Fanfic: - Deuses Vingadores - A GUERRA DOS DRONES | Tema: Série Original - Deuses Vingadores - de C.Antonholi
- DEUSES VINGADORES–
A GUERRA
DOS DRONES
C. Antonholi
Índice de Capítulos
PRÓLOGO
E os deuses resolveram despertar em pleno século XX. Morfeu descansava próximo à ilha de Tsushima quando um tsunami atingiu o Japão. Poseidon levantou-se na forma de redemoinho das profundezas daquelas águas oceânicas e logo avançou sobre Morfeu. Precisava cobrar o resgate da relíquia prometido pelo sobrinho para amenizar a dor de Anfitrite. A paciente e tolerante esposa sofria há tempos com a rebeldia dos mortais que insistiam em derramar os dejetos de seus cargueiros e subtrair recursos para atrair riquezas.
Poseidon almejava o derradeiro pedaço de tecido que restara dos lençóis mágicos de Morfeu. Seus descendentes só conseguiam dormir com estes lençóis e Anfitrite queria descansar sob um deles. Acreditava que o simples contato com o tecido a faria recuperar suas forças.
Morfeu recebera a notícia de que um bando de trabalhadores ingleses em visita às ilhas gregas havia encontrado a relíquia e levado com eles. Mas não tinha o paradeiro exato do objeto. Disse a Poseidon que ia encontrar e prometeu entregar o pedaço de tecido antes que resolvesse entrar novamente em fúria e desta vez inundar os continentes como no tempo da Pangeia há mais ou menos quinhentos e quarenta milhões de anos. Naquela época sua fúria fez com que deslocasse o subsolo oceânico de basalto para vencer ao lado do soberano irmão Zeus a luta travada contra os Titãs e os Gigantes que resultou na morte de Polibotes ao ser atravessado pelo pedaço de falésia arrancado por Poseidon da ilha de Cós. Houve, na ocasião, a formação dos continentes como são conhecidos nos dias de hoje. Porém, toda vez que Poseidon fica irritado, promete entrar em fúria e inundar para sempre parte destes continentes com as lágrimas de Anfitrite. Assim, acabaria com parte dos humanos e firmaria a apatia que tem com aqueles que o aborrecem e também à esposa, paulatinamente, com sua falsa sensação de poder. Assim que o acordo foi feito, a forma de Poseidon fundiu-se às águas e ele desapareceu. Morfeu revelou então as enormes asas de borboleta que escondia nas costas e deu, após sentir-se atordoado, sete voltas em torno de Gaia antes de fixar-se novamente em outro lugar do globo.
Foi a primeira história que ouvi de meu pai quando ele foi convidado a dar uma palestra sobre Mitologia Grega para os alunos do curso de Artes da universidade. Como ele, passei a ficar bastante interessada pelo assunto desde então.
I
Dizem, quando não conseguimos dormir é porque estamos acordados no sonho de alguém. Comigo sempre foi assim: Chorava sem parar por madrugadas a fio quando era um bebê e interrompia o sono de meus pais. Com o passar dos anos, ainda criança, perambulava pela casa e aprontava as mais inesperadas traquinices que alguém poderia imaginar. Pelo menos foi o que meus pais disseram há um tempo, um dia antes de eu completar meus quinze anos de idade, em uma tarde de chuva forte enquanto comíamos bolo de cenoura com cobertura de chocolate na casa de meus avós maternos.
Na noite anterior tinha conseguido dormir, mas por volta das três horas da manhã acordei assustada após um pesadelo e não consegui mais descansar.
Um gigante nos perseguia. Eu estava descendo a serra em um Jeep Willys 1963 amarelo. Estavam comigo minha amiga Sara e Bernardo, seu namorado, que nos conduzia ao volante. Apesar de o carro não desenvolver uma velocidade muito alta, o gigante não conseguia nos alcançar. Estava a pé, mas corria em uma velocidade invejável para qualquer humano comum. Entre sessenta e oitenta quilômetros por hora. Desistiu quando chegamos ao topo da serra e começamos a descer. Enquanto descíamos, em alguns pontos entre as montanhas, conseguíamos enxerga-lo. Ele continuava no mesmo lugar, inerte, apenas nos observando. O perdemos de vista por uns vinte minutos, quando ao pé da serra ao olharmos para o alto, percebemos que não estava mais ali. Para a nossa surpresa, lá do outro lado da montanha ele descia por um abismo, pendurado em tecidos, como se fossem lençóis enormes amarrados um ao outro. Provavelmente não havia desistido de nós e antes de chegarmos perto do mar ele certamente nos alcançaria. Não sabíamos o porquê de aquele gigante estar atrás de nós, mas tínhamos certeza de que éramos sua caça. Foi quando acordei. O pesadelo era recorrente e costumava contar o enredo para todas as pessoas que encontrava durante o dia seguinte. Algumas riam, outras queriam atribuir algum significado àquelas experiências.
Meu pai era professor universitário, especialista em meteorologia e precisou mudar com a família para a pequena e antiga vila ferroviária inglesa que ficava situada no topo da serra. De lá dava para ver o mar. Era uma visão fantástica e as condições climáticas variavam com bastante frequência naquele local, isso o tornava ideal para montar uma estação meteorológica. Foi o que fez meu pai para concluir suas pesquisas. A vila havia sido criada para servir de residência aos funcionários de uma companhia ferroviária inglesa que transportava cargas e passageiros para o interior do estado e para o porto. Há tempos estava desativada e ficava distante da capital, mas o trem de passageiros, mais moderno que o daquela época, ainda chegava lá e possibilitava que meu pai partisse para a universidade três vezes por semana e ministrasse suas aulas. A estação era a última de muitas que o trem cortava. Saía da capital e passava por várias cidades antes de chegar à vila.
Tinha ainda cinco anos de idade quando chegamos, mas lembro como se fosse ontem. Viemos no trem. Desembarcamos na plataforma. Meu pai com duas malas, uma em cada mão, um chapéu na cabeça e terno marrom, e minha mãe com vestido longo e bolsa no ombro esquerdo segurava meu irmão no colo. Eu ajudava a levar uma sacola com objetos leves. Parecia que estávamos no cenário de um filme antigo. Subimos a rua de paralelepípedo até chegar à casa onde íamos morar. Era uma casa de madeira coberta com folhas de zinco geminada a outra igual. A vila era composta por estas casas, todas muito semelhantes. As casas com maior número de cômodos, como a nossa, serviam antes para abrigar os ferroviários que possuíam mulheres e filhos. Os que não moravam com a família, ficavam em casas menores. Antes de chegarmos, passamos pelo antigo mercado que depois de muito tempo desativado servia às atrações culturais do local. Os ferroviários que ainda moravam ali eram poucos. Alguns aposentados com suas respectivas famílias, também filhos e netos daqueles que trabalharam ali em outros tempos e já haviam falecido ou ido embora, que por alguma razão resolveram ficar. A atividade principal da vila passou a ser o comércio e o turismo aos finais de semana depois que a São Paulo Railway foi desativada.
II
Ríamos, eu e Sara, enquanto tomávamos café expresso no shopping. Ela falava das coisas que aprontava com Bernardo antes de engatarem o namoro. Fez um gesto brusco com as mãos e tombou a xícara sobre a mesa. Peguei o papel toalha imediatamente e comecei a ajudar na limpeza quando começou a correria. Não sabíamos o que estava acontecendo, mas começamos a correr também. Segurei na mão de Sara e corremos de mãos dadas até a saída mais próxima. Havia um aglomerado de gente querendo sair, mas a porta estava travada. Olhei para a livraria que estava a nossa direita e pude observar um mezanino e uma escada de madeira por onde várias pessoas desciam desesperadas. Em seguida, vi também muita fumaça naquela área. Disse para Sara:
-Precisamos sair daqui imediatamente.
Sara concordou com a cabeça e corremos na direção contrária. Entramos em um corredor. Estávamos apenas nós duas quando levamos um susto. Um bombeiro com roupa ante chamas segurava um extintor e apareceu do nada na nossa frente:
-Por aqui, não! Voltem!Voltem! – gritou.
Voltamos a correr, desta vez na direção da escada rolante. Haviam algumas pessoas e a escada funcionava normalmente. Mas não havíamos chegado ao piso superior quando ela parou de funcionar. Continuamos a subida e percebemos que a fumaça já ocupava boa parte do local onde estávamos. Chegamos ao estacionamento e tivemos a certeza que se tratava de um incêndio de grandes proporções. Vimos o fogo destruir alguns automóveis e mais pessoas desesperadas. Tentamos voltar, mas não conseguimos. Havia muita gente impedindo a passagem e a cortina de fumaça ficava cada vez mais densa. A fumaça era escura, porém uma nuvem branca começou a surgir. Começou a tomar forma. Primeiro, a forma de uma mão bem grande que nos envolveu rapidamente. E desfez-se. Depois formou um busto com a cabeça de um homem rústico de traços fortes, como os heróis da era antiga. Ele nos olhava ameaçador. Sara me abraçou aterrorizada, quando o homem esboçava a primeira palavra que expressaria sua ira, e acordou. Ligou-me imediatamente para contar o pesadelo. Eu tomava um chá de camomila na esperança de que o sono pudesse chegar logo. Passava das duas horas e na manhã seguinte eu teria uma prova importante na escola.
Mesmo após a ligação de Sara eu não consegui dormir. Fiquei pensando na ligação que tinha aquele meu pesadelo recorrente desde a infância e o de Sara. Bernardo também já havia tido pesadelos com gigantes. Eu sempre estava presente no sono dos meus amigos quando ele aparecia. Havia alguma mensagem implícita ou, embora eu não acreditasse nestas coisas, alguma entidade tentava comunicar comigo por meio dos sonhos.
Mesmo não conseguindo dormir, fui bem na prova. Na saída da escola, Sara me acompanhou até a estação do trem. Conversamos sobre o assunto e decidimos anotar os sonhos para tentar descobrir se havia algum mistério a desvendar por trás dos acontecimentos.
Bernardo encostou o carro na entrada da estação e Sara entrou.
No caminho Bernardo parou no sinal vermelho e desviou a atenção de Sara para algo que acontecia no céu. O azul era tomado por caminhos de nuvens vermelhas que aos poucos começaram a aglomerar até formar um redemoinho rubro no céu. No horizonte, avistaram muita fumaça. O sinal ficou verde e Bernardo acelerou. A curiosidade fez com que os jovens desviassem do caminho original. Deu tempo de Sara contar sobre a conversa que teve comigo. Quando chegaram, perceberam o shopping center em chamas. Os carros dos bombeiros chegaram junto. Os homens desceram e prepararam com muita rapidez os equipamentos para combater o fogo. Bernardo olhou para Sara e ambos ficaram dentro do carro congelados na mesma posição por alguns minutos. Pelo menos foi assim que Sara narrou para mim. Depois, Bernardo abriu a porta e desceu. Deu uns cinco passos na calçada e ficou observando o incêndio. Sara ligou o rádio para ficar informada sobre os detalhes. As nuvens vermelhas dissipavam sobre o shopping. Pareciam ser sugadas pelo prédio. Bernardo voltou ao carro e comentou o último pesadelo que teve. Sentia como estivesse em um dejavú. Ali na calçada via o shopping em chamas enquanto o gigante abraçava o prédio como se quisesse destruí-lo.
Bernardo e Sara ouviram pelo rádio que a situação, apesar de tensa no shopping, estava praticamente controlada. Bernardo deu partida no Jeep e enquanto levava Sara para casa, conversava com ela sobre o assunto, tentava descobrir que tipo de mensagem havia por trás de tantas coincidências. E o que significava a figura do gigante nos pesadelos? Quem ele representava? Não chegaram a nenhuma conclusão.
Já no trem ouvi algumas pessoas que comentavam sobre o incêndio no shopping. Meu estômago gelou na hora.
Estava sentada e dois homens que voltavam do trabalho, ainda com os uniformes da empresa metalúrgica, disseram que havia poucas vítimas, a maioria intoxicadas pela fumaça. Olhei pela janela e tinha começado a chover. Pensei que a natureza nunca tinha sido tão pontual como naquele momento. Certamente ajudou no trabalho de rescaldo. Mas o que não saía da minha cabeça era a coincidência com o pesadelo de Sara. Lembrei que o gigante era decorrente em meus pesadelos e aquele pesadelo em que descíamos a serra e erámos perseguidos por ele nunca havia atravessado para as fronteiras da realidade. Havia sido o primeiro pesadelo de Sara com ele e foi premonitório. Precisávamos nos reunir e conversar mais sobre o assunto.
A chuva parou. A neblina intensa indicava que o trem já estava perto da vila. Não via nada pela janela além do branco. O fog, assim os ingleses chamavam a névoa intensa daquela região, não permitia que víssemos um palmo a frente. O vagão estava vazio. Ali eram apenas eu, o som dos trilhos e o frio.
III
Algum tempo depois de partirem da capital, o Jeep que trazia Sara e Bernardo chegou ao final da estrada de mão dupla asfaltada. Bernardo foi obrigado a estacionar o carro ali mesmo em frente ao cemitério. Teriam que descer a pé, pois eu morava na parte baixa da vila. Sara ainda não tinha visto um cemitério tão pequeno, com tão poucos túmulos e convidou o namorado a entrar com ela. Bernardo aceitou. Sara gostava de observar nas lápides o ano de nascimento e o de falecimento do defunto. Perceberam que alguns túmulos eram bem antigos e que a maioria estava abandonado também. Dois ou três eram bem cuidados e um deles tinha até flores colocadas ali recentemente, provavelmente ainda naquela semana. Sara olhou para a entrada e percebeu que uma senhora bem velha, por volta dos setenta e cinco anos, com lenço amarrado na cabeça entrava. Segurava uma vassoura de palha e uma pá de latão. Ela passou pelo portão e foi na direção do casal.
-Vocês não são daqui, não é mesmo?
Sara olhou para Bernardo e respondeu:
-Não. Viemos da capital para visitar uma amiga.
-Logo percebi. – disse a velha – a primeira coisa que os forasteiros fazem quando chegam é visitar nosso sementério.
-Cemitério. – corrigiu Bernardo.
-É sementério mesmo. – insistiu. – Ouvi que quando a gente morre, vira semente. Então é sementério. – e riu quase sem força.
Bernardo e Sara acharam graça e também riram com a velha senhora que se virou e começou a limpar alguns túmulos.
O casal voltou a observar com curiosidade as poucas histórias que haviam terminado ali. Depois, despediram-se da velha e saíram.
Começaram então a descer pelo paralelepípedo que cobria as vielas estreitas da vila. Pararam para pedir referências a um bêbado que usava óculos escuros redondos, tinha um lenço amarrado em torno do crânio, usava um colete de couro bem ao estilo hippie e cantava Mercedes Benz da Janis Joplin com uma felicidade difícil de encontrar. Conhecia meu pai, então conseguiu indicar aos meus amigos o endereço que ficava do outro lado da passarela após cruzar os trilhos. Assim Bernardo e Sara conseguiram chegar até minha casa. Levaria os dois até a casa de uma esotérica conhecida por ‘cigana’ para investigarmos se o que estava acontecendo entre nós era algum sinal ou nos traria algum risco.
Entramos na casa da cigana e logo de cara senti um frio percorrer a espinha. Não por causa do ambiente místico que ela apresentava, mas porque ele estava lá: Moreno, forte e aqueles olhos claros puxados da mãe. A tatuagem de dragão que coloria o braço direito chamou minha atenção. Victor olhou-me e sorriu. -É nova. - disse. Retribui o sorriso e baixei os olhos. Fiquei cabisbaixa por uns dois minutos. Minha timidez sempre impedia a minha aproximação com os garotos. E o Victor foi especial desde o início. Estudávamos juntos, mas nunca tínhamos nos falado. Ele estava no oitavo ano e eu no quinto. Em um dia frio, era intervalo das aulas e duas garotas começaram a brigar por causa de um trabalho escolar. Começou um empurra-empurra e eu fui parar dentro de um latão de lixo. O Victor foi o único garoto que me ajudou a levantar e perguntou se eu estava bem. Limpou minha blusa com as próprias mãos e depois que a diretora liberou, acompanhou-me até minha casa. Um gentleman. Foi paixão à primeira vista.
Fazia tempo que não o via. E ele estava ali, com a Harley Davidson que ganhou do pai no último aniversário, quando completou dezoito anos.
Durante o dia, fazia entregas para uma empresa que servia comida oriental - delivery. À noite ia para a faculdade de engenharia e aos finais de semana saia com um grupo de motoqueiros, os “Corvos do Asfalto”, pelas estradas do interior.
A cigana apareceu com o dinheiro para pagar a entrega. Já estava com um wok plástico cheio de yakisoba e os hashis na outra mão prontos para entrar em ação.
Após receber o dinheiro, Victor me entregou um cartão com seu telefone e me beijou no rosto antes de ir embora.
Enquanto a cigana comia, contávamos à ela todas as histórias. As reais e originadas nos pesadelos. E fiquei tão perdida meio a tantas narrativas que em nenhum momento pensei em me apresentar. Talvez porque não goste muito do meu nome. Não que seja um nome feio, mas porque acho diferente e nunca tive a curiosidade de perguntar para os meus pais porque colocaram este nome em mim. De onde ele veio? Mas, por educação, apresentei a mim e a meus amigos.
-Desculpe! Meu nome é Audri. E estes são Sara e Bernardo.
-Bem. – começou a cigana depois de colocar o wok vazio e os hashis manchados de shoyu sobre uma mesinha de centro para acender um incenso de jasmim – Primeiro quero esclarecer que, apesar de ser conhecida como “cigana”, eu não sou exatamente uma cigana. Minha origem é bem diferente. Sou apenas uma pessoa bastante interessada nos estudos do misticismo, esoterismo e ocultismo. Meu trabalho não tem uma denominação correta, talvez por isso me chamam de cigana. Meu nome é Carmem. Podem me chamar assim caso tenham alguma dúvida de como dirigir-se a mim. Quanto aos pesadelos, eles me parecem premonitórios, como haviam dito. O que intriga é a constante presença deste “gigante”, como denominam.
-A senhora acha que pode ser um anjo ou uma entidade maligna? – arrisquei.
-É certamente uma entidade. Mas não é possível dizer por hora se é do bem ou do mal. Provavelmente quer ajuda ou retornou de outro mundo para fazer uma cobrança, quem sabe. Pode até ser algo de outras vidas.
-Outras vidas? – estranhou Sara.
-Isso mesmo. Vocês não acreditam em reencarnação? Não creem que somos produto de vidas passadas?
-Mais ou menos. – apenas o cético do Bernardo que respondeu. Eu balancei a cabeça timidamente para cima e para baixo no intuito de dizer que acreditava em vidas passadas. Sara ficou com os olhos arregalados e nada respondeu.
-Mas precisamos investigar. – continuou a cigana. – O que eu recomendo neste momento é que tentem dominar seus sonhos, ou pesadelos caso prefiram assim. Tentem falar com este gigante. Quem sabe a resposta aparece.
-Mas será difícil aproximar e conversar com ele. O cara mete medo. – disse Bernardo.
Sara riu comigo. Carmem também não segurou. Logo, Bernardo percebeu o que havia dito e estávamos todos extasiados em gargalhadas.
-Mas é verdade, Carmem. O gigante mete medo. – confirmei após retomar o fôlego.
-Não devem temer. Tudo não passa de uma viagem que a alma faz e nada há de acontecer caso tentem aproximar. Basta ter coragem. Caso haja alguma novidade, peço que retornem.
-Pode deixar. – disse enquanto levantávamos.
IV
Os preparativos para a formatura do colégio estavam avançados. Pensei em convidar o Victor para dançar a valsa comigo, mas fiquei com receio que ele recusasse. Era apaixonada por ele, porém tinha o sentimento de que ele não correspondia. Ele já estava na faculdade, conhecia outras garotas e tinha outros compromissos.
Revelei meu desejo à Sara e ela me incentivou a convidá-lo.
-O que custa tentar? O não você já tem, Audri. Basta buscar um sim. – havia me convencido com poucas palavras. Aliás, era sempre assim. Quando surgia uma dúvida Sara era a primeira a ser consultada e a primeira a me convencer. Na verdade, eu sempre tinha uma resposta. Precisava apenas da cumplicidade dela.
Foi o que fiz. Parti para buscar um sim. Peguei o cartão no meio da agenda e liguei. Victor atendeu e quando me identifiquei pareceu contente. Expliquei que havia ficado feliz em reencontrá-lo e fiz o convite. Ele aceitou na hora. Disse que seria uma ótima oportunidade para rever alguns amigos do colégio. Mas tudo dependia da data que ainda não estava confirmada. Estava em busca de estágio e tudo ia depender de como as coisas aconteceriam dali para frente. Compreendi e prometi ligar assim que tivesse uma confirmação da comissão de formatura.
Sara parecia mais feliz que eu com a notícia.
Paramos para ler os anúncios do mural no pátio do colégio:
‘VENDO UMA GUITARRA COR DE ROSA’
‘AULAS PARTICULARES DE LÍNGUA PORTUGUESA’
‘INGRESSOS PARA O ROCK IN RIO’
Mas o que mais nos chamou a atenção não foi nenhum anúncio. Foi o trecho de um poema anônimo que alguém resolveu pregar com o percevejo no tecido verde:
‘Desci ao porão dos sonhos
e acordei muitos monstros adormecidos
Depois corri escada acima
e cheguei ao sótão
: os Deuses aconselharam voltar
Não me permitiram descobrir
o lado enigmático da vida.’
Olhei para Sara e ela balançou a cabeça.
Bernardo apareceu por trás e nos assustou.
-Morfeu!
Ficamos sem entender.
-Vamos! No caminho eu explico. – disse.
Peguei uma carona até a Biblioteca Municipal. Precisava realizar algumas pesquisas para o trabalho do último bimestre.
Já estávamos no Jeep amarelo quando cobrei:
-O que você quis dizer com aquilo, Bernardo?
-Ainda bem que lembrou, Audri. É sobre os pesadelos.
-Você disse ‘Morfeu’?–lembrou Sara.
-Sim. – Bernardo confirmou – O ‘gigante’ que nos assombra nos pesadelos é Morfeu.
Lembrei das histórias da mitologia grega que meu pai contava.
-Morfeu é um Deus da mitologia grega. Filho do sono e da noite. Encarregado de produzir o sonho nos homens.
-Exatamente. – concordou Bernardo. Eu continuei:
-Era representado com asas de borboleta. Segurava nas mãos um punhado de papoulas.
-Faz sentido. – foi a vez de Sara concordar.
-Meu pai conta várias histórias. Ele costuma dizer que os deuses da mitologia grega estão entre nós e que voltaram para vingar-se dos humanos. Segundo ele é o que justifica, em nossa era, os desastres naturais e da confusão mental do homem moderno.
-Eu não acredito nisso. A mitologia não passa de um simbolismo. – Sara insistiu. E continuou – Como uma entidade simbólica vai invadir os nossos sonhos e participar de nossas vidas?
-Existem muitas maneiras, Sara. Já ouviu falar em inconsciente coletivo? – desafiou o namorado.
- Claro que ouvi falar. Isso sim explicaria os pesadelos premonitórios que tivemos.
- Sara tem razão. – concordei parcialmente – Mas na primeira história que ouvi meu pai contar, Morfeu precisava resgatar uma relíquia subtraída pelos ingleses no início do século passado. Pode ser que o nosso inconsciente coletivo queira nos alertar para algo de alguma importância.
-Ou não. – Sara voltou a renegar toda aquela história.
Bernardo estacionou na frente da Biblioteca. Desci do carro.
-Continuamos a conversa amanhã, então. – disse – Até breve! – e me despedi.
V
-A tempestade desestabilizou o anemômetro. Talvez precise subir lá na estação para consertá-lo no final de semana. – disse papai enquanto minha mãe servia um pedaço de bolo de chocolate e uma xícara com chá de hortelã.
-Mas você não ia para o Congresso em Goiânia? – ela perguntou.
-Foi adiado. Sábado vou dar uma palestra na universidade, mas Domingo bem cedo subirei na estação. Minhas pesquisas e o repasse de dados para os meus alunos não podem ser interrompidos.
Entrei e deixei o fichário d escola sobre a poltrona. Beijei-lhes o rosto e sentei à mesa para o café da tarde. Já passava das quatro e meia da tarde.
-Por que está chegando mais tarde hoje, minha filha? – ele perguntou.
-Passei na biblioteca. E por causa do tempo, o intervalo entre os trens hoje é de cinquenta minutos ou mais.
-Um rapaz esteve procurando por você. – disse mamãe.
-Disse quem era e o que queria?
-Era um rapaz alto, tatuado com uma moto.
-Victor.
-Disse que voltaria mais tarde. – serviu-me o chá e sentou-se também.
Enquanto comíamos e bebíamos, a tempestade voltou. Papai levava uma fatia do bolo à boca e parou ao ouvir o primeiro raio. Foi um estrondo terrível. Papai olhou bem em nossos olhos e continuou a comer. Júnior entrou na cozinha.
-Mamãe, estou com medo.
Mamãe virou-se para ele e estendeu os braços.
-Não precisa ter medo. É só uma tempestade de verão. – disse enquanto trazia o caçula para sentar em seu colo.
Alguém bateu na porta. Levantei para abrir. A chuva caía com força. Parecia que derramavam a água com baldes lá do céu. Quando abri a porta não vi ninguém. Logo Victor apareceu, todo molhado.
-Menina difícil, você.
Fiquei sem jeito e o convidei para entrar. Mamãe foi até o quarto e logo apareceu com uma toalha e entregou para que ele se enxugasse. Ofereceu também roupas do papai:
-Se quiser, posso emprestar umas roupas do Smith.
-Não precisa incomodar-se. Minha roupa é feita de um tecido especial que logo estará seco. Mesmo assim, obrigado. – agradeceu Victor e devolveu a toalha.
-Quer um pedaço de bolo? – ofereci.
-Acho que vou aceitar. O cheiro está ótimo.
Preferiu o café ao chá. Quando terminamos ele disse a que veio:
-Deu tudo certo. Eu aceito o seu convite.
No início fiquei sem entender o que ele queria dizer, mas logo as sinapses me alertaram.
-Que bom! Fico feliz de verdade.
-Consegui um estágio e já falei com o diretor da empresa. Ele disse que era para eu ficar sossegado que quando chegasse o dia ele me liberaria se necessário.
-A comissão de formatura ainda não confirmou a data.
Assim que terminei de falar, ouvi o barulho de um carro. Olhei pela janela e eram Bernardo e Sara. Estranhei. Por que não disseram que viriam para a vila? Eu adiaria a ida à biblioteca para a segunda-feira e pegava uma carona. Levantei para abrir a porta. A chuva já havia parado.
-Só não esquece a cabeça porque está colada no pescoço. – disparou Sara ao descer do carro.
Bernardo desceu e riu. Tirou do bolso o meu celular e balançou no alto. Coloquei a mão na cabeça. Não havia dado falta do aparelho ainda.
-Bom que proporcionou uma pequena viagem ao casal. – emendou minha mãe.
Sara e Bernardo entraram. Ao ver Victor, Sara me olhou diferente como se dissesse: - “Vejam como as coisas caminham com rapidez por aqui!”
-Agora sua mãe vai ter que deixar você sair conosco na noite desta linda sexta-feira de lua cheia. – disparou Bernardo – E o seu amigo não vai recusar o convite para nos acompanhar – emendou referindo-se a Victor.
Jamais meus pais deixariam. Eu tinha apenas dezesseis anos e eles diziam que eu só frequentaria as baladas noturnas quando completasse dezoito. Meu pai que havia saído para a varanda logo entrou.
-Não senhor, Bernardo! Não levarão minha pequena para lugar algum. – disse, amistoso.
-Calma, senhor Smith! Foi só uma brincadeira. –justificou Bernardo.
Meu pai aproveitou a mão de obra disponível ali naquele momento e rebateu:
-Mas eu tenho outro convite a fazer. Preciso subir até a estação para consertar o anemômetro. Gostaria que me ajudassem, se possível.
Minha mãe mostrou preocupação:
-Mas com este tempo maluco, Joel?
-Parece que não vai mais chover. –meu pai entendia bem dessas coisas de tempo.
-E também já passa das cinco. Logo vai escurecer.
-Vai demorar um pouco para escurecer. Estamos no horário de verão. – insistiu – Em menos de uma hora estaremos de volta.
Quando Joel Smith colocava uma ideia na cabeça era difícil alguém removê-la.
-Eu subi uma vez até a estação meteorológica. A vista lá do alto é muito bacana. A trilha que leva até lá, então, é maravilhosa. – disse Victor que já estava empolgado.
Sara olhou pela janela e percebeu que o sol havia resolvido aparecer novamente. Estava tímido ainda, mas parecia que ia despontar de vez para dar adeus àquele dia.
-Eu vou com vocês. Sempre quis ver o pôr do sol lá do alto. –disse.
-Não, Sara. Melhor ficar aqui. É uma tarefa para meninos. – repreendeu Bernardo.
-Machista! –disparou Sara.
Eu também resolvi acompanhar o grupo. Não podia perder a oportunidade de estreitar a relação com Victor. Só ficaram em casa Júnior e mamãe.
Papai pegou a caixa de ferramentas e saímos. Seguimos na direção oeste da vila, onde ficava a subida para a estação. Quando chegamos ao fim da estrada de terra, entramos pela trilha à direita. Fomos brindados pelas aves com uma sinfonia entoada pelas mais de duzentas espécies do lugar. A vegetação do caminho ainda estava molhada, mas o sol já brilhava com a intensidade daquele fim de tarde. Foram quase quarenta minutos até chegarmos à estação.
Sara ficou encantada com o sol no horizonte e sacou o celular para registrar em uma fotografia.
Papai percebeu que havia um galho fino de árvore enroscado na vara do aparelho, o que o impedia de funcionar. Subiu pela escada de ferro e tirou o empecilho dali. Bastou para que o aparelho voltasse a girar.
Sara e Bernardo estavam abraçados observando o pôr-do-sol.
-A última vez que passei por esta trilha com o pessoal do ‘Corvos do Asfalto’, cruzamos com uma suçuarana. Desligamos os motores e esperamos ela passar. Ficamos todos gelados, mas o bicho foi embora. Nem deu bola para aquele bando de caras esquisitos. – disse Victor.
Eu ri. Sara pareceu ter medo e encolheu-se para mais perto de Bernardo. Meu pai desceu e pegou a caixa de ferramentas que nem chegou a usar.
-Vamos! – disse. - Temos que descer antes que escureça.
Sara e Bernardo que estavam sentados em uma rocha, levantaram.
Nem deu tempo de darmos os primeiros passos e o fog nos surpreendeu. Era uma névoa tão intensa que naqueles anos todos em que eu morava ali nunca tinha visto. Tudo virou um branco só. Mal podia enxergar meus companheiros. A vila que podia ser observada lá de cima, também desapareceu.
-Vamos esperar! Logo passa! Aí descemos... –falou papai em voz alta.
Mas não vimos quando a neblina foi embora. Um estrondo do alto e uma forte luz, não sei se eram trovões e raios, nos jogou contra o chão. Éramos naquele momento apenas cinco corpos inconscientes sobre a montanha.
Capítulo
Na estrada asfaltada de mão dupla desafiava os drones com a Harley em uma corrida iniciada ainda na saída da cidade de Rio Grande. Acelerava para testar o poder dos pequenos objetos voadores que sobrevoavam sua cabeça. Agradecia a cada minuto por tratar dos drones espiões da companhia, e não do exército de drones e seus “soldados” comandados pela ARES que geralmente atacavam com sua artilharia pesada capaz de derrubar não apenas um, mas cem “Corvos do Asfalto” de uma só vez. Não havia revelado alguns segredos para mim ainda, mas o momento havia chegado.
Finalmente chegou à vila, estacionou a motocicleta frente ao cemitério e entrou. Os drones desapareceram. Ficou curioso com o tamanho do cemitério. Era pequeno. Não havia ali mais de cem túmulos. Apesar de ter morado na vila, nunca tinha entrado lá, já que a maioria das pessoas de sua família vivia na capital. A vila era pequena e distante da cidade e os moradores eram basicamente os funcionários da ferrovia e seus familiares. Então, o tamanho do cemitério era ideal para aquele lugar.
Quando o avistei segui em sua direção. Por coincidência eu estava ali. Visitava a lápide de um tio falecido recentemente. Nos abraçamos e ficamos uns três minutos sem trocar uma palavra.
-Como conseguiu chegar? – perguntei
-Não foi tarefa fácil, mas precisava encontrar com você. – ele disse.
-E seu chefe sabe que está aqui?
-Provavelmente. Os drones espiões me perseguiram.
-Drones? –estranhei o nome, embora soubesse do que se tratava. O projeto era uma novidade ainda naquele momento.
-É. Aqueles pequenos objetos voadores não tripulados acabaram de vez com a nossa privacidade. Mas eles são necessários. Se não desenvolvermos logo o projeto, os “soldados” de Ares acabarão com a humanidade. E é para falar sobre este assunto que estou aqui.
-Como assim? –perguntei ainda sem entender.
-Eu desenvolvi o projeto dos VANTs - veículos aéreos não tripulados – na companhia para fins pacíficos. No início eu queria reforçar a segurança nas cidades, apenas. Fiz uns protótipos acoplados de câmeras leves, bem parecidos com estes que comercializamos hoje e que o boss usa para sondar nossas vidas. Acontece que fiz também um projeto de VANTs com capacidade de artilharia a fim de vendê-lo para o exército. O governo precisa deste equipamento para vigiar as fronteiras. E o que aconteceu? O computador da companhia foi invadido pelos hackers da ARES que roubaram o projeto. O pior: conseguiram montar um protótipo ainda mais poderoso e a produção em escala já começou. Na semana passada atacaram a embaixada dos Estados Unidos para facilitar o sequestro do embaixador. Não conseguiram, mas também não descarto novas tentativas. O próximo alvo somos nós.
-O que a ARES pode querer de nós, Victor?
-De você nada, talvez. Mas de mim querem o conhecimento. Sabem do meu aprofundamento no estudo e que levamos a sério o desenvolvimento da tecnologia na companhia e estamos anos luz à frente deles.
Quando terminou de explicar uma névoa densa saiu de trás do morro e invadiu o cemitério.
-Nossa! O fog apareceu cedo hoje. – estranhei. Vamos sair e descer para a vila? – fiz o convite sem imaginar o que nos esperava.
Descemos pelas ruas de paralelepípedo com o motor da Harley desligado e após atravessarmos a ponte, minha mãe veio ao nosso encontro. Parecia aflita.
-Ainda bem que encontrei vocês. – disse.
-Aconteceu alguma coisa? –perguntei
-Seu pai. Não apareceu na universidade hoje. Até agora não voltou. Recebi um telefonema do reitor. Um dos alunos relatou o momento em que viu um homem de meia idade que vestia roupas escuras e um chapéu tweed preto jogar seu pai dentro de um KV8 cinza escuro na saída da estação do metrô.
Victor fitou-me surpreso. Dei de ombros. Precisávamos esperar para checar as informações.
-E o que vamos fazer? – perguntei.
-Esperar, filha. O tal aluno está na delegacia para prestar depoimento. Seu primo, o Antony, foi para lá também.
-Meu Deus, Victor! Será que... – associei o fato ao que havíamos acabado de conversar, mas não terminei de falar. Não queria deixar minha mãe ainda mais preocupada.
Senhor Jin, o dono do fast-food de comida oriental para quem Victor trabalhava antes de conseguir o estágio apareceu em sua velha Towner. Pedimos que levasse minha mãe de volta para casa. Victor e eu seguimos também para lá com a motocicleta.
A névoa estava intensa e percebi quando as luzes de freio da Towner foram acionadas. Victor parou a Harley e esperou que eu descesse.
-Não vai entrar? – perguntei.
-Não. Vou retornar à capital. Assim que tiver qualquer novidade eu comunico pelo WOU.
O WOU era um aplicativo dos superphones que permitia a comunicação em tempo real por som e imagem.
-Tudo bem. Há de não ser nada grave.
-É o que espero. – Victor expôs seu real desejo naquele momento.
Saiu com a motocicleta e antes mesmo de desejar ‘boa sorte’ já havia desaparecido na névoa. Quando pegou a estrada o fog dissipou gradativamente a cada quilometro. Em quarenta e cinco minutos estava perto de São Paulo. Parou em um posto de combustíveis para reabastecer a Harley já no trecho urbano da rodovia Anchieta. O frentista quis puxar conversa:
-O dia está quente hoje. Mas vi na internet que o tempo vai mudar. Até o final da semana pode até nevar.
-Neve em São Paulo? – Victor riu.
O frentista não gostou do tom jocoso e rebateu.
-Onde você estava quando nevou pela primeira vez no inverno passado?
-Estava em São José dos Campos. No ITA.
-Pois é. Foi apenas um prenúncio.
-Mas estamos na primavera. – quis testar o conhecimento do frentista.
-Eu sei. Mas não existe estação certa, a não ser de trem ou metrô, há muito tempo no planeta Terra. E depois que começaram a usar aqueles brinquedos voadores...
-Os drones. – interrompeu.
-Isso. Depois que começaram a usar para distribuir os agrotóxicos pelas plantações, parece que tudo piorou. Eu li que algumas empresas começaram a despejar veneno nas nuvens para acelerar a chuva tóxica e aumentar a produção. Depois disso, meu amigo, podemos rezar ou aguardar pelo apocalipse. – já não havia coerência em seu discurso, mas Victor entendeu o que queria dizer. Os drones que ele havia ajudado a desenvolver começavam a ser o assunto principal nas mídias. O que aquele homem simples sabia não era dez por cento do que realmente estava acontecendo. Victor fingiu então incredulidade e o convenceu.
Tanque cheio. Costurou o trânsito na Juntas Provisórias sem ultrapassar o limite de velocidade. Em poucos minutos estava na sede da Companhia nos Campos Elíseos.
O Sr. Capovilla –ao vê-lo chegar – levantou-se e foi em sua direção. As duas extremidades do bigode pareciam mais eriçadas que o normal.
-O que foi fazer lá do outro lado do mundo, rapaz? –perguntou com certa dose de exagero - Pedi que fosse ao Ipiranga buscar o relatório e quando liguei o monitor vi que estava perto da serra. Está pensando o que? – disparou.
Victor ficou sem reação.
-O relatório está aqui. Disse ao senhor antes de sair que precisava resolver uns problemas.
-Mas tão longe?
-Desculpe.
-Se não fosse pelo seu talento e pela sua inteligência, cancelava a efetivação. – virou-se – E a promoção instantânea também.
-Promoção? – perguntou no impulso do espanto.
-É rapaz. Pro-mo-ção. Precisamos crescer. Ou vendemos o projeto ao governo ou falimos. Preciso de mão-de-obra qualificada. E você é o único capaz de assumir o departamento tecnológico no momento. Não vejo outro nome no mercado.
-Mas eu sou apenas um estudante. – Victor retrucou temendo que o chefe voltasse atrás.
Parou na sua frente e fitou-lhe os olhos, decidido, apontou o indicador e quase o tocou em seu nariz:
- Esqueça isso! – pensou que Sr.Capovilla tivesse recobrado o juízo – Não subestime sua inteligência! Foi você que trouxe os primeiros protótipos dos VANTs para a minha mesa. Crescemos em menos de dez meses o que não cresceríamos em dez anos não fosse a implantação do seu projeto. E quer me convencer de que não está apto a assumir um departamento da empresa?
-Não foi isso que eu quis dizer. Mas sim, senhor. A resposta é sim. Eu aceito o cargo.
-Ótimo. – esboçou um sorriso e logo recuou os lábios. Então sua primeira missão será acoplar alguns kits de armamento em nossos drones.
Victor ficou mudo. Não queria desapontar o chefe naquele momento. Porém não foi possível.
-Desculpe, senhor. Mas lembra que uma das condições para que eu desenvolvesse a tecnologia dos drones era que eles fossem usados como instrumentos para promover a paz? Acoplamos as câmeras e demos autonomia suficiente para que eles varressem todo o território nacional para promover a segurança dos cidadãos contra o tráfico de drogas e outros crimes. Agora o senhor me pede para acoplar armas? Vai contra tudo o que conversamos até hoje.
-Eu sei disso, garoto. Mas a ARES tem o seu projeto em mãos. Os hackers da organização o roubaram em tempo real, enquanto você criava, lembra? E eles o adaptaram para promover o crime. Sabemos que os objetivos da ARES não são nada pacíficos. A organização está espalhada pelo mundo. Já agiram no sequestro do embaixador dos E.U.A. em ação conjunta com a Al Qaeda, já causaram pânico no metrô de Paris quando resolveram perseguir aquele ativista em missão de paz na crise entre a Nova União Europeia com os dissidentes do Mercosul e até no atentado ao Papa no Vaticano tiveram participação. O Ministro da Defesa pediu e se não ganharmos este mercado, certamente os cabeças da ARES arrumarão um jeito de vender o peixe para os governos de todo o mundo para ampliar os fundos e ganhar ainda mais poder.
E você sabe muito bem o que isso significa, não sabe?
-Acho que sei. Não queria pensar nisso agora, mas creio que seja inevitável.
-É, meu caro. – deu dois tapinhas no ombro direito de Victor e voltou para sua mesa.
-E então? Quando começamos?
-Eu pretendo pensar sobre o assunto antes de assumir esta responsabilidade.
-Mal recebeu o cargo e já quer recuar? Eu compreendo seu receio. Mas pense bem, garoto! A paz mundial está em suas mãos. Vou dispensá-lo para que reflita e na segunda-feira quero uma resposta.
Saiu da sala do Sr. Capovilla e voltei para casa. Até esqueceu o desaparecimento de meu pai. A última frase proferida pelo chefe pesou bastante na sua consciência e por isso Victor não conseguiu dormir naquela noite.
Capítulo
Eu estava amarrada e amordaçada a bordo de um F-22 Raptor que fazia manobras arriscadas pelo céu sobre o oceano para fugir das rajadas do “inimigo”, que desta vez eram os caças do exército brasileiro.
Estava em pânico com as piruetas do caça sequestrado por agentes de uma organização criminosa e só acordei quando a máquina estava prestes a chocar-se com o mar.
O WOU piscava na tela de meu superphone freneticamente. Não passava das seis horas quando finalmente sua imagem apareceu no meu visor:
-Desculpe. Acho que acordei você. – ele disse.
-Não, Victor. Você salvou a minha vida.
-Como assim? – quis saber.
-Estava em um pesadelo aéreo. – respondi.
-Não consegui pregar os olhos.
-Algum problema?
-Muitos. E você? Teve alguma notícia de seu pai?
-Ainda não. A polícia está investigando. Precisei de alguns comprimidos para conseguir dormir esta noite. Desmaiei.
-Podemos nos encontrar?
-Claro. – respondi. – Vou entrar no trem das sete. Pode me esperar na estação da Luz?
-Ótima idéia. Estarei lá às oito horas. Espero você na entrada do Museu da Língua Portuguesa.
-Fechado. – aceitei.
Colocou o superphone no bolso da calça jeans e saiu com a Harley. Parou em uma padaria perto da estação Júlio Prestes e pediu um misto quente. O balconista perguntou se não queria um copo de café com leite. Resolveu pedir um suco de laranja com gelo e açúcar. Vitamina C para começar bem aquele longo dia. Havia cancelado o encontro com os Corvos do Asfalto: passeio pela Rodovia Bandeirantes e Anhanguera até Descalvado. Tinha muita coisa para resolver.
Cheguei com dez minutos de atraso por causa da pane de um trem na ferrovia.
-Desculpe. – beijei Victor no rosto.
-O chefe não mencionou nada a respeito do desaparecimento de seu pai. Provavelmente não soube de nenhum movimento suspeito da ARES. Tenho certeza que estão envolvidos ativamente neste caso.
-Como assim. O que eles querem?
-Seu pai, Audri, sabe tudo de meteorologia e de mitologia grega.
-E daí?
-E daí que é tudo o que eles querem. Unir o útil ao agradável. Tenho certeza. Querem usar os conhecimentos tecnológicos na construção de poderosos VANTs e saber mais sobre os oneiros e sobre Morfeu. Enquanto os membros da ARES colocam os homens para dormir, eles dominam o mundo.
-Nossa! Como pode uma organização ser tão poderosa? E por que colocam confiança tão grandiosa nos conhecimentos de meu pai? Não creio que eles o tenham raptado.
Victor ficou em silêncio por alguns segundos e respondeu com calma às minhas inquietações:
-Audri – passou a mão em meus cabelos antes de continuar – ouça! Primeiro: Seu pai tem um tipo de conhecimento raro nos dias de hoje. Assuntos que já foram esquecidos e outros que ele tenta suscitar de extrema relevância para a era em que vivemos. Segundo: A ARES é uma organização que age há muito tempo, porém só agora tomamos conhecimento de sua existência. Não sabemos quem são seus membros e nem como e quando agem. A única coisa que os investigadores da ONU e de outras organizações sabem é o que a ARES quer. E o que ela quer, se resume em uma só palavra: Poder. Não sei se quer dominar o mundo nem se é deste mundo. Sei apenas que o nosso planeta corre perigo.
-Assim você me deixa com medo, Victor.
Quando mostrei minha vulnerabilidade Victor me abraçou. Senti um conforto muito grande. Sabia que no momento não cabia o desespero pelo desaparecimento de meu pai nem pelos planos terríveis da ARES. Precisava manter a serenidade para que meus pensamentos ficassem cada vez mais claros, para que nenhuma nuvem me impedisse de enxergar algo que estivesse na minha frente. Parecia que Victor sabia mais do que eu imaginava e isso fazia com que o admirasse mais. Aquele abraço me dava forças para que eu pudesse também minha mãe e meu irmão quando precisassem.
Victor chegou cedo e jogou a pasta com os projetos em cima da mesa. Vida o esperava. Ela tinha os cabelos bem negros, como as penas de uma graúna e usava roupas e maquiagem escuras. Na boca um brilho rosado e molhado dava o tom de sensualidade que chamava a atenção dos homens.
-Chegou mais cedo hoje? – interpelou antes que ele sentasse.
-Como vê. Preciso adiantar os projetos.
- Perfume bom o seu.
-Ganhei de minha mãe no Natal. Importado.
Victor não percebia, mas as abordagens de Vida tinham sempre a intenção de seduzir.
-Passei pelo Graal no Domingo. Você estava lá com aquela turma de barbudos. Fiquei observando seu lanche de longe. A roupa de couro me fez perceber que os exercícios na academia têm rendido bastante.
-Quase não tenho tempo para treinar. – já havia começado a fazer os cálculos quando respondeu. As interrupções no trabalho deixavam Victor irritado. Se Vida falasse mais alguma coisa era capaz de pedir que ela o deixasse trabalhar. Certamente faria isso com tom de moderação, pois era muito educado. Mas Vida levantou e foi até a sala de descanso pegar uma xícara com café. Depois voltou e viu que havia um mundo de clientes que a chamavam pelo chat de atendimento. Teria que responder um a um para atender às metas da companhia. Foi assim até o final do expediente.
Na mesa do Freez conversavam Victor, Sr. Capovilla e mais dois outros colegas de trabalho da área de projetos quando Vida chegou para participar do happy hour. Com ela estavam duas amigas da faculdade: Anna e Mia. Sentaram com os colegas e pediram uma garrafa de vinho enquanto os homens apreciavam um choop bem gelado.
Capovilla e Victor explicavam parte do projeto para os outros dois. Anna e Mia contavam para Vida como havia sido a noitada do último final de semana com o professor de geologia. Vida não prestava muita atenção na história das garotas.
Final.
Há meses eu não tinha pesadelos. Sara e Bernardo também não haviam relatado nenhum tipo de sonho nos últimos encontros.
-Este vestido ficou maravilhoso! – disse minha mãe, admirada.
Meu pai, sentado na cadeira de balanço perto da varanda e ainda com uma faixa enrolada na cabeça, sorriu:
-Você ainda vai me dar muito trabalho, menina.
Eu estava feliz com o vestido alugado em uma loja perto da estação da Luz. Era um azul royal muito vistoso, com um caimento perfeito para o meu corpo de quase mulher. Estava certa de que faria sucesso na festa de formatura. Já havia detalhado com garatujas no caderno da escola para as colegas de classe e elas vibravam a cada traço. Sara ajudou a escolher.
Agora podemos dizer que somos realmente muito amigas, quase irmãs. Estivemos juntas em momentos felizes e momentos tensos. Apenas Carmem podia desvendar uma ligação como a nossa. Enquanto estávamos internadas, preferiu ficar no mesmo quarto em que eu estava. Papai ficou com Bernardo em outro quarto enquanto Victor se recuperava na Unidade de Tratamento Intensivo. Depois Victor foi fazer companhia para eles. Devem ter contado histórias absurdas um ao outro. Serviu para selarem a amizade e que esta perpetue por toda a nossa caminhada. Estou agradecida pela sobrevivência de todos e pela serenidade de mamãe. Também pelo apoio de Júnior. Se não fosse pelo meu irmão, minha mãe talvez não tivesse aguentado tantos dias de angústia.
Autor(a): cantonholi
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