Fanfic: A Maldição de Perséfone | Tema: Percy Jackson Abandono
Eu levei alguns segundos para elaborar aquele pensamento:
Dafuq?
Honestamente, se eu já não fizesse alguma ideia do que se tratava o assunto, jamais teria adivinhado.
— Não me diga. — Falei, olhando para Hermes. — Então essa foi a grande profecia? — Eu tinha várias objeções a apontar. Primeiro, que raio de profecia era aquela, que falava, falava e não dizia nada? Três caem e três levantam? Que relevância fazia mencionar isso então? E por que “deusa maldita”? Eu tive certeza de que foi dali que saiu aquele apelido idiota. Por que não deusa bonita? Ou deusa simpática? E quem no mundo usaria a palavra prole para se referir a pessoas? Supondo, é claro, que estivesse se referindo a pessoas. Não era um termo ofensivo? E, nossa, que grande ajuda, “a grande usurpadora”. Que tal nomes, please? Se uma professora de português ou inglês pegasse aquilo, diria que a profecia estava toda errada, dava abertura a múltiplas interpretações e não definia um monte de sujeitos. Eu poderia ter exposto tudo aquilo com eloquência, mas resolvi dizer, simplesmente: — Aquela que eu não podia ouvir ou alguma coisa assim?
Hermes sorriu – do jeito que os caras do nono ano fazem quando você está no jardim de infância e eles te acham a coisa mais fofa do universo.
— Essa decisão foi revogada. Como não havia dúvidas de que a profecia falava a seu respeito, o Pai permitiu que ela fosse entregue a você.
Achei aquilo meio confuso. Como uma piada de duplo sentido quando você não tem idade suficiente pra entender. De qualquer forma, eu tinha esse estranho pressentimento de que estava prestes a cair numa cilada.
— Pra quê? — Perguntei, desconfiada.
E Hermes rapidamente assumiu uma postura muito formal.
— Para que você pudesse se preparar, — ele foi dizendo, parecia uma gravação — para o que está por vir. É um costume dos deuses, e também uma forma de cortesia para com os humanos, permitir que heróis mortais ouçam previsões relativas às suas jornadas.
Então eu não tive a menor dúvida: aquilo era uma cilada.
— Opa, peraí. Você disse jornada? Desde quando eu estou numa jornada? Ninguém me falou nada sobre isso.
— Foi por isso que eu vim. — Ele sorriu, tentando parecer legal. Eu me sentia cada vez mais como uma criança do jardim de infância perto dele, e isso estava começando a me dar nos nervos. — Nosso Pai deseja fazer-lhe uma nova proposta. Se aceitar, poderá receber sua imortalidade de volta bem mais cedo do que se seguisse o regime atual de sua pena.
Eu me movi, incomodada com a palavra “pena”, e só consegui pensar naquilo por tempo suficiente para encontrar o tom de voz que eu devia usar quando precisasse recusar uma oferta polidamente.
— Okay... — Falei. — E o que acontece se eu não aceitar?
Mas Hermes parecia ter previsto aquilo.
— Vamos com calma. Me escute primeiro, está bem? — Ele esperou que eu absorvesse a ideia, e então continuou falando. — Se aceitar, além da imortalidade, você terá suas posições restituídas incondicionalmente, tanto no Olimpo quanto aqui, e será aceita de volta com a ficha completamente limpa!
E, cara, eu ia ser aceita com a ficha completamente limpa!
Como se o que eu tivesse feito fosse alta traição ao Estado ou coisa pior.
Pensar nisso me deixou P da vida. Se eu fosse só um pouquinho mais desaforada, eu mandaria Hermes ir mandar Zeus catar coquinho na ladeira, – mas eu era uma dama, e damas mantém a compostura.
Então eu disse, como se estivesse considerando a ideia:
— Bem, mas o que eu teria que fazer?
— Praticamente nada. — Hermes respondeu, sorrindo de orelha a orelha novamente, e afastou os braços como quem dá a melhor parte da boa notícia. — Nesse momento, o acampamento está montando quatro esquadrões de busca. Os grupos provavelmente estarão prontos até o amanhecer. Um irá para o norte, outro para o sul, um para o leste, outro para o oeste. Sua tarefa é monitorar as buscas. Você pode escolher acompanhar um grupo, se quiser, mas sua participação não deve exceder os limites impostos pela sua condicional. Você poderá aconselhá-los e oferecer a eles os recursos que estiverem ao seu alcance, mas não mais que isso. Sua pena ainda pode ser estendida caso viole os termos da condicional.
— Hm.
Era impressão minha ou Hermes estava me oferecendo um daqueles acordos que a gente vê na tevê o tempo todo, aqueles que agentes do FBI só oferecem para os vigaristas mais fo*erosos quase-bem-sucedidos que eles conseguem pegar? Como em Catch Me If You Can e White Collar?
Vai que de repente eu era uma espécie de expert em alguma arte proibida antiga, ou qualquer coisa ilegal assim, e não sabia.
Podia totalmente acontecer.
E, embora eu duvidasse que fosse esse o caso, a esposa do meu tio sempre dizia que a melhor forma de valorizar os seus serviços é mostrando aos interessados que você não está interessado neles – tipo, playing hard to get.
Quando eu era pequena, minha mãe dizia que a tia Betty tinha uma empresa de capital aberto.
Só depois que ela e meu tio se separaram eu fui saber que, na verdade, tia Betty fora uma, hum, espécie de “cortesã” antes de se casar com ele.
Pode crer.
Mas, como você pode ver, eu tenho uma mente aberta.
— E essas buscas... São pra buscar o que exatamente?
— Meio-sangues. — Ele respondeu, bem vagamente. — Provavelmente.
— Como assim provavelmente?
— Bem. Você soube alguma coisa sobre a última guerra?
— A guerra contra Cronos? — Houve um pequeno terremoto ao som do nome. — Eu soube.
— Então. É possível que ainda haja alguns rebeldes montando resistências por aí.
— A norte, sul, leste e oeste? Então “a prole” são os seus filhos? Os filhos de vocês?
Ele ficou me olhando.
— Hm. — Disse, mudando o pé de apoio. — Por quê? Quem você pensou que fossem?
Sei lá.
“Sua prole” realmente não especificava nada.
Poderia ser a minha prole? Quem saberia dizer o que minhas outras encarnações andaram aprontando ao longo dos anos?
Ou sei lá.
Eu fiquei feliz em saber que a prole não tinha nada a ver comigo.
— E eu é que sei? — Dei de ombros. — Mas, se você quer a minha opinião, eu acho que esses garotos devem ter bons motivos para se revoltarem. Afinal, quando foi a última vez que qualquer um de vocês reservou o dia pra passar um tempo de qualidade com eles?
Isso o deixou desconsertado, mas ele não disse nada.
Eu suspirei.
— Anyway. Eu realmente não sei o que é que tudo isso tem a ver comigo. Pessoalmente, não tenho o menor interesse em me tornar imortal ou qualquer coisa do gênero, então...
And he was like: wait… What?
— Como assim? Você não quer ser imortal? — Ele perguntou aquilo como se “ser imortal” fosse a coisa mais legal do mundo, a última bolacha do pacote, algo que todo mundo deveria querer.
Até aí, eu não estava me fazendo de difícil. Eu não queria mesmo ser imortal, ou recuperar a posição de Perséfone, ou de Koré. Francamente, eu não via a menor vantagem nisso. Passar a eternidade dividindo a minha vida entre um marido ciumento num cárcere privado, e uma família cheia de parentes perturbados que andariam atrás de mim como cachorros atrás de uma cadela no cio no Olimpo?
Thanks, but no thanks.
— Na verdade, não. A única coisa que eu quero é ir pra casa. E, se você tiver uma dracma pra me emprestar... Eu pago depois.
Ele mudou o pé de apoio de novo.
— Você nunca me disse que não queria voltar...
Olhei para Hermes.
Alguma coisa na forma como ele disse, ou na voz que usou pra dizer aquilo, me fez sentir uma pontinha de remorso por colocá-lo na mesma posição de vilão que eu colocara Zeus e os outros há muito tempo.
Eu já tinha visto em algum lugar que Hermes fora o único que acompanhara Deméter na procura por Perséfone quando Hades a levara. E que a cada seis meses ele a acompanhava até o Submundo, e ia buscá-la quando terminava o inverno.
Muitas vezes, eu os imaginara como irmãos realmente próximos. Amigos e confidentes, e tal.
Talvez Hermes não tivesse realmente tentado se casar com ela. Talvez tudo que ele quisesse fosse ter sua irmã de volta...
Isso mexeu comigo, – eu ficava meio sentimental às vezes, tipo, umas doze vezes por ano, mais ou menos na mesma época do mês – mas eu ainda não estava disposta a ceder.
— Bem, você provavelmente deveria ter pensado nisso, depois de um zilhão e meio de encarnações, não?
Hermes continuou me olhando, de um jeito meio triste, e eu fui sentindo o remorso virar outra coisa.
Céus. Eu e o meu coração mole.
— Olha, não é nada pessoal. Se isso for realmente necessário, eu posso ajudar, mas não quero nenhuma imortalidade. Ou posição divina. Se Zeus quer realmente fazer alguma coisa por mim, eu prefiro que ele só me deixe viver a minha vida em paz. Ele e os outros deuses. Nada de ficar me deixando presa em castelos ou em acampamentos, nada de ficar interferindo na minha vida ou colocando gente pra me perseguir. Se pra ele estiver tudo bem desse jeito, então nós temos um trato.
Hermes pareceu surpreso com a minha resposta, mas não tentou me dissuadir da ideia. Ele apenas cobriu a boca com uma mão e ficou me olhando de um jeito muito estranho.
Então desviou o olhar, pigarreou e disse:
— Eu não posso prometer nada no lugar dele, mas não acho que o Pai terá problemas com isso. — Hermes me olhou de novo, com aquela carinha de cãozinho abandonado – eu nem sabia que deuses podiam fazer isso. — Mas você tem certeza...? De que é isso que você quer?
Pra falar bem a verdade, eu tinha mais ou menos certeza.
Mas não queria dar essa impressão a ele, então me firmei sobre os dois pés e me estiquei, atingindo todos os meus cento e sessenta e dois centímetros de altura, como se fosse grande coisa.
— Tenho. Pelo menos por essa vida. — Falei. Eu não sabia se a próxima Pierce se sentiria dessa forma, então achei melhor não estender o trato para as minhas encarnações futuras. — Se querem a minha ajuda, são esses os termos.
Eu quase pude ouvir o coração dele explodindo em mil pedaços.
Mas o que mais eu podia fazer?
— Certo. — Ele disse, enfiou a mão no bolso e tirou de lá um punhado de moedas de ouro. — Aqui. Isso deve bastar.
Puts. Pensei. Aquilo tudo somado com certeza dava bem mais do que as minhas economias para comprar o computador que eu queria no final do ano.
Mas eu aceitei, mesmo assim.
— Obrigada. Eu prometo que vou pagar de volta... — Mesmo que tenha que trabalhar no McDonald’s pro resto da vida.
Porque uma Oliveira sempre paga suas dívidas.
— Não se preocupe com isso... Bem, eu tenho que ir. Foi muito bom vê-la, Kor... Pierce. — Hermes virou-se para ir embora, mas então se lembrou de algo que ainda precisava dizer e voltou. — Você já descobriu como usar o seu...
Ele apontou o próprio pescoço, gesticulando para algo que talvez devesse estar preso ali.
Eu verifiquei, mas não tinha nada no meu.
— O que?
— O seu, hum, colar?
Demorei um tempo pra perceber do que ele estava falando. Quando lembrei, levei minha mão direto ao meu bolso traseiro, e percebi que a pulseira, impressionantemente, ainda estava lá.
— Existe uma forma específica de se usar isso? — Eu perguntei, curiosa de verdade.
— Não isso. Os nossos presentes.
— Seus presentes. — Foquei os pingentes. — Não são só enfeites?
— Não, é claro que não. Dê-me aqui.
Entreguei a pulseira a Hermes e ele a prendeu ao redor do meu pulso.
Como colar, ficaria apertado, e, como pulseira, ficava bem larga, mas seu comprimento se ajustou imediatamente ao meu pulso quando a coloquei, quase como se tivesse sido feita sob medida.
O que me fez parecer meio boba ao perceber que tinha tirado conclusões precipitadas mais uma vez.
— Segure o cajado. — Ele disse, apontando o primeiro pingente do conjunto – a varinha com asas.
Eu toquei nela, e, numa fração de segundo, o pingente se esticou como um chiclete, até ter o tamanho de uma vassoura.
— Isso é... O Caduceu?
— Bem. Não. Seria, se eu não tivesse dado a você. Eu fiz outro depois. E foi a esse que dei o nome de Caduceu. — Hermes foi explicando.
Ele tirou um celular do bolso, que, quando olhei de novo, tinha se transformado num cajado, ao qual duas serpentes se entrelaçavam.
Confesso que achei o dele bem mais massa.
— Que legal. — Falei. — E pra que ele serve?
— Ah, essa é a melhor parte. Suba nele.
No way...
— Você não vai me dizer que esse negócio voa, vai?
Ele sorriu.
— Uau. — Eu falei. — Que legal.
Mas não devo ter parecido tão impressionada quanto ele gostaria.
— O que? Qual é o problema?
— Nenhum. Nenhum problema. É totalmente incrível, eu adorei.
— Não, você fez aquela coisa. Você não gostou. O que há de errado com ele?
— Nada. Eu gostei. Gostei mesmo... Como assim, “eu fiz aquela coisa”? O que eu fiz?
— Aquela coisa com os olhos. Você sempre faz isso quando mente por educação.
Sério?
Ninguém nunca tinha me dito isso.
— Não, eu achei legal, de verdade... É só... — Fiquei pensando. Eu não queria parecer ingrata nem nada, mas... — Quer dizer, eu só não imagino que voar em cima de um cabo de vassoura deva ser tão legal assim... Tudo bem, eu sei que os bruxos e a Sakura CardCaptor fazem o tempo todo, mas, assim, não parece ser lá muito confortável... Parece que machuca...
— Oh... — Ele ponderou. — Eu nunca tinha pensado nisso.
— Pois é.
Acho que ninguém nunca pensava nisso.
Na verdade, nem eu sei por que eu ficava pensando nessas coisas.
— Okay, então... Você preferiria se fosse um tênis voador?
— Um tênis voador?
— É, como esses. — Ele apontou os próprios sapatos. Eram All-Stars com asas.
— Nossa. Já produzem All-Stars desse tipo?
— É claro que não. — Hermes ficou rindo. — Sou eu que faço serem assim.
Hm. Pensei. É melhor começar a se preocupar em ser processado pela Converse num futuro próximo.
— Seria legal também, mas, hm... Sabe o que seria ainda mais legal? Se você pudesse fazer com que ela parecesse uma prancha de windsurfe.
— Você faz windsurfe? — Isso o surpreendeu positivamente, pelo que pude perceber.
— Faço. — Respondi, tentando parecer humilde.
E ele ficou lá, todo apaixonado por mim.
Hermes transformou a vara voadora numa prancha pequena de Raceboard com bolina retrátil e pé de mastro com trilhos, estampada em formas amarelas, vermelhas e cor de pêssego. A vela era incrível, – nada como qualquer coisa que eu já tivesse visto – tinha um pouco mais de três metros de altura e parecia uma asa de borboleta.
Quando subi nela, imaginei que fosse assim que Jim Hawkins se sentisse.
— Isso é muito maneiro! — Gritei, experimentando a aerodinâmica. Era tão fácil voar nela quanto seria velejar numa prancha normal. Totalmente demais.
— Você gostou?
— Eu adorei! Você acha que dá pra atravessar o rio com isso?
— De jeito nenhum! — Ele disse, de repente todo aflito. — Nunca tente atravessar o rio sem mim, ou sem Charon. Mortais não podem atravessar sozinhos.
Eu desci da prancha.
— Por que não?
— Porque vocês se perdem nele.
— Hm. — Pensei, imaginando como alguém se perderia ao atravessar um rio. — Então tá bom. Hum... Como eu faço pra guardar isso de volta?
— É só soltá-lo.
Então eu soltei.
E a prancha voltou a ser um pingente. Só que agora, em vez de uma vara com assas, o pingente tinha o formato de uma mini-prancha de windsurfe.
— Irado.
— Fico feliz que tenha gostado. Eu tenho outra coisa pra você.
— Outra?
Hermes abriu um dos seus enormes sorrisos, e eu me senti toda quente.
Foi meio constrangedor me sentir assim, mas logo percebi que eu não fora aquecida pela força do amor ou pela explosão dos nossos sentimentos fraternais or whatever. E sim por roupas secas.
Eu estava limpa, mas minhas roupas tinham sido trocadas. No lugar do uniforme do acampamento, eu estava usando calças camufladas de poliéster, uma blusa térmica underwear branca, e coturnos militares. Havia uma jaqueta impermeável e estofada amarrada na minha cintura e uma mochila de viagem em minhas costas.
— Imagino que você vá encontrar aí tudo que precisa. Lanternas, isqueiro, saco de dormir, capa de chuva, duas mudas de roupas, tênis de caminhada, uma toalha limpa, uma manta, escova de dente, shampoo, condicionador, pente de cabelo, álcool gel, sabonete líquido, desodorante, protetor solar, repelente de insetos, papel higiênico, um rolo de saco plástico, lenços de papel, cantil, kit de primeiro socorros, canivete suíço, corda, bússola e uma máquina fotográfica. Eu também tomei a liberdade de colocar seu notebook e seus documentos aí dentro. Achei que você fosse precisar deles.
— Uau. Como você fez pra enfiar tudo isso aqui dentro? E como essa mochila ficou tão leve?
— Adivinhe.
Ele piscou pra mim, e eu concluí que não adiantava tentar entender. Se pingentes podiam se transformar em pranchas de windsurfe, minha mochila podia pesar menos de meio quilo.
— Deus das estradas e viagens?
— Exatamente.
— Justo. — Eu ajeitei as alças da mochila. Ela era realmente leve. — Bem, hum, obrigada, Hermes.
Fiquei pensando se devia cumprimentá-lo de alguma forma especial. Tipo, com um abraço, ou um beijo no rosto...
Eu não sabia quais eram as regras de demonstração de afeto entre deuses, mas... Nada podia ir errado com um abraço, certo? Quer dizer, John me abraçava quando eu era pequena...
Enfim.
Fui em frente e dei um abraço nele.
— Muito obrigada por tudo...
Houve um momento de silêncio e constrangimento. Mas então Hermes apertou seus braços ao meu redor também, e me segurou por um pouco.
— Não tem de quê, guria. — Ele disse.
Eu não costumava gostar muito de abraçar, ou de ser abraçada, mas não achei nenhum problema em abraçar Hermes.
Realmente foi como se nos conhecêssemos há séculos. Ou milênios. Sei lá.
— Lá está Charon. É melhor se apressar.
— Hm. Certo. Hum... Até mais.
A gente se desenrolou e eu fui andando em direção ao barco
Charon nem me reconheceu. Eu entreguei as dracmas a ele e o moço me deixou embarcar sem fazer perguntas.
E tudo estava indo muito bem, obrigada, até a coisa mais esquisita do mundo acontecer:
Um arco-íris apareceu. Assim, do nada. Sem sol, sem chuva ou coisa alguma. Ele simplesmente apareceu e ficou pairando lá, a um braço de distância do meu rosto, formando um círculo perfeito, não muito maior do que um bambolê.
— Você tem uma nova Mensagem de Íris. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação. — Uma gravação veio daquele círculo, ou, pelo menos, foi isso que pareceu pra mim. Era uma voz meio mística, assim, com uma entonação mágica ecoando ao som de cada palavra. Eu senti um arrepio eriçar os pelos da minha nuca, e, por um momento, achei que um anjo estivesse falando comigo.
Só que aí John apareceu.
Ali, bem no meio do arco-íris.
E não na forma como ele geralmente aparecia pra mim, – com aquela aparência mais velha e benigna, com a barba e o cabelo preto comprido – mas em sua forma divina, aquela com a qual John se apresentara a mim e que me causara uma impressão tão forte quando eu era pequena que eu jamais me esqueceria dela.
Então, outra coisa estranha aconteceu.
Eu tive a impressão de ouvir uma voz muito parecida com a de Píton dizendo: eu não accceitaria a ligaççção ssse fosssse vocccê.
Mas mal parei para escutar o que ela estava falando. Nem cheguei a me perguntar se aquela era a voz da minha consciência imitando uma cobra gigante ou apenas o dispositivo tatuado no meu braço funcionando espontaneamente.
Eu fiquei apenas olhando, atordoada. E talvez tenha dito um palavrão em voz alta, ou dois – algo que uma dama não deveria fazer na presença de outras pessoas, eu sei disso, mas, acredite, aquilo foi muito perturbador.
— O que você está fazendo aqui? — Perguntou John, com sua voz de alto-falante, bem grosseiramente, já com quatro pedras na mão.
Eu não costumava ter problemas em lidar com pessoas grosseiras, mas quando ele falou aquilo, daquele jeito... Nossa, eu fiquei fora de mim. Eu respondi, por mais louca que falar com a imagem flutuante de um cara divino no meio de um arco-íris todo errado me fizesse parecer.
— O que parece que eu estou fazendo? Estou indo embora. Ou você achou que eu fosse ficar sentada na lama esperando você aparecer pra me pegar?
— O que? — Evidentemente, meu tom de voz soara desrespeitoso aos ouvidos dele também, – e de Charon, que olhou pra mim como se eu fosse completamente pirada – porque, sei lá, eu era incorrigível assim. Mas John estava um tanto nervoso, ansioso, eu acho E, embora eu tivesse registrado essa informação, não dei muita atenção a ela naquele momento. — Do que você está falando? Eu perguntei o que você está fazendo aqui, no Submundo.
— Como assim? Você mandou que me trouxessem pra cá!
— Por que diabos eu faria isso? — Então, algo chamou sua atenção, algo do outro lado do seu arco-íris, imaginei, algo que o fez soltar um palavrão mais feio que o meu. — Charon!
— Senhor. — Respondeu Charon, calmamente, e a impressão que me deu foi que ele devia saber lidar direitinho com o temperamento de John. Provavelmente, porque já fazia isso havia bastante tempo.
— Não a deixe sair do barco. Eu vou buscá-la do outro lado do rio. Fique com ela até eu chegar. — Ele disse, então se virou pra mim e falou com a maior carranca: — Você. Não saia. Do barco.
Daí vocês já devem saber que eu ia tentar sair do barco.
John desapareceu, e seu arco-íris se dissipou na névoa.
Quando levantei os olhos, percebi Charon me olhando, inclinado pra mim de um jeito engraçado.
— Por que não me disse que você era você? — Perguntou, com um sorriso maroto, e eu fiquei piscando.
— Hm. — Sei lá. Porque eu sou sempre eu? Eu não me lembrava de ficar reafirmando isso o tempo todo. — A gente se conhece?
— Bom, aparentemente, estamos nos conhecendo de novo agora. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma pequena fortuna em moedas duradas, como as que eu tinha dado a ele – só que bem, bem mais. — Aqui está, isso é seu.
— Hm... Não, relaxa, não precisa devolver...
— Eu não estou devolvendo. Essa é sua parte.
— Minha parte do que? — Eu quis saber.
Charon suspirou, e, com a maior cara de tédio, começou a explicar, como se já tivesse me dito aquilo pelo menos um milhão de vezes.
— Nós somos sócios. Dividimos os lucros que vêm do Banco de Bens.
— Banco de Bens.
Eu me sentia meio idiota por fazer tantas perguntas consecutivas, então resolvi esperar pra ver se ele ia me dizer o que era aquilo.
Felizmente, ele disse.
— Banco de Bens é onde os mortais trocam seus bens por dracmas. Para que possam atravessar o rio.
— Certo. — Falei. Porque, sei lá, aquilo não estava me cheirando bem. — E no que consiste essa sociedade, exatamente?
— Em dividir os lucros que vêm do Banco. Você não ouviu o que eu acabei de dizer?
— Vou reformular minha pergunta: por que você e eu temos uma sociedade?
— Porque você criou o sistema, e eu o executo. Por que mais seria?
Ah, claro.
Por que mais seria?
— Eu criei um sistema para extorquir os mortos? — Falei, realmente chocada.
— Se quiser colocar dessa forma. Pessoalmente, eu gosto bem mais desse seu sistema. Antes de você chegar, a travessia era franca, mas então todos os mortais queriam carregar seus bens para o outro lado. Eu tinha que fazer dezenas de viagens para atravessar uma única família, e tudo isso pra quê? Para absolutamente nada! Não tem nada que esses pobres desgraçados possam fazer com suas posses no mundo dos mortos. No final, todos acabavam deixando que apodrecessem nos Campos de Asfódelos.
— Hm. — Isso não fez com que eu me sentisse melhor quanto a extorquir os mortos, no entanto. — Tá. Mas eu não vou querer a minha parte, não, obrigada.
Ele ficou me olhando.
— Tudo bem, eu deposito na sua conta.
Tipo...
— Tanto faz.
Eu me encolhi no cantinho da canoa e fiquei esperando.
Charon não falava muito, mas também não parecia ser do tipo que mente ou que não responde o que você pergunta – a não ser por chateação, talvez.
Então eu tentei colocar uma ou outra questão na mesa, tipo: não tinha problema Charon levar gente daquele lado para o outro lado do rio? Por que John, digo, Hades não queria que eu saísse do barco? Por que mortais se perdiam ao tentar atravessar sozinhos? E, só por curiosidade, hipoteticamente, uma pessoa normal se perderia se tentasse atravessar sozinha de um ponto do rio em que já estivesse vendo a outra margem?
Aparentemente, não, não havia nenhum problema em levar gente do Submundo pro outro lado do rio, contando que eles tivessem dracmas, algo que os mortos não conseguiriam lá dentro. Ele também me disse que John provavelmente não queria que eu saísse do barco porque a outra margem já era considerada território da Superfície.
Charon não sabia se alguém conseguiria atravessar de um ponto em que já fosse possível vê-la, mas achava que sim, porque o problema dos mortais, afinal, era só que eles enxergavam muito mal, de modo que a “névoa” sempre fizesse com que ficassem perdidos no meio do rio.
Foi bom saber de tudo isso, mesmo que não tenha servido de muita coisa naquele momento.
Quando tentei voar com a minha prancha do lugar de onde já dava pra ver a margem, John apareceu em terra firme, saindo de sei lá de onde, e me pegou no ar, como se eu fosse um frisbee, me derrubando da prancha nos seus braços.
— Eu tinha certeza de que você ia tentar alguma coisa assim. — Disse. Ele não estava rindo.
Mas estava tão lindo naquela forma divina que me fez perder todo o fôlego.
Uma “impressão forte” realmente não definia o que John provocou em mim bem ali. Eu fervi da cabeça aos pés antes que todo o meu sistema aferente estive sintonizado ao eferente para que eu pudesse elaborar uma resposta.
— Bom pra você.— Respondi, finalmente, empurrando os ombros dele numa tentativa de recuperar algum espaço pessoal de qualidade. — Você já pode me pôr no chão agora.
Mas, em vez disso, John vestiu sua carranca, e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas então voltou sua atenção para um casal de velhinhos olhando pra nós como se quisessem que a gente fosse procurar um motel.
— Estão olhando o que? — Inquiriu John. Eu não falei nada, estava ocupada demais ficando vermelha e brilhante como uma maça-do-amor, mas não achei legal ele ser tão grosso com os velhinhos. — Seus assuntos são com aquele homem bem ali — ele apontou Charon.
E saiu andando comigo no colo como se eu ainda tivesse nove anos, ou, sei lá, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Não, não, não, não, não! Cara, o que você tá fazendo? Me põe no chão! — Eu chiei baixinho.
Porque, sério, tinha uma galera olhando pra gente.
— Para você poder sair voando naquela sua coisa por aí? Não, obrigado.
— Eu não vou voar pra lugar nenhum! Isso é humilhante... Me deixa descer!
Ele parou. E olhou pra mim ofendidíssimo.
— Como isso é humilhante pra você?
— Constrangedor. Eu quis dizer constrangedor. Eu não gosto de ser carregada, me solta. Por favor.
John mirou minha pulseira com aquele olhar afiado e disse, um tanto contrariado:
— Se me deixar ficar com isso, eu solto você.
Eu tirei a pulseira sem nem pensar duas vezes.
— Mas você vai me devolver depois? — Perguntei todavia, antes de entregá-la a ele.
— Vou.
Então eu entreguei.
— Precisamos conversar. — Ele declarou.
E minha sobrancelha subiu com desconfiança.
— Você? Quer conversar? Comigo?
— Você não deve ter me ouvido direito.
— Você não disse que queria conversar?
— Eu disse que precisamos conversar, não que eu quero fazer isso.
Mais claro impossível.
Não tive dúvidas de que ele estivesse dizendo aquilo para me ofender.
E, se John ia ser um total babaca, ninguém podia me criticar por ser uma também.
— É. Acho que precisamos. Você vai me dizer quem é Nico di Angelo? Ah, não, espera, eu sei quem ele é. É seu filho. O que você mandou me derrubar nesse buraco. Você por acaso pensou nele quando teve a ideia de envolvê-lo nesse seu plano idiota? Hum? Faz alguma ideia do que Zeus costuma fazer com quem vai contra as ordens dele?
Eu imaginava que ele devesse saber.
E posso dizer que minhas acusações o deixaram bastante nervoso.
— Eu não...! — Ele começou a dizer. Mas fez uma pausa. Inspirou bem fundo. E continuou: — Não é sobre isso que precisamos conversar. Venha comigo.
— Não vou, não. Eu sei muito bem que, tecnicamente, nós já estamos na superfície, tá? Você vai tentar me levar de volta pro seu mundo, porque você não tem poder aqui.
— Você acha que eu não tenho poder aqui?
Eu achava.
Até ele fazer aquela cara insana de Anakin Skywalker – tipo, you underestimate my power.
— Sei lá. Mas eu prefiro conversar aqui, se pra você não faz diferença.
John bufou com impaciência e se voltou pra mim de todo, então eu tive certeza de uma coisa: nós íamos mesmo conversar.
— Hermes me disse que você aceitou a nova oferta de Zeus.
Hermes disse o que?
Eu levantei uma sobrancelha, pronta para tirar essa história a limpo, mas, então, aquela voz falou de novo comigo: ele não sssabe que vocccê pretende abrir mão da imortalidade, menina. Ssse esssse ainda for o sssseu plano, sssugiro que mantenha asss coisasss como essstão.
Eu me movi.
Tinha que ser Píton falando.
Ou isso, ou então eu era mesmo esquizofrênica.
— Você tem algum problema com isso? — Falei, meio incerta.
— É claro que eu tenho. — Ah, droga. — Você alguma vez viu seu pai dar uma missão fácil a alguém?
Não, que eu me lembrasse, não.
E, como ele ainda não tinha começado a gritar comigo por causa da coisa toda da imortalidade, supus que não devesse mesmo saber.
— O que? Você acha que ele vai tentar me sacanear, ou alguma coisa...?
— Não, eu não acho... — Ele ficou me olhando. Me perguntei se usar o termo “sacanagem” para se referir a uma sacaneada dos deuses também seria uma forma de desrespeito. — De qualquer forma. Zeus mede o nível de dificuldade de suas missões pelos próprios padrões. Ele não entende que, para você, não é tão fácil controlar seus poderes. Você é exatamente como um semideus nesse aspecto: mais cedo ou mais tarde, quando se sentir encurralada ou ameaçada, ou se seus amigos estiverem em perigo, você vai usá-los, e vai acabar desobedecendo a seu pai de novo. É sempre assim. Eu não acho que Zeus sequer tenha a consciência de que seja ele o responsável por colocar você na maioria das situações em que você pode escorregar com facilidade. E ainda mais agora que você não está tomando seus remédios...
HAhá!
— Então você estava me dopando! Pra eu ficar menos reativa... Foi por causa disso? Pra eu não poder usar “os meus poderes” pra ajudar meus amigos?
John enrijeceu, olhou pra mim meio sem jeito, e disse:
— Eu não preciso justificar o que eu faço para ninguém, Pierce. Muito menos pra você.
Quão feliz vocês acham que eu fiquei com isso?
— Ah, é? E por que não? Porque você é um deus? Ou porque você acha que eu sou sua esposa? Você pode não ter que me explicar nada, Hades, mas depois não fique reclamando se não conseguir ter uma conversa civilizada comigo nem por dois segundos.
Tipicamente, para fornecer um efeito dramático a minha declaração, dei-lhe as costas para ir embora.
E, tipicamente, John segurou meu braço e me puxou de volta.
— O.K. O que foi que eu fiz agora?
Ele estava asfixiantemente perto de novo.
Era difícil até pensar com ele assim tão perto...
Bem. Na verdade, não era tão difícil assim pensar em algumas coisas – coisas em que eu não deveria estar pensando naquele específico instante.
Céus.
— Se você não sabe, não sou eu que vou dizer. — Eu arisquei.
Porque não conseguia me lembrar de nada realmente, só isso.
— Deixe-me colocar de outra forma então: o que você acha que eu fiz agora?
Precisei pensar nisso por um tempo.
— Não é você que gerencia esse lugar? Por que tem uma fila gigantesca de espera para entrar no Pavilhão de Julgamento? E por que eles têm que esperar nos Campos de Asfódelos? Aquele lugar é uma imundice! Muitas daquelas pessoas não mereciam estar lá pra começo de conversa. E, mesmo para as que poderiam merecer, você é o responsável pelo bem estar de todas elas. Seu trabalho é governar os mortos ou não? Você devia atentar um pouquinho mais pra qualidade de... Vida após a morte... Deles.
Aquilo provavelmente foi a gota d’água.
John ficou vermelho do pescoço até as orelhas, pelo menos até onde eu podia ver – mas não de vergonha, como eu.
Ele ficou furioso, mesmo.
— É muito fácil falar. — Rosnou, de um jeito acusativo e ameaçador. Que não fez com que eu me sentisse realmente culpada ou ameaçada, mas enfim. — Você foi embora. E desde então eu tenho me desdobrado para tocar esse lugar sozinho. Parece uma tarefa simples? O que você acharia se eu fosse brincar de mortal, e você ficasse aqui para tomar conta de tudo? Eu nunca faria isso com você! A única coisa que eu peço é que fique longe daquele maldito lugar! Mas você me ouve? Não! E é só colocar os pés naquele acampamento pra começar a comoção! “Eles precisam de ajuda”, “como vocês podem dar missões assim a eles e esperar que façam sozinhos?”, “eles são apenas mortais”... Eles são semideuses, Perséfone, partir em missões perigosas é o que eles fazem! Eles não precisam tanto da sua ajuda quanto você pensa. Não dessa forma. Eu preciso. E quando foi a última vez que você tentou se dedicar a o que eu preciso que você faça? Eu nem me lembro de quando foi a última vez que você chegou aos dezoito anos, pelo amor dos deuses!
— Ei, — eu retruquei prontamente — em primeiro lugar, não me chame de Perséfone. Em segundo lugar, quem é o deus do Submundo aqui? Eu não tenho obrigação nenhuma de ajudar você no seu trabalho. Se alguma vez eu fiz isso, foi só porque eu sou legal, algo que eu não acho que você realmente mereça. E pode ir parando de bancar o senhor todo ocupadinho, que, se você tem tempo de ficar andando atrás dos meus amigos para mandá-los me espionar, você deve ter um montão de tempo sobrando.
— Se eu tenho tempo de fazer o que? — A voz de alto-falante dele subiu umas três oitavas, o que teria sido muito engraçado, se eu não estivesse totalmente P da vida.
— Você mandou Julian Keener me vigiar! Pra que, cara? Por quê? Se você queria saber onde eu estava, era só me ligar, ou perguntar pra minha mãe. Não precisava colocar o cara que eu gosto pra me...
Eu juro, eu não falei por mal.
E, se tivesse pensado um pouquinho antes de dizer aquilo, não teria dito.
Mas agora John já tinha ouvido. Agora ele sabia que eu gostava de Julian Keener...
E aquilo não podia ser bom...
— Eu disse ao garoto para me avisar se visse alguém do acampamento rondando a sua escola, não para espionar você.
Hum... Fiquei pensando.
John tinha acabado de ignorar o que eu disse sobre gostar de outro cara, ou simplesmente não tinha ouvido?
Difícil decidir.
De uma forma ou de outra, eu, mais uma vez, em vez de mudar o tópico e esquecer aquele assunto, resolvi insistir.
— É claro que disse. De que outra forma você sempre saberia onde me encontrar quando eu estivesse com problemas? — Ou quais garotos tinham me chamado pra sair, para que você pudesse botá-los pra correr? Pensei em dizer também, mas um resquício de bom-senso me alertou a não fazê-lo. — Se você não colocou Julian pra me espionar, colocou alguém.
— Eu não preciso que alguém me diga onde você está, Per... Pierce. — John respondeu.
E se arrependeu logo por ter dito isso.
Eu não pensei duas vezes antes de acusá-lo da primeira coisa que passou pela minha cabeça:
— Você colocou um rastreador em mim!
— Não seja ridícula, é claro que eu não...
Então...
O céu caiu sobre nossas cabeças.
Bem, não o céu, porque estávamos no subterrâneo, mas foi essa a impressão que deu. Num piscar de olhos, toda a estrutura acima de nós – calota, teto, abóboda, ou fosse lá o que fosse – desabou como uma chuva de meteoros em cima da gente.
Quando a coisa toda acabou, eu cheguei a me apalpar e dizer:
— Eu to viva?
Era uma questão difícil de responder.
Afinal, eu estava debaixo da terra, às margens do rio que faz fronteira com o Submundo, envolta pelos braços do deus da morte.
Então você entende a minha dúvida?
John estreitou-me protetoramente em seus braços, direcionando um olhar afiadíssimo a um ponto além do meu campo de visão.
Eu segui seu olhar.
Foi quando dei de cara com a última pessoa que esperaria ver.
— É ele! — Apontei. — O malucão do Central Park!
Só então Apógnos nos percebeu ali.
— Arrá. Parece que eu desci do lado certo dessa vez, então. — Ele disse, e olhou em volta, parecendo realmente satisfeito.
— Não. Continua do lado errado. — Respondeu John, de um jeito engraçado, – como estivesse se divertindo ou algum absurdo assim – e deu um passo forte no chão.
Apógnos foi jogado longe, pelo chão, eu acho, – só podia ter sido – e caiu bem no meio do rio.
— Wooow... — Eu disse. Porque aquilo foi realmente impressionante.
— Você tem que ir. — Disse John. Mas ele não me soltou, apenas estendeu a mão para os escombros que tinham caído do céu, e, de alguma forma, eles voltaram flutuando para preencher o buraco que Apógnos tinha aberto lá em cima.
— Concordo plenamente. Como eu saio daqui?
— Continue subindo o vale até entrar em um corredor. Ao final dele você vai encontrar um elevador. Dê isso à ascensorista — ele me entregou sua chave — e diga a ela aonde você quer ir.
— Okay. — Falei. E fiquei esperando que ele me soltasse. — Hum...
Em vez disso, John me apertou um pouco mais, e eu percebi que Apógnos estava de volta. De alguma maneira, ele parecia poder ficar de pé numa boa sobre a superfície da água.
O que seria um poder bem legal, se aquilo fosse mesmo água.
— Isso foi desnecessário. — Ele disse, bem na esportiva, e então fez aquela coisa de concentrar a escuridão numa grande bola em sua mão – mas, em vez de escuridão, ele usou a “água” do rio.
É claro que eu não sabia disso ainda, mas mais tarde Nico me diria que aquela água era composta basicamente de almas perdidas e angustiadas.
E Apógnos estava prestes a jogar aquilo na gente.
John proferiu uma maldição em grego antigo e me empurrou para longe.
Num segundo eu estava aterrissando em meu traseiro no chão sujo.
No segundo seguinte, quatro paredes se ergueram ao meu redor, e BOOM, eu estava dentro de um elevador.
— Não! Espera! John! — Eu me levantei. Tentei abrir as portas do elevador apertando o botão, e então tentei apertar todos os botões.
Mas não deu. Ele apenas chacoalhou um pouquinho e começou a subir tão rápido que eu voltei pro chão num instante.
Quando as portas voltaram a se abrir, abriram para o observatório do Empire State Building.
Aquilo foi tão surreal que eu fiquei no chão, apenas, olhando para porta aberta. Até um guardinha aparecer ali e começar a me dar o maior esporro.
Então eu me levantei e saí.
Eu me sentia aflita. John estava lá embaixo, e o malucão do Central Park estava lá também, fazendo suas bruxarias loucas e derrubando pedras em um monte de gente...
É claro que John podia lidar com ele... John era um deus. Chutar o traseiro daquele moleque ia ser moleza. Não havia a menor razão para me preocupar...
Ainda assim, lá estava eu, preocupada.
Eu passei quase uma hora subindo e descendo aquele prédio, parando em todos os andares, tentando – acredite ou não – voltar para o Submundo.
Quando finalmente desisti, subi até o terraço.
Annabeth tinha me dito que o Olimpo ficava no topo do Empire State. Eu não acreditei na hora, mas, se um elevador podia te levar até ali do Submundo, um elevador deveria poder te levar dali até o Olimpo, pela lógica.
Eu só não sabia como.
Então fui até o parapeito, encostei minha testa na grade de proteção e fiz uma pequena oração silenciosa:
Eu preciso falar com vocês, será que podem mandar alguém aqui embaixo?
E esperei.
Eu esperei por um bom tempo, e estava prestes a largar mão de tudo e entrar no primeiro avião para Los Angeles, quando uma senhorinha tocou meu braço.
— Pierce? — Ela disse muito surpresa. — Pierce, o que está fazendo aqui?
— Quem é você? — Perguntei de uma vez.
Eu tinha certeza de que ela ia dizer que era alguém que eu conhecia.
Mas jamais imaginaria que ela diria que era minha mãe.
Autor(a): ookamipuppy
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