Fanfics Brasil - 32 Uma Escola de Charme - Adaptada Vondy

Fanfic: Uma Escola de Charme - Adaptada Vondy | Tema: Vondy


Capítulo: 32

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Capitulo IX – Caçador de Intrigas


Posso ver que a Dama tem um temperamento dominador, ao passo que o meu é o de não me deixar dominar.

Jane Welsh Carlyle
(1845)

- Há algo que eu possa fazer por vocês? - perguntou Dulce no dia seguinte, entreabrindo a porta que dava para a cabine de Ale. Deu um passo atrás enquanto o forte odor acre que impregnava o lugar a atingia. Alexandra e Fayette estavam deitadas em suas camas, imóveis, os olhos perdidos no vazio, os rostos muito pálidos.

Sem esperar por uma resposta, ela apanhou o avental pendurado num gancho na parede e começou a trabalhar. Durante os últimos anos da vida de Elizabeth, assumira a incumbência de cuidar dela, e a experiência de se importar com outro ser humano fora gratificante. De bom grado, abraçou a tarefa.

Esvaziou os vasos que ficavam debaixo das camas e arejou as cobertas. Munindo-se de bacia, água e pedaços de tecido, banhou as mulheres da melhor maneira possível, ajudou-as a vestirem camisolas limpas e recolheu as usadas para lavá-las. Trabalhou com vontade, grata por ter o que fazer. Se ficasse desocupada por meros minutos iria explodir de raiva por causa de Christopher Uckermann. Ao menos, a atividade permitia-lhe extravasar parte da inquietação que a dominava.

Segurando a cesta de roupas e lençóis à sua frente, encaminhou-se ao refeitório. O doutor observou-a entrando.

- Olá, senhorita, em que posso ajudá-la?

- Eu gostaria de uma tina de água quente e uma barra de sabão para lavar isto, por favor.

O cozinheiro ficou pensativo por um momento e, então, meneou a cabeça.

- Vou pôr uma chaleira no fogo, mas é água do mar. Não usamos a água potável para lavar roupas.

- Entendo.

Pouco depois, Dulce estava ajoelhada diante da tina no convés principal, as mangas do vestido arregaçadas enquanto esfregava vigorosamente as peças. Nunca havia lavado roupa em sua vida, e a tarefa mostrou-se mais árdua do que parecera. A água ficava transbordando até seu colo. Espirrou-a no rosto, e os olhos ardiam por causa do sabão. Como de costume, o cabelo ficava preso no alto da cabeça, e, além dos grossos cachos da frente, longas mechas se soltavam, afundando na água da tina. Quando terminou, estava quase tão molhada quanto as roupas.

Ainda assim, para sua surpresa, não ficou preocupada com a aparência. Em Boston, alguém sempre estivera corrigindo sua postura, ajeitando seu cabelo, arrumando as pregas de seu vestido. Os homens do Cisne Prata não pareciam se importar nem um pouco com o que vestia ou com o aspecto de seu cabelo. Embora fosse dama e não devesse se sentir de tal maneira, achou bastante agradável desfrutar atitude tão pouco convencional.

Christopher aproximou-se pelo convés, vestindo um traje formal, pois naquele dia haviam mantido contato com uma fragata britânica. Ele insistia que um capitão devia parecer próspero para ser considerado um mercador de valor. Dulce desconfiava que simplesmente gostava de se vestir daquela maneira porque era vaidoso.

De qualquer modo, ganhara o dia, negociara algodão de Ipswich por lã de Glasgow e obtivera um excelente lucro. Para a exasperante hilaridade dos homens, ele dissera que a ofereceria aos britânicos de graça.

Ela o estudou furtivamente, aquele homem que parecia determinado a fazê-la arrepender-se da viagem. Uma gravata de seda branca adornava-lhe o pescoço em contraste com o azul intenso do casaco curto. A calça de vinco impecável estava metida em botas lustrosas.

Era um crime, pensou Dulce, ressentida. Sim, era um crime que um homem parecesse tão extraordinário no meio do oceano. Apenas Christopher podia usar cores tão vibrantes e fazê-las parecer totalmente adequadas. Que egocêntrico e vaidoso era, ostentando aquela aparência perfeita, enquanto ela estava tão encharcada.

Ele permaneceu observando-a até que Dulce não pôde mais conter a exasperação.

- Não tem nada melhor a fazer? Talvez alguém tenha um relógio de bolso, alguns livros, ou outros objetos que precisem ser atirados ao mar.

Christopher riu. Enfureceu-a que o homem tivesse um riso tio charmoso. Gostaria que a risada soasse tão irritante quanto ele realmente era.

- Estou intrigado, Srta. Savinon. Esse não é o vestido de algodão de Fayette?

- É. Ela e sua mãe ainda estão indispostas. Decidi cuidar das duas.

- Por quê?

- Para ter com que me ocupar e esquecer a vontade de esganar você - retrucou Dulce por entre os dentes, esfregando as roupas ainda mais vigorosamente.

- Ainda está zangada por causa dos óculos? Ótimo. Pense a respeito na próxima vez que decidir relatar meus erros a bordo do navio.

- Você não deveria ter atirado meus óculos ao mar.

Por nada no mundo, Dulce admitiria que não sentia nem um pouco a falta deles. Usá-los fora um grande incômodo. Nunca haviam servido adequadamente. Na verdade, só haviam atrapalhado. Sempre tivera que encontrar um meio de espiar por cima ou por baixo das lentes. Sem eles, podia enxergar muito melhor.

Um fato que se recusava a informar ao exasperante capitão.

- Há uma coisa que deve aprender a meu respeito, Srta. Savinon. Sou um homem impulsivo. Quase nunca penso antes de agir.

- Uma qualidade impressionante, tenho certeza. - Dulce nem sequer sabia como lhe explicar como a atitude dele fora ofensiva. Quer tivessem servido ou não, os óculos tinham-lhe pertencido. Tinham sido algo pessoal, talvez uma parte tão inerente de si quanto os cabelos e olhos castanho-esverdeados. Sentia-se nua sem eles. Os óculos haviam sido como um símbolo de sua identidade, e Christopher lhe tirara aquilo.

Uma voz indesejável em seu íntimo disse-lhe que costumara se esconder atrás dos óculos. Tratou de reprimi-la. Não cabia a Christopher tirá-la de seu esconderijo.

Ela torceu as peças de roupa e colocou-as de lado no chão do convés. Apanhando a tina, encaminhou-se na direção da amurada para esvaziá-la. O peso da tina desequilibrou-a e, mal havia dado alguns passos, inclinou-se acidentalmente para frente. A tina virou de repente, a água usada vertendo numa pequena enxurrada que encharcou Christopher Uckermann da cabeça aos pés.

Os cabelos negros, rebeldes e ligeiramente aparados. A gravata de seda alva. O casaco curto azul. A calça impecável e as botas reluzentes.

Dulce deu um passo atrás, arregalando os olhos em aturdimento. Então, foi tomada por um gratificante senso de justiça.

- Escapou - disse.

Esperou vê-lo reagindo com verdadeira fúria, mas ele a surpreendeu. Em vez de ficar irado, inclinou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada.

Que maneira peculiar de lidar com uma situação humilhante, pensou Dulce, intrigada. Estudou-lhe o rosto bronzeado, por onde escorriam gotas de água, os cabelos, os dentes alvos e os cintilantes olhos verdes, como esmeralda. Era admirável que não tivesse hesitado em rir de si mesmo.

Touché, Srta. Savinoon. Touché.

- O prazer foi meu, absolutamente. - declarou ela. Sentiu uma vontade inexplicável de rir dele. Mas, com determinação, manteve a expressão inalterada, os lábios apertados numa linha severa.

Observou-o afastando-se pelo convés, assobiando, a água ainda escorrendo-lhe das botas. Os marujos que estavam de serviço no convés também observaram, acotovelando-se uns aos outros e sussurrando entre si.

O pai a avisara de que a viagem num navio seria sinônimo de dias de tédio. Pela primeira vez na vida, seu pai estivera errado.


Numa certa manhã, ao nascer do sol, depois do revezamento dos homens no convés, Christopher caminhava ao longo da amurada a estibordo quando deparou com Luigi agachado no convés com Dulce.

Apesar de viver numa cabine apertada com o mínimo de comodidades, ela se atinha à moda rigorosa de usar um sisudo vestido cinza ou preto, um chapéu e aquele tolo penteado. Por sua vez, o vento, bem mais persistente do que a teimosia de Dulce, soprava-lhe o chapéu da cabeça e soltava-lhe os cabelos, fazendo-os esvoaçar ao sol, até que a exposição produzia reflexos dourados nos fios.

Entre Luigi e Dulce achavam-se pequenos amontoados de cordas, algumas atadas e exemplificando nós de marinheiro.

- Este é o chamado nó direito - explicou o italiano que confeccionava as velas, fazendo uma demonstração.

Em seguida, foi a vez de Dulce tentar, ficando radiante quando conseguiu.

- E estes aqui? - perguntou ela.

- Bem, temos o nó de porco, o torto, o de escota singela. Estes outros dois aqui, que são o lais de guia e o chamado volta de fateixa são um pouco mais complicados. Mas, um a um, tenho certeza de você poderá aprender a correta intercalação dos cordões dos cabos, se desejar.

Admirado com o interesse de sua passageira, Christopher aproximou-se.

- Uma lição sobre nós de marinheiro?

Luigi sorriu, torcendo o bigode.

- A dama aprende fácil.

Vendo-a levantar-se, Christopher foi movido por um de seus famosos impulsos e estendeu-lhe o braço.

- Eu estava prestes a verificar as coordenadas matinais e achei que gostaria de se juntar a mim.

Disse a si mesmo que a convidara como uma pequena recompensa. Dulce estivera desempenhando a exaustiva tarefa de cuidar de sua mãe e Fayette. Merecia um pouco de atenção.

Ela o observou com ar desconfiado. Nos dias anteriores, haviam estudado um ao outro com cauteloso interesse. Christopher nunca conseguia ter certeza do que ela faria em seguida, aquela filha da elite de Boston a quem tivera que receber a bordo para cuidar das traduções. Enquanto a tripulação se adequava ao ritmo previsível de vida a bordo, houvera uma diferença sutil, indefinível nos marujos.

Desconhecendo as convenções e formalidades sociais, aqueles homens rústicos, aqueles filhos de Netuno, simplesmente aceitaram-na. Christopher esperara que se comportassem de maneira diferente na presença dela, que mantivessem seu distanciamento, mas, em vez daquilo, pareciam ter decidido iniciá-la no estilo de vida simples deles.

Num dia, Dulce poderia estar sentada numa caixa de madeira com Luigi, remendando velas com uma grande agulha curvada. No dia seguinte, poderia ser encontrada rindo enquanto Gerald Craven, o contramestre, ensinava-a a tocar uma música num acordeão português. Na cozinha, ela mostrava ao Doutor como fazer algumas sobremesas. Certa vez, Christopher saíra da cabine de navegação e a encontrara segurando a mão de Chips em seu colo. Ficara imediatamente aborrecido, mas só até que se dera conta de que ela estivera tirando uma farpa da mão do carpinteiro. Dulce os tornara seus amigos. Aquela jovem e determinada mulher de Beacon Hill, proveniente de um lugar de ostentação onde as pessoas não deixariam um garoto como Timothy nem sequer engraxar suas botas, havia subitamente adquirido um papel diferente a bordo do Cisne Prata.

Ela queria saber a respeito do impressionante conjunto de tatuagens de Gerald e o que cada uma significava. Perguntava-lhe sobre os filhos também, sabendo que haviam contraído sarampo um pouco antes do Cisne ter partido. Conversava animadamente com Chips, em geral um homem reticente que se contentava com seu trabalho com a madeira.

O Doutor a deixava secar as meias em sua cozinha, um privilégio que não concedia nem mesmo ao capitão. E até mesmo William Click, o soturno segundo imediato, parecera satisfeito em sentar-se ao lado dela numa noite no convés, fumando seu cachimbo e ouvindo enquanto Dulce lia de um dos muitos livros que levara.

- Como estão minha mãe e Fayette hoje? - perguntou Christopher, enquanto ambos se encaminhavam à sala de navegação.

- A melhora foi pequena, receio eu. Consegui fazer com que comessem um pouco de canja de galinha, mas ainda estão relutantes em deixar a cama.

- Para algumas pessoas, o enjoo só passa quando voltam a pisar em terra firme - comentou ele e, então, estudou-a, notando a maneira como as longas mechas haviam se soltado dos grampos nos cabelos. - Você não fica enjoada com o balanço do navio. Qual é o seu segredo, Srta. Savinon?

- Aprendi a ser bastante cuidadosa com o que como.

Christopher estreitou os olhos, observando-a. As maçãs do rosto dela estavam menos arredondadas? Notava-lhe sombras escuras sob os olhos?

- Você acabará adoecendo de fraqueza. Definhará.

Dulce soltou um riso suave; parecia rir mais prontamente no mar do que em terra.

- Eu diria que estou muito longe de enfrentar tal calamidade, capitão. Na verdade, estou me achando bem mais saudável a bordo deste navio. Não espirrei mais desde que partimos de Boston.

Era verdade, percebeu Christopher, surpreso. Os olhos lacrimejantes, o nariz avermelhado, os espirros sucessivos, não vira mais nada daquilo desde que haviam zarpado.

Ralph estava na proa e virou-se para saudá-los quando se aproximaram.

- Acho que podemos levantar a âncora, capitão - disse. - O mar se acalmou bastante desde ontem à noite.

- Baixamos âncora? - indagou Dulce de cenho franzido.

- Não. Trata-se apenas de uma âncora auxiliar - explicou Izard. - Usamos uma âncora desse tipo, que chamamos de flutuante, atirando-a por sobre a amurada para mantermos a proa na direção do mar. Eu estava prestes a recolhê-la.

- Eu poderia fazer isso? - perguntou ela, o rosto se iluminando.

Izard lançou um olhar a Christopher, que deu de ombros.

- Tome cuidado com os dedos. Não iríamos querer que ficassem presos nos cabos.

O Sr. Izard fez-lhe uma demonstração de como acionar a manivela do guincho de âncora para começar a recolhê-la. Arregaçando as mangas do vestido, Dulce seguiu as instruções, passando a movimentar o aparato.

Lentamente, a corda espessa e molhada começou a emergir da água.

- Mantenha-a estável agora, e a corda se enrolará toda em torno de si mesma - instruiu Izard. - Quer que eu lhe dê uma mão?

- Não é necessário - assegurou Dulce, o esforço que fazia evidenciando-se na voz. - Posso fazer isto sozinha. - Era uma figura estranha de marujo enquanto se incumbia da tarefa, as saias fartas e as botas representando certamente um estorvo. Uma grande onda elevou a proa.

- Tenha cuidado - disse Christopher. - Chips andou erguendo algumas das tábuas do chão para reparos e...

- Ah! - O salto da bota dela prendeu-se num vão entre as tábuas um tanto soltas. O que se deu em seguida aconteceu tão depressa que Christopher não teve chance de impedir. Dulce desequilibrou-se e soltou a manivela.

O cabo girou violentamente no guincho de âncora, enrolando os cabelos soltos dela junto. Um segundo depois, Dulce estava quase totalmente deitada de bruços no chão, presa por boa parte dos cabelos longos ao guincho, o rosto muito pálido. 

- Srta. Savinon! - Chirstopher colocou-se rapidamente de joelhos. - Está machucada?

- Não, mas a corda está puxando meu cabelo. Poderia me soltar?

- É claro que deve estar machucada - retrucou ele, fazendo algumas tentativas de soltá-la. - Você foi arrastada pelos cabelos, pare de tentar bancar a valente e admita que está doendo a valer.

Dulce mordeu o lábio inferior.

- Sim, está doendo.

A cada vez que Christopher tentava acionar o guincho com a ajuda de Izard, o movimento puxava ainda mais os cabelos dela. Frustrado, mandou chamar Dino, que o atendeu prontamente.

- Bom trabalho, garota - disse ele, de fato impressionado. - Até hoje não tínhamos visto ninguém ficar preso no guincho de âncora.

- Eu gostaria de me levantar - disse Dulce, o semblante contraído.

Os membros da tripulação que se achavam no convés aproximaram-se para ver qual era o problema, incluindo Luigi e Chips. Willian chegou um pouco depois, e todos se reuniram em tomo do guincho de âncora para observar a mulher com os longos cabelos enrolados junto com a corda grossa.

As faces de Dulce ficaram vermelhas.

- Se não se importam, eu gostaria mesmo de me levantar daqui - disse outra vez.

- Têm alguma ideia? - perguntou Christopher aos homens.

- Poderíamos cortar a corda.

- É tão grossa quanto o braço de um homem. Isso levaria o dia todo. Sem mencionar que não seria nada bom destruirmos o guincho de âncora.

- E se desmontássemos a parte lateral do guincho e soltássemos o cabelo e a corda passando-os por ali?

- Acabei de consertar esse guincho - objetou Chips. - Levei meio dia. O homem que tocá-lo terá que se ver comigo.

- Desenrole ao contrário.

- Já tentei. O movimento puxa o cabelo do mesmo modo. Ela acabaria perdendo o escalpo inteiro.

Christopher e Dino entreolharam-se, o olhar do amigo baixando para a faca afiada que o capitão usava no cinto. Tiveram a mesma ideia.

- Srta. Savinon. - Christopher apoiou-se num joelho. - Feche os olhos. 

- O que, afinal, você vai fazer? - A voz dela elevou-se, tremendo com desconfiança.

- Tirar você dessa enrascada. Agora, feche os olhos.

Dulce sabia que estava desobedecendo uma ordem direta, mas não se importava. Os homens começaram a murmurar entre si, o que a fez abrir os olhos.

E foi bem a tempo de ver Christopher Uckerman desembainhando uma faca de lâmina afiada. Soltou um grito apavorado, recuando tanto quanto o cabelo preso lhe permitia, o couro cabeludo doendo muito. A lâmina reluziu sob o sol e, então, baixou em sua direção abruptamente. Esperou para ver um jorro de sangue, mas, em vez daquilo, percebeu que estava livre.

Caiu de bruços no chão, o rosto a meros centímetros da bota do capitão.

- Você enlouqueceu, não foi? - indagou, numa voz trêmula. - Ouvi falar sobre alguns homens que ficam por tempo demais no mar e acabam perdendo a sanidade... - Levou a mão à cabeça, dando-se conta de que os cabelos não estavam mais repuxados e, então, olhou para o guincho de âncora. Seus cabelos... Continuavam presos nas voltas da corda. Mas não estavam mais presos à sua cabeça. 

- Meu cabelo! - gritou. - Você cortou o meu cabelo! 

Os homens da tripulação recuaram, obviamente ansiosos por não interferir. Christopher agachou-se. Sem fitá-la, ergueu-lhe ligeiramente a barra da saia.

- Céus, não é de admirar que você vive tropeçando pelo convés. Está usando pelo menos umas cinco anáguas.

- Como se atreve?

- Eu sou o capitão, lembra-se? - Segurando-lhe o tornozelo, começou a desapertar-lhe o cordão da bota de salto alto. - Isto - disse por entre os dentes, descalçando-lhe a bota - é a causa de seus problemas. - Atirando a bota ao mar, apanhou-lhe o outro pé.

- Pare com isso - gritou Dulce, tentando se libertar. - Pare agora mesmo!

Christopher não demorou a retirar-lhe a outra bota. Ela apertou os lábios quando sentiu a pressão dos dedos onde machucara o tornozelo em seu primeiro dia no mar.

- Já vi você tropeçando tanto pelo convés que cheguei a pensar que cairia no mar. Chega disso. - Ele atirou a outra bota por cima da amurada.

Ela tornou a levar as mãos aos cabelos cortados.

- Céus - sussurrou. - O que você fez?

Christopher observou-lhe a expressão chocada com um olhar glacial.

- É apenas cabelo - disse-lhe. - Vai crescer outra vez. 

Dulce sentou-se e permaneceu imóvel, atônita demais para tomar qualquer atitude. Aquela era alguma espécie de versão macabra do episódio de Sansão e Dalila. Que pecado cometera para que Christopher tivesse lhe feito uma coisa absurda daquelas? E pensar que deixara para trás o seu lar, a sua família e tudo o que estimara em troca daquela terrível aventura.

Colocou as mãos no colo, desconsolada. Uma brisa fresca soprou as mechas de seus cabelos recém-cortados de encontro às suas faces e pescoço. Estremeceu com o contato do vento em sua pele. Os pés, cobertos apenas pelas meias de seda pareciam despidos.

- O quê... - Fez uma pausa e engoliu em seco, sentindo a indesejável ameaça das lágrimas. Não. Não iria chorar. Respirou fundo e fez nova tentativa - O que foi que eu fiz para você me odiar tanto?

- Srta. Savinon, eu não a odeio. O que lhe deu essa impressão?

- Para começar, você atirou meus óculos ao mar.

- Eles lhe fazem falta?

Dulce hesitou. Para ser franca consigo mesma, percebia que era um alívio não ter mais que usá-los.

- Isso não vem ao caso. Pertenciam a mim, assim como as botas. E os meus óculos. Você não tinha o direito de fazer o que fez.

- Ao contrário, Srta. Savinon. Eu tenho todo o direito.

- Oh, sim. Como eu poderia ter me esquecido? Você é o senhor deste navio. Sua palavra é lei. Eu não me surpreenderia se você designasse para si poder de vida e morte sobre os demais.

- Não me tente - retrucou Christopher, zangado.

- Você me tirou meus óculos, minhas botas e meu cabelo.

- Está melhor descalça. Aquelas coisas de salto que você usava a tornavam praticamente inútil. 

- Por que a crueldade é algo que vem tão facilmente para você? Isso não assusta às vezes? Assustaria a mim.

- Tudo a assusta, Srta. Savinon. - Com aquilo, Christopher se levantou e afastou-se, guardando a faca na bainha casualmente.

Dulce abraçou os joelhos e repousou a cabeça sobre eles. Não iria chorar, disse a si mesma.

- C-Com licença, s-senhorita - disse alguém.

Ela ergueu a cabeça.

- Timothy.

- Eu t-tenho alguma habilidade no c-corte de cabelos - anunciou o garoto, exibindo uma pequena tesoura. - Se quiser, eu acertarei o seu cabelo.

- Ficaria grata. - Dulce surpreendeu a si mestria concordando e seguindo-o até o refeitório vazio. - Faça o que você puder.

Indicando-lhe que se sentasse numa cadeira a um canto, ele começou a cortar-lhe os cabelos com gentileza.

- Timothy.

- S-sim, senhorita?

- Posso lhe perguntar algo?

- C-Claro.

- Todos os homens no convés testemunharam esse incidente?

- Sim.

- E não ocorreu a nenhum de vocês intervir? Para impedir que o capitão me maltratasse daquela maneira?

- Eu não vi o c-capitão maltratando-a, s-senhorita - disse o garoto, ajeitando-lhe os cabelos, enquanto os aparava. Dulce tinha a sensação de que sua cabeça estava leve, como se um grande peso tivesse sido removido dali.

- Sabe, na última v-viagem, Rivera perdeu um dedo num cabrestante. Acho que o c-capitão agiu certo e d-depressa antes que algo de mal acontecesse a você.

Ela manteve-se em silêncio e imóvel até que Timothy terminasse o serviço. Ele, então, parou à sua frente, observando o resultado, acertando urna ponta aqui e ali e, enfim, meneando a cabeça, satisfeito.

- Sabe, s-senhorita, o c-capitão não é um homem mau. É apenas... 

- Detenha-se antes que diga alguma tolice - interrompeu-o Christopher, entrando no refeitório.

- S-sim, senhor! - Fechando a tesoura, Timothy endireitou as costas e retirou-se depressa.

Dulce fitou o capitão com toda frieza, determinada a não aceitar um pedido de desculpas.

- Ora, o Sr. Datty fez um ótimo serviço em seus cabelos. - Christopher piscou algumas vezes e, então, estreitou os olhos como se algo o tivesse surpreendido. Os lábios se curvaram sutilmente. - De fato, fez. - Segurou um pequeno espelho diante dela.

Dulce teve a vaga impressão de uma massa de cachos rebeldes, um rosto infeliz e afogueado pela raiva. Afastou o espelho da sua frente.

Sentia-se nua sem os longos cabelos que a haviam envolvido feito um manto por tanto tempo quanto podia se lembrar. O cabelo era seu escudo. O que a protegeria do mundo agora?

- Você parece determinado a me ver desprovida de minha dignidade - disse, acusadora.

- Pelo contrário. Eu diria que há mais dignidade numa mulher que caminha com tranquilidade e confiança do que naquela que vive aos tropeções por causa de calçados inadequados.

- E quem falou que me importo com sua opinião?

Christopher aproximou-se mais e apoiou-se num joelho para que fitassem cara a cara. Dulce foi tomada por uma sensação estranha. Medo? Não, pois não se sentia impelida a fugir do capitão. Ao contrário, a postura dele à sua frente, a expressão e a maneira como pousou as mãos em seus ombros a fizeram querer ficar exatamente onde estava.

Não sabia por que tal reação a dominara, em especial em meio à sua raiva e indignação. Mas havia algo de instigante no modo como ele esperava, sem responder sua pergunta, mas simplesmente observando-a.

Determinada a não deixá-lo obrigá-la a desviar o olhar primeiro, estudou-o, tentando descobrir alguma pista do porquê de aquele homem insistir em atormentá-la. Christopher tinha o tipo de rosto que se descreveria como de beleza juvenil, um rosto que indicava que ainda continuaria bonito muitas décadas mais tarde. Tinha lábios bem-desenhados que sorriam facilmente, revelando covinhas. Olhos de intenso verde que continham uma estranha combinação de malícia e bondade.

Dulce deu-se conta de que havia, em seu coração, um calor que nunca sentira antes. Um despertar. Ali estava uma pessoa que tinha o poder de mexer com seu íntimo. E, sabia por instinto, aquilo não era algo bom.

- E então? - indagou, dizendo a si mesma que tais pensamentos eram fantasiosos, absurdos. Aquele era um homem cujas ações devia relatar ao empregador dele.

Christopher manteve as mãos em seus ombros, embora ela preferisse que as afastasse.

- Srta. Savinon, sei que vai ficar desapontada em ouvir isto, mas a minha opinião importa. Tudo o que eu penso, digo ou desejo importa. É no que consiste ser o capitão.

- Então, você usará o seu poder para tornar minha vida um tormento.

Ele abriu um sorriso, o rosto iluminado por um exasperante ar de simpatia.

- Srta. Savinon.

Ela lhe lançou um olhar faiscante.

- Dulce. Posso chamá-la pelo primeiro nome?

- E para que pedir permissão? Você é o capitão, o déspota, o mais elevado almirante dos oceanos.

- Não dos oceanos. Deste navio. - Lentamente, quase com insolência, Christopher deixou que suas mãos deslizassem ao longo dos braços dela. - Dulce, com certeza não precisa de mim para tornar sua vida um tormento. Você mesma está fazendo isso sozinha.

Ela conteve a respiração num misto de raiva e surpresa.

- Você é um atrevido de primeira classe, Capitão Uckermann.

Ele riu, as mãos segurando-lhe os cotovelos.

- Atrevido sim, mas não tenho nada a perder. Absolutamente nada.

Apesar do riso, Dulce notou-lhe a dor contida na voz, viu-a naqueles penetrantes olhos verdes. Nunca conhecera um individuo tão irritante, complexo e, interessante.

- O que quer dizer?

- Você já me despreza. Portanto, não parece importar o que eu faça ou deixe de fazer.

- A sua mãe é uma mulher de maneiras tão admiráveis. Acho surpreendente que ela tenha criado um homem que diga tal coisa. Em especial, depois de ter cortado o cabelo de uma dama com uma faca. Foi o auge da rudeza.

- Estamos andando em círculos aqui, Dulce. Já falamos sobre isto. Não vou pedir desculpas. E você não vai mais passar por nenhum tormento. O objetivo era de que você deixasse para trás aquele estilo de vida infeliz quando partimos de Boston, não era?

- Infeliz? Como ousa sugerir que sou infeliz?

Christopher soltou um suspiro perturbado.

- Minha cara, você é infeliz até o último fio de cabelo. Receio que esse estado lhe seja algo tão familiar que não o reconheça mais como infelicidade. - Finalmente, fez o impensável. Cobriu-lhe as mãos com as suas, afagando-as gentilmente. - O que quero que saiba é que você não tem que viver desse jeito, Dulce. Pelo menos, não enquanto estiver viajando sob minha proteção.

Dulce foi tomada pela estranha vontade de fechar os olhos e simplesmente concentrar-se na sensação daquelas grandes mãos afagando as suas. Eram quentes e calejadas pelo trabalho, tão diferentes das mãos frias e excessivamente macias dos homens que, por vezes, tinham-se visto obrigados a tirá-la para dançar nos eventos sociais de Boston.

Forçou-se a permanecer imóvel na cadeira, os olhos bem abertos enquanto lutava contra a inexplicável onda de calor que a percorria, começando pela ponta de seus dedos e se expandindo por seu corpo.

- Eu realmente não acho - começou e, então, teve que fazer uma pausa para umedecer os lábios antes de prosseguir - Eu não acho que você precise se preocupar com a minha felicidade, ou ausência dela.

- Sou o capitão. Cada aspecto da vida de cada membro da tripulação me preocupa. 

Christopher soltou-lhe uma mão e cobriu-lhe a face com sua palma quente. Dulce ficou surpresa demais para esboçar qualquer reação.

- Mesmo que não fosse por isso, eu me importaria Dulce. Não tenho muitas qualidades, mas eu realmente me importo com os outros.

-Eu... eu... - Ela engoliu em seco e acabou desistindo de dizer algo.

- Esteja a salvo. É o que o dia de hoje quis lhe ensinar. Use suas roupas e ajeite seu cabelo pensando em seu conforto, não em confinamento. Ninguém a olharia de maneira estranha se você entrasse no refeitório para o jantar sem todos esses incômodos apetrechos. - Para enfatizar o que dizia, Christopher correu a mão em torno da renda trabalhada que lhe adornava a gola do vestido. - Somos homens simples do mar, não esnobes dos salões de baile de Beacon Hil.

Ele se levantou e se adiantou até a porta, fazendo-a sentir-se curiosamente solitária de repente.

- Vejo-a no convés.

- Espere!

Christopher virou-se de uma maneira solicita que a surpreendeu.

- Sim?

- Você esqueceu o seu espelho.

Ele voltou e pegou-o, piscando-lhe um olho.

- Você não iria querer me ver depois de eu ter feito a barba sem um espelho. Algo nada bonito de se ver.

Dulce permaneceu quieta na cadeira depois que o capitão se foi, ouvindo o estalido de madeira e o som da água de encontro ao casco. Bem barbeado ou não, pensou, Christopher sempre seria bonito de se ver.


 


 




 


Esses capítulos gigantes são um presente para vocês minhas amadas leitoras, porque mesmo quando demorei séééculos para postar e vocês não me abandonaram!


bjus gatas, amo vocês! *o*



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Autor(a): chrisdul

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).

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Capítulo X – Distância Perturbadora O valor da mulher está subindo no mercado. Lydia Maria Child, Carta (1856) Christopher olhou para o pequeno espelho com total concentração enquanto deslizava a lâmina da navalha pelo rosto. O navio balançou, fazendo-o pender para o lado. Sentiu o corte sutil da navalha no queixo e pra ...


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Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 49



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  • carolinevondyzinha Postado em 15/04/2015 - 20:09:41

    Meu deuses cadê vc posta +

  • lalita_vondy Postado em 15/07/2014 - 16:40:06

    Oieeeee LEITORA nova!! Posta mais por favor to curiosa!! Nao abandona nao por favor!!! Posta vai!! Bjoes!!

  • mariaeduardavondy Postado em 30/05/2014 - 15:20:42

    Oii! Sou leitora nova!por favor não abandona a web!Por favor!è uma das webs mais perfeitas q eu já li aq no site!por favor volta a postar!

  • samandra Postado em 08/03/2014 - 09:43:26

    Oi, posta mais :)

  • lolawho Postado em 24/02/2014 - 15:15:42

    POSTA MAIS!!! PLEASE...

  • taisa Postado em 03/02/2014 - 16:05:57

    Um MÊS SEM CAPÍTULO NOVO :/

  • taisa Postado em 22/01/2014 - 23:23:52

    QUERO POSTS...

  • lolawho Postado em 18/01/2014 - 19:18:39

    Por favor continua a web!!!! *---*

  • a_letiicia Postado em 03/01/2014 - 20:49:47

    Ahhh espero que você dê-nos esses capítulos enormes todos os dias, todos os dias! hahaha Porque é tão gostoso ir descendo, descendo e descendo o capítulo e ainda ter mais coisa pra ler hahahahahh na verdade é bom porque dá continuidade, não fica aquela história toda picada com meia dúzia de palavras por capítulos, interrompendo as coisas que tem que acontecer sabe? não sei explicar, mas é ótimo!!! hahaha Enfim, eu sabia!!!! Sabia que a timidez, a tristeza, e a inibição da Dulce eram culpa daquele bando de imbecis que ela tinha que conviver. Olha como ela está feliz nesse navio? Ela como ela está se divertindo, se soltando... Ela encontrou o seu lugar ali, perto das pessoas que a 'alta sociedade' provavelmente despreza. Claro que a Dulce tá se livrando pouco a pouco das 'máscaras', o cabelo grande com esses penteados horríveis, os óculos, as roupas enormes e pesadas, os sapatos antiquados... E isso é culpa do Christopher também, que a propósito já está louco por ela.

  • vemkgaabi Postado em 03/01/2014 - 11:37:36

    Por favor posta maaais estou amando a web *---*


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