
Com esse pensamento feliz, tive uma ideia.
Eu me lembrei do dia em que morri por suor excessivo. Como aquele homem na fila tinha se transformado num monstro descontrolado – uma quimera, como John me contou depois – e como todos os guardinhas tinham voado pra cima dele.
Aquilo acontecia bem esporadicamente, pelo que ele me disse, com pessoas condenadas aos Campos de Punição – que ele chamava de "prisão perpétua", quando falava comigo. Às vezes, aparecia uma pessoa tão ruim, mas tão ruim, que os Campos de Punição simplesmente não serviam pra ela. Essa pessoa se transformava num monstro, e tinha que ser mandada para o Tartarus. Foi o que ele me disse.
Meu problema maior ali parecia ser o uniforme. Eu ainda estava usando a camiseta laranja do acampamento com as calças jeans, e, daquele jeito, ninguém ia me deixar sair.
Assim sendo, concluí que precisaria esconder aquele uniforme. E inventar uma boa mentira.
Eu não sei se já disse isso, mas aqueles “Campos de Asfódelos” estavam bem mais para Pântanos de Asfódelos do que pra campos. A coisa toda era um grande brejo fedorento, pelo qual as pessoas insistiam em sair patinando.
Aquela parecia ser a única opção que eu tinha, então fui até os pântanos de Asfódelos e me meti na lama. Me cobri com ela da cabeça aos pés, até não restar um pedacinho de tecido limpo.
Quando fiquei satisfeita com a minha imundice, fui até o cara que parecia ser o guardinha mais importante.
— Sr. Osman! O senhor é o Sr. Osman, não é? — Eu perguntei. Graças a Deus, o carinha estava usando crachá de identificação. — Eu sou a, hã, nova estagiária.
E aquilo colou. Acredite ou não.
— Pelos deuses, menina, onde você se meteu? E que diabo aconteceu com você? Você pretende realmente trabalhar com seu uniforme desse jeito?
— Não, senhor, eu... Eu estava lá na frente, e um cara, err, virou uma iguana gigante com juba e chifres, e... Meu chefe... Me mandou vir aqui avisar você. Ele disse pra levar mais gente, porque o pessoal não tá dando conta lá, não.
— Meus deuses! — Exclamou o moço, caindo que nem um patinho. — Onde foi isso?
— Perto do, hum, Pavilhão do Julgamento?
O senhor Osman assobiou bem alto e acenou pra mais cinco ou seis malucos, que foram todos correndo pra lá, guiando meia dúzia de cães infernais naquela direção.
Eu espalhei a notícia pra tudo mundo, e, logo, mesmo os que ficaram estavam dispersos e ansiosos pela chance de poder sair pra dar uma checada – aquele trabalho não devia oferecer muitas variações de entretenimento aos seus empregados – e isso começou um pequeno tumulto ali também.
Quando eu disse que precisava passar pra trocar de uniforme, ninguém me perguntou nem pra onde eu precisava passar, nem onde eu ia me trocar – ainda bem, porque eu não fazia a menor ideia.
E, pronto, eu estava fora.
Tinha sido mais fácil do que eu imaginara.
Fui seguindo o fluxo da multidão no sentido contrário até chegar ao tal rio do qual Píton tinha me falado. Não vi nenhuma balsa por lá logo de cara, então fiquei vagando ao longo da margem por um tempo, preocupada em não dar muito na vista.
Quando o barquinho finalmente apareceu, descarregando uma trupe de novos passageiros, eu me esgueirei para a beira do rio e cochichei baixinho para o gondoleiro, me sentindo a tal da drug dealer.
— Você é o Charon, o que a travessa a galera pelo rio?
O moço se inclinou pra mim, falando no mesmo tom de confabulação criminosa:
— Você tem dracmas?
— Hum... Dracmas?
Ele não deve ter gostado muito da minha resposta, porque me olhou de cara feia e se inclinou para o outro lado, decidindo me ignorar como se eu nem estivesse ali.
Eu insisti o quanto pude, implorando que ele me levasse. Prometi que pagaria o preço que fosse quando estivéssemos do outro lado, só precisava ligar pra minha mãe, mas ele não cedeu, e, no final, acabou indo embora sozinho, e eu fiquei lá, plantada que nem lodo na beira do rio.
Eu perguntei pro pessoal que estava chegando se alguém tinha uma ou duas dracmas pra me emprestar, mas ninguém tinha.
Depois de um tempo, os guardinhas que eu tinha aloprado voltaram e começaram a me procurar, e eu tive que subir o rio correndo na esperança de não ser pega.
Eu me escondi numa pedreira entre a muralha e a margem do rio, bem ao norte da passagem. Eu estava com fome, cansada e com frio, não tinha nenhuma dracma, então não podia seguir em frente, e também não podia voltar por onde eu tinha vindo, porque os guardinhas cairiam todos em cima de mim no mesmo instante.
E assim, eu fiquei lá, batendo os dentes e amaldiçoando a vida, me perguntando se Píton dissera alguma coisa sobre instruções de uso ou se ao menos chegara a mencionar como ligar o dispositivo de comunicação ofídica no meu braço.
Concluí que não.
Quando estava quase criando coragem para atravessar o rio a nado, um cara apareceu numa pedra e falou pra mim:
— Olá, Pierce! Ué. O que está fazendo aí?
Aquele homem me pareceu familiar à primeira vista, só que não muito. Ele estava vestindo uma camisa polo azul com shorts curtinhos, tênis de corrida, boné e bolsa de carteiro.
Eu poderia apostar que ele fosse me pedir pra assinar a entrega de alguma encomenda, mas, em vez disso, o moço se agachou na sua pedra, arqueou as sobrancelhas e apontou pra mim, falando como se tivesse feito uma grande descoberta:
— E você está coberta de lama.
— Quem é você? — Eu perguntei, bastante direta. Aquelas sardas definitivamente lembravam alguém, mas eu simplesmente não conseguia relacionar a semelhança a um rosto conhecido...
Ele sorriu.
— Adivinhe.
Aquela foi a coisa mais estúpida que alguém já me disse pra fazer.
Quer dizer, desde quando um ser desconhecido chega pra você dizendo que você está coberta de lama e te pede pra adivinhar quem ele é? Aquele carinha devia estar fumado.
Apesar disso, estranhamente, a resposta me desceu como uma inspiração divina.
— Hermes? — Eu falei, e simplesmente soube que estava certa.
— Você se lembrou. Dessa vez. — Ele pareceu contente com aquilo.
E eu não sabia o que dizer.
Ali estava um dos meus irmãos, que, por acaso, era também um deus, todo feliz em me ver.
E eu só queria perguntar se ele tinha uma dracma pra me emprestar, para eu poder dar o fora dali.
— Mas e aí, qual é a boa? — Ele continuou dizendo, dando uma de tiozão descolado, sei lá. — Resolveu dar um rolê pelos infernos?
Rolê?
Eu não ouvia aquela expressão fazia muito tempo.
— Hum. É. Alguma coisa assim, hum... E você? Veio a trabalho, ou...? — A possibilidade me alarmou um pouco. Pelo que eu sabia, era Hermes quem trazia a correspondência de Hades. Fiquei imaginando se ele tentaria me levar também, ou se acabaria me dedurando.
Mas aparentemente não.
— Bem lembrado, eu já ia me esquecendo. — Disse, mexendo em sua bolsa, e tirou de lá um envelope verde e um rolo de pergaminho. — Esse é do Pai, — ele me entregou o pergaminho — e esse é do Oráculo de Delfos — e me deu o envelope verde também.
O que me deixou realmente surpresa.
Eu me movi, tentada pelo envelope verde, mas certa de que devia abrir o pergaminho primeiro, por alguma razão.
No entanto, quando eu o abri, não fiquei muito empolgada com ele.
O rolo tinha quase dois metros de comprimento, estava todo escrito em inglês numa letrinha miúda e dourada de pena, o que não incitou a compulsão da minha dislexia pela leitura, e eu olhei para Hermes, chateada.
— Eu não consigo ler isso.
Ele franziu a testa, pegou o pergaminho, deu uma olhada e falou:
— Ah, tem razão. — Então enrolou e enfiou aquilo de novo em sua bolsa de carteiro. — Isso é... Para outra pessoa.
É pro John, com certeza eu pensei. Eu devia ter tentado ler o pergaminho.
Certo, rasguei o envelope verde e abri o cartão que encontrei lá dentro, antes que Hermes resolvesse tomar esse de volta também.
O cartão era, como direi, meio parecido com um daqueles cartões temáticos que tocam músicas natalinas quando você abre. Só que, em vez de tocar música, aquela coisa exalou uma névoa verde, e, com uma voz muito suave e misteriosa, começou a dizer:
“Três Grandes cairão,
Três Grandes se levantarão,
Dezesseis primaveras terá você, deusa maldita,
Eles despertarão.
Sua prole a Norte, Sul, Leste, Oeste encontrará
E pelas tuas mãos a grande usurpadora poderá dos três o maior derrubar.”
E foi só isso.
Autor(a): ookamipuppy
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Eu levei alguns segundos para elaborar aquele pensamento: Dafuq? Honestamente, se eu já não fizesse alguma ideia do que se tratava o assunto, jamais teria adivinhado. — Não me diga. — Falei, olhando para Hermes. — Então essa foi a grande profecia? — Eu tinha várias objeções a apontar. Primeiro, ...
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