Fanfic: Uma Escola de Charme - Adaptada Vondy | Tema: Vondy
Capítulo XXII – Liberdade
Eles se apunhalaram pela liberdade — pularam nas ondas pela liberdade — lutaram como verdadeiros tigres pela liberdade!
Mas foram enforcados, queimados e baleados — e seus tiranos foram seus historiadores!
Lydia Maria Child,
Um Apelo em Favor daquela Classe de Americanas Chamados Africanos (1888)
- Estou falido, irmãozinho. - As palavras de Simas soaram pastosas, resultado de uma combinação de muito uísque com poucas horas de sono. Lentamente, levantou-se de sua poltrona e adiantou-se até o aparador para servir-se de mais uma dose de bebida.
Christopher sentou-se na sala de visitas de Albion, tentando ocultar seu choque. Haviam-se passado anos desde a última vez em que estivera ali, mas lembrava-se do lugar bem o bastante para notar as mudanças drásticas, a decadência. O aparador de mármore acima da lareira, outrora reluzente, continha agora manchas amareladas e marcas espessas de fuligem. Os vasos de cristal irlandês estavam enegrecidos pela falta de cuidados. O piano de cauda francês se fora, restando apenas três marcas no assoalho de madeira evidenciando o lugar onde o valioso instrumento costumara ficar. Não havia criados andando atarefados pela casa. Nenhum aroma delicioso se desprendia da cozinha. Nenhuma canção se ouvia dos campos de tabaco.
- Que diabos aconteceu? - indagou Christopher, estudando Simas atentamente.
Seu irmão mais velho sempre lhe fora uma figura indecifrável. Moreno e atraente, um atleta que se sobressaíra em todas as atividades a que se dedicavam os cavalheiros, desde caça à raposa até dançar nos refinados salões de baile, tornara-se o homem que o pai o criara para ser. Um verdadeiro filho do Sul.
Agora, Simas apresentava um rosto pálido e abatido, um olhar sem esperança. Rolava um charuto apagado entre o dedo polegar e o indicador.
- Pode-se dizer que o que está acontecendo é um legado de nosso caro e falecido pai. - Com uma mão um tanto trêmula, acendeu o charuto, soltou uma baforada e, então, deixou-o pendendo esquecido de sua mão recostada no braço da poltrona gasta.
- Eu não entendo. Ele deixou tudo para você.
- E você se sentiu tão rejeitado porque ele o cortou de seu testamento. - Simas atirou o charuto na lareira vazia. - Você deveria se considerar com sorte. Porque não iria querer o que ele me deixou. - Fez um gesto vago com a mão na direção dos escritórios da propriedade, do outro lado do corredor. - Cerca de vinte anos de dívidas não pagas.
Christopher sentiu um calafrio subindo-lhe pela espinha quando o irmão lhe disse qual era quantia. Era difícil até imaginar tanto dinheiro junto. Havia crescido dando tudo por certo, o luxo, os privilégios. Agora entendia que aquilo não passara de ilusão, uma ilusão construída a partir dos sonhos de um homem falido.
- Por que você não soube a respeito disto? - perguntou ao meio-irmão. - Por que minha mãe não sabia?
- Ele nunca me falou sobre o próprio fracasso. E por que deveria? Você estava sempre fora com Dino e, de repente, foi para Harvard bancar o ianque. Quanto à sua mãe, ela não prestava atenção. - A voz de Simas não continha rancor. - Nosso pai sempre lidou com os problemas dessa maneira, colocando-os de lado. Mandando-os embora. - Apanhando a caneca lascada, sorveu um longo gole de uísque. - Enviando-os rio abaixo.
O comentário reavivou a memória de Christopher.
- Aquilo foi há muitos anos. Você ainda pensa no que aconteceu?
Simas soltou um resmungo sarcástico e fez um gesto brusco, indicando toda a sala.
- Você vê algo melhor aqui em que se pensar?
Christopher deu de ombros, com certo constrangimento.
- Parece que já faz tanto tempo.
- Não quis ser rude. Acho que você era muito jovem quando tudo aconteceu. Quantos anos tinha? Treze? Quatorze?
- Quatorze. Tudo o que me lembro é que a garota escrava se chamava Serafina e que era lavadeira. - Recordou-se de uma jovem esguia num avental de linho rústico, os cabelos negros caindo-lhe na fronte enquanto se inclinara sobre os caldeirões fumegantes de roupas. - Eu me lembro também que nosso pai gritou muito. Dino e eu estávamos escondidos debaixo da escada quando ele descobriu e foi à sua procura. - Lançou um olhar para a escadaria cheia de teias de aranha. - Agora que sou mais velho, eu me surpreendo que ele tenha ficado tão furioso apenas porque você teve um romance com uma escrava. - Era uma das coisas que Christopher mais odiava na escravidão. Então, por que exatamente ele ficou tão possesso?
Simas soltou um riso amargo.
- Eu quebrei as regras, meu irmão. Eu me apaixonei por ela. E isso, evidentemente, foi imperdoável. Violou o princípio que mantém o sistema de escravidão vivo. Foi algo que reconheceu que uma escrava é um ser humano, que pode ser bonita aos olhos de um homem, que é digna de amor.
Chocado, Christopher observou o irmão. Fora aquilo, então. Agora, bêbado e falido, Simas estava revelando o evento que definira sua vida. A dor de seu amor fracassado evidenciava-se em seus olhos.
- Suponho que você se lembre como nosso pai terminou tudo entre mim e ela também.
- Claro. O patife mandou-a para um leilão de escravos. - As lembranças tomaram Christopher de assalto. Recordou-se com nitidez dos gritos angustiados enquanto os mercadores de escravos haviam carregado a jovem para as docas e a colocado num navio destinado ao mercado de Savannah. Lembrou-se do som de um tiro e das pessoas correndo freneticamente, imaginando que encontrariam Simas com os miolos estourados.
Mas ele atirara na estimada estátua de jardim de seu pai, um monumento de Vittor Uckermann num cavalo. Então, sem ter dito uma palavra, Simas selara um cavalo e partira para a Universidade da Virgínia.
Alguns anos depois, ele se casara com Lacey Beaumont, a filha dos vizinhos da propriedade à norte. Haviam tido dois filhos: Belinda e Theodore.
- Onde está sua esposa? - perguntou Christopher, num tom manso.
- Na Fazenda Bonterre, com as crianças. - Simas olhou fixamente para suas grandes mãos. - Sinto falta dos meus filhos.
E Dino, de suas filhas disse uma voz na mente de Christopher. Estivera esperando poder contar com a boa vontade dos Beaumont. Mas que tipo de consideração teriam para com um homem que falhara com sua filha? Agora, o que diabos iria fazer?
Naquele momento, ouviu uma porta rangendo. Virou-se na cadeira, mas não viu nada.
- Fantasmas, meu irmão? - indagou.
Simas levantou-se e foi olhar atrás da porta.
- Blue - disse, sua voz aturdida. Seu rosto empalideceu ao ter acrescentado - Há quanto tempo está ai, filho?
- Não sei, papai - respondeu uma voz infantil.
- Como senti sua falta. - Ele ergueu o garotinho e abraçou-o com força. Fechou os olhos, a voz soando emocionada. - Senti demais, Blue.
Christopher adiantou-se até ambos depressa, esperando distrair o menino da conversa que acabara escutando. A maior parte provavelmente esqueceria, mas não faria nada bem ao garoto já confuso com a atual situação saber que o pai amara uma garota escrava no passado.
O menino soltou-se dos braços de Simas e observou Christopher com seus olhos grandes e expressivos. Tinha o tipo de traços angelicais que fazia com que as damas de meia-idade quisessem beliscar-lhe as bochechas e cobri-lo de beijos, pobre garoto.
- Olá, Theodore - disse-lhe Christopher.
- Meu nome é Blue.
- Olá, então, Blue. Aposto que não sabe quem eu sou.
- Claro que sei. Você é aquele maldito ianque do meu tio Christopher.
- Eu sou um maldito ianque, não é?
- É o que vovô Beaumont diz.
Aquilo não era bom sinal, pensou Christopher.
- Por que é que seu pai chama você de Blue?
- Todo mundo me chama assim. - O menino lançou um olhar tímido a Simas. - Quando eu era bem pequeno, papai me dizia que eu sempre seria o seu garotinho Blue.
Simas tocou-lhe a ponta do nariz, tentando recobrar o controle sobre si mesmo.
- Sua mãe sabe que você está aqui?
Blue meteu a ponta da bota no chão.
- Eu saí escondido. Odeio aquele lugar, papai. Esfregam demais as minhas orelhas no banho e me fazem comer mingau de aveia sem nenhuma calda, além de uma porção de legumes no jantar. - O menino fez uma careta. - Sem falar que tenho que ficar dentro de casa o dia todo.
- O que acharia de ir um pouco lá fora? - sugeriu Christopher, lançando um olhar ao irmão. - Vou lhe mostrar minha antiga casa na árvore que fazia de observatório. Poderá subir lá e dar uma olhada no meu navio.
- Vamos! - Blue correu até a porta.
Caminhando pela relva por cortar, os três atravessaram o grande gramado. O mato infestava a área em torno do ancoradouro, mas a antiga árvore que havia por perto, outrora um refúgio para Christopher e Dino, ainda se mantinha alta e imponente feito o mastro de um navio.
Christopher colocou o menino na árvore.
- Segure-se a esta escada de corda e suba até aquela plataforma. Dino e eu passamos um verão inteiro construindo esta casa na árvore. - Sorriu, lembrando-se do ar balsâmico daquelas noites e dos sonhos que tivera outrora.
- Estou vendo o navio! - exclamou Blue quando chegou a plataforma de tábuas.
- É o Cisne Prata. E está sob o meu comando. - Aquela distância, não podia ver nada exceto a silhueta do navio. Chegara à terra firme sozinho num bote, deixando Dino nervoso e andando de lá para cá pelo convés, Dulce lançando-lhe olhares duvidosos, indecifráveis e os homens demonstrando sua impaciência para retornarem a Boston e receber seu pagamento. Todos naquele navio dependiam dele. Sentia a pressão de tal responsabilidade como se fosse uma constante dor de cabeça. E os problemas de Dino não tornavam a sua missão mais fácil.
- Como estão as coisas entre você e os Beaumont? - perguntou ao irmão.
Dino soltou um riso sem o menor humor.
- Aqui é o Sul, caro irmão. Não há vergonha maior do que ser pobre.
- Então, todos se foram? Os criados, os trabalhadores, o capataz?
- Sim, todos. Toda a nossa gente. Você ficará satisfeito em saber que eu preferi libertar legalmente os escravos em vez de oferecê-los aos mercadores para pagar as dividas de nosso pai. Joshua ainda vive aqui, porque ele e a esposa já estão idosos. Dei aos dois a casa do capataz. Nancy ainda vive no mesmo lugar. Ficou cega alguns anos atrás. Joshua e Willa cuidam dela.
- E o que vai acontecer com você e Lacey? Com Albion?
- Com sorte, a propriedade ruirá em chamas.
Christopher mantinha o olhar em Blue, que ainda se achava na plataforma.
- Falo sério, Simas. Você tem uma família em que pensar. Joshua, Willa e Nancy são sua família também. Vai deixá-los passar fome?
- Claro que não vou deixá-los passar fome, droga. - Com mais rapidez do que teria dado a impressão de conseguir, Simas apanhou uma pedra e atirou-a longe. Mesmo depois de algumas doses de uísque, continuava com uma mira perfeita, acertando um tronco de uma árvore a muitos metros. Sempre tivera uma pontaria invejável, para azar daquela estátua de mármore.
- Tenho uma reunião com os representantes do Banco Dominion, em Richmond, no mês que vem. Se eu tiver sorte, eles me adiantarão um empréstimo para recomeçar.
- Mas você não tem trabalhadores.
Simas tornou a rir. Sempre tivera um riso admirável, e continuava sendo assim, embora soasse com um que de desespero agora. Estendeu as mãos grandes e pálidas, esticando os dedos longos.
- Meu irmão, estas mãos seguraram as rédeas dos melhores cavalos da Virgínia. Contiveram garrafas de vinho que valiam mais do que alguns homens ganham durante uma vida inteira. Tomaram parte em jogos de cartas que me fizeram perder ou ganhar pequenas fortunas. E amaram mais mulheres do que admitirei. A única coisa que nunca fizeram foi enfrentar um dia de trabalho árduo e honesto. - Virou a palma das mãos para cima, estudando-as como se pertencessem a outra pessoa. - No momento, são a única coisa que realmente posso afirmar que me pertence. Portanto, acho que é melhor me acostumar à ideia de que terei que dar conta do trabalho eu mesmo.
- Mas há trabalho demais a fazer.
- A sua confiança me reanima, meu irmão.
- Estou apenas sendo realista.
- E desde quando se importa?
- Você é meu irmão. Minha família. - Christopher protegeu os olhos do sol e fez um gesto para que Blue descesse da plataforma na antiga casa da árvore.
- Então, empreste-me você o dinheiro para eu recomeçar - disse Simas. - Eu estava pensando que cavalos de corrida irlandeses...
- Não disponho de todo esse dinheiro. - Tenho outro propósito para o meu dinheiro, acrescentou Christopher para si mesmo, lamentando não poder fazer-lhe o empréstimo. - Depois que eu tiver resolvido algumas coisas aqui e descarregado minha carga em Boston, eu voltarei para casa por algum tempo e ajudarei você a se reerguer.
Simas olhou para a baía, meneando a cabeça distraidamente. Blue desceu da árvore e colocou-se ao seu lado, pegando-lhe a mão com lealdade.
- É melhor eu ir andando - anunciou Christopher, preocupado em saber o que o aguardava. - Tenho que voltar ao meu navio para buscar algo antes de visitar os Beaumont.
Simas franziu o cenho.
- Por que você iria querer visitar os Beaumont?
Christopher sentiu-se tomado por uma estranha vontade de desabafar com seu irmão e revelar-lhe seu intento. Ambos nunca tinham sido unidos, mas, ainda assim, por alguma razão, quis lhe contar. Não conseguiu, porém. Os dois viviam em mundos diferentes.
- Lacey é minha cunhada. E nunca conheci minha sobrinha.
Simas soltou um riso amargo.
- Mande lembranças a minha querida esposa.
Um praguejamento alto ecoou pela quietude do navio ancorado na baía. Dulce, que, sentada numa cadeira no convés, estivera ouvindo enquanto Timothy Datty lera perfeitamente um trecho de um livro, ergueu a cabeça. Na proa, perto da cabine de comando, Christopher e Dino estavam frente a frente.
- Nunca ouvi o Sr. Dino praguejando desse jeito - observou Timothy. - Acho que os assuntos do capitão em terra firme não devem ter transcorrido bem.
Ela se lembrou da expressão no rosto de Christopher quando avistara os campos desolados de Albion.
- Creio que você tenha razão.
Dino desviou-se abruptamente de Christopher e aproximou-se da amurada, sua postura tensa e digna enquanto olhava para a costa. Ao longo do corpo, tinha os punhos cerrados. Christopher disse algo com um quê de impaciência e raiva na voz e desceu da proa rapidamente, desaparecendo em seguida pela escada que conduzia às cabines.
Timothy deixou o livro de lado. O primeiro impulso de Dulce foi o de ir falar com Dino, mas hesitou e, em vez daquilo, desceu do convés até a cabine do capitão. Bateu à porta.
- Sou eu. Dulce.
Seguiram-se alguns momentos de silêncio.
- Pode entrar - disse-lhe Christopher, enfim.
Quando Dulce viu o que havia na mesa diante dele, arregalou os olhos.
- Este é o dinheiro do cofre do navio.
- Muita astúcia a sua em notar.
Ela ignorou-lhe o sarcasmo.
- Pensei que apenas o Sr. Herrera pudesse abrir o cofre agora.
- Bem, você se enganou.
Dulce aproximou-se e pousou as mãos na beirada da mesa. Aquele não era o Christopher Uckermann que passara a conhecer tão bem. O homem diante de si estava se mostrando zangado, reticente e um tanto ameaçador. Mas ela havia mudado também. Não se deixava mais intimidar.
- Diga-me o que o está preocupando.
- Meu irmão está falido. A fazenda ficou na ruína.
Dulce sentou-se no banco fixo junto à mesa.
- Você não pode lhe dar esse dinheiro.
- Por qual tipo de homem está me tomando, afinal?
- Eu não sei - respondeu Dulce com franqueza.
- Por que você mesmo não se explica?
Christopher serviu-se de um cálice de vinho do Porto da garrafa de cristal e prata sobre a mesa. Quando lhe ofereceu a bebida, ela sacudiu a cabeça.
- Conte-me o que está se passando.
- Eu preciso comprar três escravos - revelou ele, a voz quase inaudível - É uma promessa que fiz há muito tempo.
A primeira reação de Dulce foi de choque. Sentiu-se empalidecendo, os olhos se arregalando ainda mais. De repente, compreendendo do que se tratava, relaxou.
- Está se referindo à esposa de Dino, não é? E às filhas. São três escravas, na verdade.
Christopher não disse nada, não foi preciso. Ela pôde decifrar-lhe a verdade na expressão do rosto e aquilo a fez querer atirar-se nos braços dele e cobri-lo de beijos. Durante o tempo todo, julgara-o ambicioso demais e até egoísta. Finalmente, compreendia por quê.
Manteve-se no lugar, porém. Não podia abraçá-lo, não no momento.
- Então, você percebe o dilema, não é? Sinto-me tentado a roubar de meu empregador e, portanto, de meus próprios homens a fim de cumprir uma promessa que fiz a Dino.
- Não há nenhum outro meio? Você não poderia comprá-las com o seu próprio pagamento e bonificações?
- Duvido que seria suficiente. Acredito que o preço exigido pelas três será dos mais altos.
- Você não poderia fazer uma nota promissória a... Qual era mesmo o nome do homem?
- Beaumont. E a resposta é não. O crédito dos Uckermann não anda dos melhores nestas redondezas ultimamente.
- E se você não pode pegar o dinheiro do navio?
- Partiremos daqui sem a esposa e as filhas de Dino. E não farei isso.
Dulce admirou-se com a convicção na voz dele. Era de fato raro encontrar um homem com tamanha lealdade. Era algo novo e empolgante para ela.
- Sei de uma maneira de resolvermos este assunto - declarou, falando a sério em cada palavra.
Ele ergueu a cabeça depressa, estreitando o olhar.
- O quê?
- Empreste-me o seu apito de capitão.
Franzindo o cenho, Christopher retirou o apito de prata que usava ao pescoço.
- Não entendo o quê...
- É claro que não - interrompeu-o ela em exasperação. - Espere aqui.
Dulce subiu ao convés principal, tocando o apito. Christopher seguiu-a, sentando-se na beirada de um barril e observando-a com evidente ceticismo. Os membros da tripulação se reuniram, obviamente intrigados quando viram quem os havia chamado. Homens, pensou Dulce, com um suspiro.
Observou os rostos à sua volta, rudes, castigados pelo sol e o vento, e deu-se conta com um aperto no coração de que, em uma viagem, passara a conhecer aqueles homens melhor do que conhecia os membros de sua própria família. Dino achava-se um tanto à parte dos demais, mexendo ansiosamente no talismã em seu pescoço. Estivera sério e introspectivo nos dias anteriores e mal tocara em sua comida. Agora, ela sabia por quê. O terror e a esperança consumiam-no.
- Eu acho - começou - que provavelmente todos vocês saibam por que fizemos esta parada aqui.
- Viemos buscar a esposa e filhas de Dino - declarou Timothy sem hesitar - para que possam ficar juntos como deve ser.
Dulce quis abraçá-lo por sua sabedoria simples e direta. Se os sulistas tivessem a visão do garoto, a abominável escravidão não existiria.
- É justo que aguardemos por mais esse tempo - acrescentou Gerald com um firme meneio de cabeça na direção de Dino.
- Então, estamos todos de acordo, certo? - indagou Dulce.
Click coçou o queixo com ar especulativo.
- Depende do que é que estamos de acordo.
- Vou direto ao assunto, então, uma vez que estão acostumados a falar com franqueza. O capitão Uckermann precisa de vários milhares de dólares para essa transação e o único recurso disponível é o dinheiro em espécie do navio.
- Pôr as mãos neste dinheiro seria um crime que teria como punição a forca - disse Chips.
- Pirataria - acrescentou Luigi.
- No mínimo, seríamos destituídos de nossa licença para navegar se fôssemos apanhados - declarou Izard.
- Esta deveria ser a minha última viagem - contou William Click. - Estive economizando para comprar uma pequena fazenda.
- Tenho família para alimentar - lembrou Gerald aos demais.
- E se eu não pagar minhas dívidas, vou parar na cadeia, sem dúvida. - O Doutor baixou o olhar pesarosamente para as próprias mãos.
- Isto não fazia parte do acordo. - Chips soou beligerante. - Eu aceitei o trabalho pelo pagamento integral.
Dulce fitou a cada um por alguns instantes.
- Todos vocês são livres para decidir o que têm condições de fazer. Entendem o que isso significa? Têm a liberdade de decidir. - Fez uma pausa, percebendo que eles hesitaram. - A esposa de Dino não tem. - Lançou a cada um olhar duro daquela vez. - Eu mesma pagarei a vocês de volta com o dinheiro do meu dote.
- Não pode fazer isso - objetou Gerald. - O que dará ao seu marido quando se casar?
O riso que ameaçou escapar dos lábios de Dulce foi amargo.
Era difícil acreditar que numa época não muito distante tudo com que sonhara fora casar-se com Alfonso Herrera. De que maneira lastimável havia iludido a si mesma. Christopher Uckermann partira seu coração, era verdade. Mas também abrira seus olhos.
Sentiu o olhar frio dele agora e teve a coragem de sustentá-lo. Aquele homem de tantas facetas surpreendentes sempre quisera fazê-la enxergar quanto seus sonhos românticos eram tolos e sem esperança. Devia ser-lhe grata, mas, no momento, a dor que oprimia seu coração não deixava espaço para gratidão.
- Acreditem - disse aos marujos - a escravidão é um mal bem maior do que a minha condição de solteirona.
Christopher virou-se, pousando as mãos na amurada e olhando para a costa na distância.
Ela fingiu não lhe notar o ar desgostoso e tornou a se dirigir aos homens:
- O que me dizem, cavalheiros? Estão ao lado de sua companheira de jornada nisto? - Enquanto os observava e aguardava, conteve a respiração, um nó formando-se em sua garganta.
O Doutor deu um passo à frente.
- Eu nunca sofri a opressão da escravidão - disse a Dino. - Mas sou africano também e seu irmão de espírito. Apesar das minhas dívidas, eu abro mão do meu pagamento.
Dino fechou os olhos, uma expressão de alívio surgindo em seu rosto.
- Fique com os nossos pagamentos também - ofereceu Gerald. - Com o que precisar. - Fixou em Click um olhar severo. - Assim está certo, não está?
- Nosso p-pagamento será grande nesta viagem - acrescentou Timothy. - E a Srta. Savinon cumprirá sua promessa.
- Eu não disse que não ia ajudar com a minha parte - falou Click, meneando a cabeça na direção de Dino.
- O que for necessário, é o que temos a oferecer.
Dino engoliu em seco, uma forte emoção passando por seu rosto enquanto o desviava. Quando tornou a se virar pôde apenas murmurar a palavra: “obrigado”.
Dulce abriu um sorriso radiante que englobou a todos, deixando que o nó em sua garganta se desfizesse.
- Volto num minuto. Vou buscar os livros contábeis.
- E se isso não der certo? - murmurou Izard, parado junto à amurada ao lado de Dulce. Observavam Christopher seguindo até a costa num barco a remo.
- Dará - declarou ela com convicção. - Todos os valores chegam à soma perfeita.
- Temo que dinheiro não seja o problema.
Dulce virou-se para fita-lo. O primeiro imediato era um homem intrigante, quieto e soturno, mas com uma decência tamanha que todos respeitavam e uma inegável inteligência que a fazia prestar atenção redobrada às suas palavras.
- E qual acha que pode ser o problema?
- Talvez eu devesse ter dado minha opinião antes. Não creio que Beaumont aceitará o dinheiro. Não vai querer nenhuma soma pela mulher e as crianças.
- Como pode ter tanta certeza?
Ele hesitou, mas acabou contando: minha falecida esposa era africana.
Dulce o fitou com admiração.
- Sr. Izard...
- Acredite-me, eu sei.
- Então, por que não disse nada antes?
- Você teria me dado ouvidos? Alguém teria? - Ele sacudiu as mãos no ar num gesto de impotência. - Talvez você acabe conservando o seu dote, afinal.
- Isso não tem graça. - Dulce começou a andar de lá para cá pelo convés em crescente preocupação. - Algo tem que ser feito, então. Algo ousado, audacioso. Algo que dê certo.
Izard ficou em silêncio por um longo momento.
- Diga-me, quais seriam as chances de que você pudesse persuadir um velho cavalheiro sulista com seu charme?
Dulce riu.
- Com meu “charme” eu não seria capaz de persuadir nem um macaco a comer uma banana.
- Nem mesmo se o rumo de três vidas dependesse de você?
O divertimento momentâneo dela dissipou-se. A falta de confiança em si mesma, sua antiga companheira, voltou a anuviar-lhe os pensamentos. Mas, então, lançou um olhar na direção da proa e viu a silhueta de Dino de encontro ao céu de final da tarde. Parecia urna figura solitária, desolada.
Nunca vi minha garotinha. Hermione endireitou os ombros.
- Acho, Sr. Izard, que estou prestes a me tornar charmosa.
Christopher esperara uma recepção fria em Bonterre, mas a aberta hostilidade de Hugh Beaumont apanhou-o de surpresa. No momento em que se adiantou pelo caminho em forma de ferradura que levava à casa principal, um jovem criado correu na sua frente até a casa e o próprio Beaumont surgiu na varanda branca e reluzente, ladeada por colunas trabalhadas.
Ele mudara pouco pelo que Christopher se recordava. Sempre fora alto, um viúvo de cabelos longos, com um bigode de beiradas compridas o bastante para que pássaros ali se empoleirassem. Usava roupas de corte impecável, o tecido em preto lustroso e branco imaculado, um contraste marcante com a camisa amarelo canário de Christopher e seu casaco azul. Talvez devesse ter escutado Dino e colocado roupas de cores mais sóbrias, mas era tarde demais agora.
- Sr. Beaumont - disse, num tom amistoso - é um prazer revê-lo. - Subindo os degraus da varanda, estendeu a mão.
Beaumont ignorou-a.
- Não vejo o menor prazer nessa visita. E nenhum Uckermann é bem-vindo na minha casa.
Harry abriu seu melhor sorriso.
- Sendo assim, teríamos um péssimo começo, não é? Está certo, senhor. E que tal se esquecêssemos que eu sou um Uckermann? Vim até aqui para fazer uma transação de negócios, pura e simplesmente. Eu me retirarei logo em seguida.
O homem torceu a ponta do longo bigode.
- Que tipo de negócio?
- Estou interessado em adquirir algumas escravas. - Christopher teve que se esforçar para ocultar a indignação na voz. - A mulher chamada Delilah e suas crianças.
Beaumont jogou a cabeça para trás e soltou uma estrondosa gargalhada.
- Acho que não ensinaram muita coisa a você lá em Harvard. Do contrário saberia muito bem que percebo o que esta querendo. Está interessado em comprar Delilah porque você levou o homem dela embora, libertou aquele negro. - O riso dele cessou. - Será que não se dá conta, garoto? Se você tivesse partido sozinho, essa família estaria junta.
Christopher usou todo seu autocontrole para evitar tentar meter um pouco de bom senso na cabeça de Beaumont.
- Senhor, estou preparado para pagar...
- Tio Christopher! - Blue surgiu pela lateral da casa, avançando pelo gramado de mãos dadas com uma garotinha.
- Ei, tio Christopher? O que está fazendo aqui? Vai ficar para o jantar? - Ele soltou uma enxurrada de perguntas, enquanto conduzia a menina pelos degraus até a varanda.
- Podemos ir olhar para o seu navio outra vez? Quer me ajudar a construir urna casa na árvore?
- Uma pergunta de cada vez, garoto. - Com um largo sorriso, Christopher agachou-se. - Esta é sua irmã?
- Sim. Belinda. Tem três anos.
- Olá, doce Belinda - Christopher piscou-lhe um olho. Ela meteu um dedo na boca. Em meio aos cachos loiros que lhe emolduravam o rostinho, fitou-o timidamente com olhos tão azuis quanto porcelana pintada. - Eu sou o seu tio Chri...
- Crianças, entrem neste instante - disse uma voz com certo nervosismo da porta da frente.
Christopher ergueu-se depressa.
- Lacey, é bom ver você.
- Tenho certeza de que não posso dizer o mesmo - respondeu ela, com frieza e, então, abriu mais a porta de tela. Parecendo obedientes, mas ressentidos, Blue e Belinda colocaram-se ao lado da mãe. Bonita e de compleição delicada, as mãos movendo-se em evidente agitação, ela evitou o olhar de Christopher.
- Pai, acho que não vai se demorar, não é? Está quase na hora de colocar as crianças para dormir.
Beaumont meneou a cabeça em assentimento. Com visível alivio, Lacey entrou com os filhos e deixou a porta bater.
A noite se aproximava, a luminosidade do dia se dissipando lentamente acima da baía. Na estrada que passava em frente da casa principal, um cavalo relinchou, e em algum ponto na distância, uma voz profunda cantava um hino. Como de costume naquela misteriosa região, a beleza e a brutalidade estavam presentes em iguais proporções.
- Não farei negócios com você, Uckermann - declarou Beaumont. - Isso está bem claro?
Christopher respirou fundo.
- Eu pagarei o dobro do que elas valem.
O próspero fazendeiro abriu um sorriso.
- Não é uma questão de dinheiro, mas de princípios. Permitir esse tipo de coisa iria mexer com a ordem natural das coisas. Não posso simplesmente vender uma família para que seja libertada em seguida. Seria um ato irresponsável de minha parte.
Christopher soltou um riso incrédulo.
- Pelos céus, homem, será que ouve o que está dizendo?
O semblante de Beaumont endureceu.
- Garoto, é você que está tendo algum problema em ouvir. Não farei nenhum negócio com você. A mulher e as crianças não estão à venda, por preço algum. - Sacudiu a cabeça com ar desgostoso. - A sua família inteira é uma desgraça.
Christopher cerrou o punho. Usando de seu controle, manteve o braço ao longo do corpo. Ao menos, pensou furiosamente, não precisaria usar o dinheiro da tripulação. Mas teria que encontrar outro meio de levar a esposa e as filhas de Dino para o norte com eles.
- Passe bem, Sr. Beaumont - disse formalmente. - Mandarei lembranças suas ao meu irmão.
- O seu irmão sabe exatamente o que penso a seu respeito.
- Disso não tenho dúvida.
- Com licença. Creio que tenho outra visita. - Ignorando-o, Beaumont desceu os degraus da varanda.
Christopher virou-se para ver uma mulher alta, vestida de preto, com uma pluma e véu no chapéu, adiantando-se depressa pelo gramado. Sua boca secou ao reconhecê-la.
Com mil demônios! Por que Izard deixara que Dulce desembarcasse? Aquilo só acabaria acarretando mais problemas. Poderia significar que ele seria enforcado ainda mais cedo do que temera.
- Mas que diabos...
- Você a conhece? - perguntou Beaumont, observando com interesse.
Christopher não podia imaginar o que ela estaria tramando. Suas opções haviam-se esgotado com Beaumont e, portanto, achou que talvez fosse melhor esperar para ver o que aconteceria. Dulce podia ser impulsiva às vezes, mas não era tola. Dando de ombros, aguardou até que ela se aproximasse.
- Ah, aí está você, Christopher - declarou Dulce, com um notável sotaque da Virgínia. - Fiquei me perguntando onde, afinal, você teria se metido. - Antes de deixá-lo responder fez uma graciosa mesura a Beaumont - Senhor, por favor, perdoe-me esta terrível intromissão.
- Não há problema algum, senhora... - Ele ficou em silêncio, obviamente à espera de que Christopher fizesse as apresentações.
Antes de lhe dar tal chance, Dulce falou, estendendo a mão adornada por uma luva de renda preta.
- Elizabeth Swann, da família... Hipsucket Swann. Do condado de Spotsylvania, do qual certamente já deve ter ouvido falar. Tive a promessa de um lugar a bordo do navio do capitão Uckermann com destino a Boston. Céus, cheguei a ficar com medo de que ele tivesse partido sem mim.
Beaumont, o eterno sabe-tudo, abriu um sorriso cavalheiresco.
- Entendo. Hugh Beaumont, ao seu serviço - apresentou-se.
Com o rosto oculto pelo véu que pendia do chapéu, ela mantinha um ar misterioso, envolvente.
- E eu receio que terei que lhe pedir isso - respondeu. - O seu serviço, quero dizer.
- Como poderia ter esse prazer?
Ela ergueu a cabeça, um ar de censura parecendo irradiar-se por detrás do véu.
- Vim à procura do Sr. Uckermann, estava à espera dele quando as rodas de minha carruagem ficaram presas na lama de uma vala à beira da estrada. Acha que alguns de seus criados poderiam ajudar o meu cocheiro e o meu cavalariço?
Tentando entender o que ela estaria pretendendo, Harry admirou-se com seu desempenho calmo, desenvolto e elegante. Que diferente era essa criatura sedutora da garota desajeitada que subira a bordo de seu navio em Boston.
- A sua carruagem está atolada? - indagou Beaumont.
- Sim. - Ela apontou um dedo acusador na direção de Harry. - E a culpa é toda sua por ficar zanzando pelo campo. Sr. Beaumont, se pudesse nos oferecer alguma ajuda.
- Certamente, senhora. Darei ordens a meu capataz para levar um grupo de homens até a carruagem - disse o fazendeiro.
- Nem sei como lhe agradecer, senhor. Precisaremos de um bom número de homens. As rodas ficaram bastante atoladas.
Onde, afinal, Dulce aprendera aquele doce sotaque sulista? perguntou-se Christopher.
- E, Sr. Beaumont, só mais um favor. - Ela se inclinou para frente, colocou a mão no braço do fazendeiro e falou de uma maneira íntima que fez Christopher cerrar os dentes. - Tenho uma confissão a fazer também. Durante anos, eu ouvi falar sobre um lugar magnífico chamado Bonterre. Agora estou desfrutando minha chance de vê-lo.
E, de repente, Christopher entendeu-lhe o plano insano. Transportar escravos fugitivos era crime. Ela e todos que estivessem envolvidos se tomariam foragidos com a cabeça a prêmio.
E, que os céus os ajudassem, ele a deixaria agir daquela maneira.
- Oh, Sr. Beaumont, que conversa mais agradável a sua! - exclamou Dulce, com um riso na voz. - Vou acabar não querendo ir embora nunca se não parar de ser tão encantador.
Caminhando ao lado dela sob o anoitecer, Hugh Beaumont endireitou a gravata.
- Ao contrário, srta. Swann. Você é encantadora, não eu.
- Céus, acho que nunca ouvi tantos galanteios - protestou ela graciosamente.
Christopher soltou um resmungo mal-humorado e Beaumont ignorou-o, como Dulce.
- Não são meros galanteios, eu lhe asseguro. Estou totalmente cativado pelo seu encanto.
Ela experimentou um momento de total incredulidade. A ideia de que algum homem, qualquer um, pudesse achá-la encantadora estava além de sua compreensão. Era uma surpreendente novidade. Estaria realmente sendo encantadora, cativante? E, para tanto, bastava agir daquela maneira?
Estava espantada com as habilidades que a necessidade podia desenvolver numa pessoa. Houvera uma época em que Dulce não tivera um pingo de coragem e ousadia, agora parecia que tudo dependeria do fato de estar sendo corajosa e audaz.
Riu outra vez, divertida em descobrir como era fácil flertar e imitar os trejeitos de uma dama da sociedade sulista.
- Insisto para que se cale, senhor. Meu pobre coração não suporta tantos elogios.
- Que os céus não permitam - resmungou Christopher, caminhando atrás deles - que seu coração sofra algum dano por causa disso.
Dulce soltou um risinho. Ele estaria com ciúme? Certamente, não numa ocasião como aquela. Tinha que saber quanto a situação era desesperadora. Ela não lhe contara seu plano. Observando da estrada, onde haviam atolado a metade da carruagem de Simas em lama espessa, ela e os demais haviam aguardado na vã esperança de que talvez Beaumont vendesse as escravas. Quando tinham visto que a conversa se prolongara demais na varanda, sem que Beaumont o tivesse sequer convidado a entrar, não fora difícil deduzir que o fazendeiro não facilitaria as coisas, recusando-se a vender-lhe Delilah e as crianças. Haviam percebido que teriam que colocar seu plano em prática.
Um homem corpulento aproximou-se à frente de um grupo de trabalhadores. Sob a luz de três tochas, Dulce pôde ver que eram africanos. Tentou chamar a atenção de Christopher discretamente. Ele poderia arruinar tudo. Quando seus olhares se encontraram, notou-lhe a intensidade nos olhos verdes.
- Srta. Swann?
Ela se preparou para o que estivesse por vir.
- Sim?
- Espero que não queira que eu arregace minhas mangas e ajude a desatolar a carruagem. - Ele arqueou as sobrancelhas espessas de maneira significativa.
Dulce foi tomada por instantânea onda de alívio. Christopher parecia ter entendido o plano e estava entrando em seu jogo.
Chegaram até o veículo atolado, uma carruagem puxada pelo único cavalo que restara a Simas, um animal cansado que ela esperava que Beaumont não reconhecesse sob a luz imprecisa das tochas. Ralph Izard e Luigi tinham feito um ótimo trabalho afundando as rodas traseiras na lama que beirava a estrada da fazenda.
O pequeno “acidente” acontecera perto de uma dúzia ou mais de cabanas de madeira agrupadas numa área comum de terra batida.
- Afastem-se um pouco, senhores. - Ralph fez um gesto para que o Sr. Beaumont e Christopher recuassem. - Não quero que a lama espirre nas suas roupas.
Um bom número do “pessoal” de Hugh Beaumont fora ajudar. Era estranho como os chamava de seu pessoal, mas os tratava como gado. O capataz assobiou e começar a gritar ordens.
Ralph Izard meneou a cabeça de leve para Dulce e, então, desviou o olhar, o sinal para levarem o plano adiante. Ela sacudiu um lenço de renda diante do rosto.
- Oh, céus - disse, ofegante. - De repente, eu me sinto tão indisposta.
Beaumont amparou-a, segurando-lhe o braço.
- Quer que eu a ajude a chegar até a minha casa?
- Não é necessário. - Dulce tentou parecer mortificada. - É uma ligeira indisposição, de uma natureza bastante feminina
Aquilo fez cessar quaisquer outras especulações da parte dele. Christopher apertou os lábios, como se estivesse contendo o riso e desviou a atenção para a carruagem atolada.
- Encontrarei um lugar para descansar ali adiante.
O coração dela disparou enquanto se aproximou do conjunto de habitações dos escravos. Uma mulher parada perto do poço e outra cozinhando numa grande fogueira observaram-na em estupefação. Que horror devia lhes parecer uma mulher branca surgindo em seu meio sem ser convidada. Galinhas ciscavam no pátio de terra batida, e crianças brincavam com varetas e pequenas pedras. Não eram diferentes de outras crianças, tentando aproveitar os últimos momentos de claridade do dia enquanto a noite ia caindo, mas, num tempo curto demais, iriam perder aquela doce inocência.
Dulce sentiu-se como se tivesse entrado num mundo novo e desconhecido, um lugar fechado para uma mulher como ela. Um ar selvagem de preservação pairava entre as escravas. Presumiu que cultivassem aquela fachada intimidante, pois a aproximação de uma mulher branca de seus alojamentos não poderia significar algo bom. Estava familiarizada com os artigos antiescravagistas publicados em Boston, mas nada do que lera a havia preparado para aquela experiência direta da precariedade e hostilidade que emanavam do lugar.
Esperava ser capaz de identificar Delilah entre aquelas mulheres silenciosas, desconfiadas. Seus instintos lhe diziam para que saísse dali, que escapasse de um lugar ao qual não pertencia. Então, lembrou a si mesma de seu propósito. Dino estava a bordo do Cisne, à espera de sua esposa e filhas. Não podia desapontá-lo. Além do mais, houvera um tempo em que não pertencera ao ambiente do navio também, mas acabara se sentindo mais em casa lá do que num salão de visitas de Beacon Hill.
Mantendo a cabeça erguida, adiantou-se até o poço. Como uma dama sulista pedia um pouco de água a uma escrava? perguntou-se freneticamente. Respirando fundo, dirigiu-se à mulher que estava ao lado do poço.
- Por favor, eu gostaria de uma caneca de água.
- Sim, senhora. - Sem encontrar-lhe o olhar, a escrava fez subir um balde de água do poço.
Enquanto Dulce bebia a água ligeiramente turva de uma caneca de estanho, seu véu teimava em atrapalhar. Um gato ossudo passou depressa pelo pátio de terra, e uma garotinha descalça correu atrás dele, risonha e alheia à tensão das mulheres.
- Celeste - chamou alguém - volte aqui agora mesmo!
Dulce tentou não aparentar nenhum interesse na mulher jovem num vestido gasto de algodão. Estava contente pela escuridão e o véu porque sentiu um sorriso triunfante brotando de seus lábios. Celeste era como se chamava a filha mais nova de Dino.
Deixando a caneca de lado, colocou-se no caminho da criança e inclinou-se.
- Celeste - disse, com gentileza. - Sua mãe está chamando você. - Estendeu a mão enluvada. - Venha, deixe-me levá-la até ela.
A menina ficou imóvel feito um pilar, os olhos arregalados. Dulce censurou a si mesma por não ter se dado conta de que uma estranha com o rosto coberto por um véu seria tão assustadora quanto uma assombração. Celeste respirou fundo e entreabriu os lábios, prestes a soltar um grito.
Dulce viu seu plano indo por água abaixo. A reação assustada da criança atrairia a atenção do Sr. Beaumont, e tudo estaria perdido.
Mas antes que Celeste gritasse, Delilah aproximou-se, apanhando-lhe a mão e afastando-a de Dulce. A criança agarrou-se à saia da mãe, o rosto ainda apavorado.
- Delilah - sussurrou Dulce, mantendo o olhar na distância. - Por favor, não se vá. Tenho algo para você.
- É melhor eu ir, senhora - disse Delilah, recuando enquanto, segurava sua menina mais velha com a outra mão. - É hora de colocar minhas filhas para dormir.
Dulce teve que se conter para não segurá-la pelo braço. Esperou que ninguém mais ouvisse o que disse em seguida:
- Tenho algo de Dino para você.
A única reação de Delilah foi engolir em seco.
- Sim, senhora - respondeu, num tom manso.
Duas das mulheres se aproximaram cautelosamente. Dulce sentiu-se cercada. Céus, estava tão perto, mas, ainda assim, como conseguiria conversar com a esposa de Dino agora?
- A senhora precisa apenas que eu lhe faça uma simpatia - declarou Delilah calmamente como explicação às outras. - Nada mais. Só precisa de uma simpatia.
Ela a conduziu na direção de um dos casebres. Para o alívio de Dulce, as outras saíram do caminho.
Sentou-se num banco tosco do lado de fora do casebre. Pela porta aberta, notou uma leve luminosidade de um fogão a lenha rudimentar com um bule de chá fumegando acima. A cama era uma tábua, o travesseiro um pedaço de madeira, o colchão um cobertor rústico.
A beira da estrada, os homens ainda se ocupavam, tentando desatolar a carruagem, mas ela sabia que dispunha apenas de poucos minutos. Tirou um pequeno objeto da luva e colocou-o na mão de Delilah.
- É de Dino - sussurrou. Era o talismã feito com uma mecha do cabelo de Delilah envolta num saquinho.
A mão calejada dela se fechou em tomo do talismã.
- Oh, mal posso acreditar - disse, tão comovida que as filhas seguraram-se a ela.
- Dino o tem usado em tomo do pescoço desde o dia em que partiu - disse Dulce. - Não temos muito tempo. Se você quiser deixar este lugar nesta noite, eu e os homens que estão comigo ajudaremos.
Os olhos marejados de Delilah brilharam sob a luz bruxuleante do fogo com um misto de terror e esperança. E, felizmente, confiança. O amuleto de Dino a convencera.
- Sim, senhora.
O mais rápido que pôde, Dulce explicou-lhe o plano.
- Não há tempo para que você reflita sobre isto - avisou-a. - Mas os riscos são claros. Você não é obrigada a ir.
- Eu conheço os riscos - respondeu Delilah, a convicção em sua voz não deixando dúvida de que sabia muito bem o que estava em jogo. A despeito de seu sofrimento, seu coração não endurecera. Dera à luz duas crianças e amava um homem que estava morto por dentro sem ela. Escolher entre uma vida inteira de servidão e a ameaça de captura e punição não devia ser fácil para uma mulher com duas crianças pequenas. Mas ficou evidente que Delilah já tomara sua decisão. - Eu sofri durante noites intermináveis por aquele homem - declarou. - Não quero sofrer mais.
- Então, você sabe o que fazer. - Dulce levantou-se, já se afastando, não querendo trair um interesse específico por Delilah. Abanou-se vigorosamente e esperou que o Sr. Izard notasse, pois aquele era o sinal para prosseguir com a etapa seguinte.
Os momentos de tensão arrastaram-se insuportavelmente. Com o esforço conjunto dos homens, a carruagem foi, enfim, retirada da lama. O cavalo, exausto, resfolegou e baixou a cabeça.
Dulce quase podia ouvir o pulsar de seu coração, sentir os tentáculos do medo subindo-lhe pela espinha.
Tentou manter a calma quando viu um rápido lampejo de fogo no telhado de um dos casebres. Uma mulher gritou, e várias pessoas correram na direção do poço. Luigi encostara uma tocha no coberto de palha, criando a confusão.
Naquele meio tempo, Dulce caminhou depressa na direção da carruagem, esquecida agora com a agitação causada pelo fogo. A seu lado, Delilah mantinha-se oculta nas sombras, uma filha apoiada em cada quadril. Ninguém pareceu notar enquanto se aproximaram pela parte de trás da carruagem.
- Esconda-se ali, debaixo dos cobertores - sussurrou Dulce.
Metendo as meninas sob os cobertores primeiro, Delilah escondeu-se em seguida no chão da carruagem. Dulce rezou para que a escuridão, os gritos e confusão tivessem encoberto a manobra. Esperou pacientemente enquanto as chamas eram apagadas. Não demorou muito, pois o fogo não tivera chance de se alastrar.
- Sr. Beaumont - chamou-o, aproximando-se do fazendeiro. - As coisas são sempre assim tão animadas aqui?
- Felizmente, não. Eu prefiro bem mais a animação propiciada por uma visitante como você. - Ele se curvou galantemente sobre sua mão, mas quando endireitou as costas, olhou para a carruagem e franziu o cenho. - Esta não é uma carruagem de Albion?
- Oh, tenho certeza que não. Eu a aluguei em Fairfield - declarou Dulce calmamente. - Contratei o cocheiro e o cavalariço lá também. - Enquanto Hugh dava um passo na direção da carruagem, ela bloqueou-lhe a passagem. - E agora preciso mesmo ir. Agradeço-lhe do fundo do coração. Não faz ideia do grande favor que me prestou nesta noite.
Fez uma mesura, e ele tomou a curvar-se galantemente.
- Srta. Swann, você é uma estrela brilhante nesta que seria mais uma noite corriqueira.
- E o senhor é um cavalheiro incomparável. Vamos, Sr. Uckermann - disse ela, virando-se para Christopher. Céus, havia soado exatamente como Ale. Esperou ter a dignidade dela enquanto se aproximou da carruagem e deixou que Luigi a ajudasse a subir.
Não se permitiu preocupar-se com o que Harry estaria pensando daquele embuste. Reunindo as saias com todo o cuidado, sentou-se enquanto ele entrava logo em seguida. A carruagem seguiu, então, sob a escuridão, afastando-se de Bonterre para sempre.
Ou assim ela esperava.
Levantar âncora no meio da noite não era a atitude mais sensata que Christopher já tomara como capitão, mas, graças ao plano de Dulce, não tinha escolha. Devia estar furioso, mas não conseguia dissipar o sorriso de seu rosto. Não podia parar de pensar na reunião de Dino com sua família.
Fora pura magia. Um momento que lembraria para o resto de seus dias. Abandonando a carruagem a um quilômetro e meio de Bonterre, Ralph e Luigi haviam conduzido seus passageiros até uma pequena península, onde Chips estivera esperando com um barco. Remando com todo o empenho, não haviam demorado a chegar ao Cisne Prata. Delilah e as crianças, que tinham se mantido silenciosas e amedrontadas o tempo todo, haviam avistado Dino andando de lá para cá pelo convés.
Christopher jamais se esqueceria na expressão no rosto de Delilah quando reconhecera o marido junto à luz de um lampião. Ela erguera o olhar de seu assento no barco, e Dino olhara para baixo do convés do navio. Como uma suplicante na igreja, ela elevara seu olhar, abraçando as filhas com força e observando Dino enquanto as lágrimas haviam rolado por suas faces.
Dulce não contivera as próprias lágrimas quando Dino fora ao encontro de Delilah na escada de embarque. Segurara as filhas nos braços e, então, com um grito de alegria tão poderoso que soara como dor, caíra de joelhos em gratidão, abraçando a esposa pela cintura. Afundara o rosto no estômago dela e soluçara convulsivamente. Cada marujo a bordo, homens que haviam endurecido com a vida no mar, tinha começado a chorar, Christopher incluso. Até William Click esfregara os olhos e assoara o nariz em seu lenço colorido.
Agora, horas depois, navegavam sob a noite, esperando evitar os bancos de areia que Christopher conhecia como a palma de sua mão. A lua estava cheia, sua luz criando um facho prateado na superfície da água. Na saída da baía de Chesapeake, um vento forte encheu as velas.
Harry virou-se para olhar de volta para a Virgínia. As colinas escuras erguiam-se em direção ao céu estrelado, um cenário de serena beleza.
Virgínia. Era um lugar em seu coração. E lá ficaria. Jamais poderia retornar agora.
Sentia-se estranho. Aquele era um momento de triunfo, sem dúvida. Durante anos, esperara aquela reunião. De certa maneira, sua vida estivera sendo conduzida em direção àquele momento desde o dia em que partira da casa de seu pai em desgraça. Era o êxito pelo qual ansiara, tudo pelo que lutara, tudo em que acreditava. Seu coração deveria estar exultante.
Ainda assim, algo estava faltando. Algo mais. Algo que precisava a fim de se sentir completo.
O vento soprou um nome através de sua mente. Sentiu um calafrio, os fios de cabelo se eriçando na altura da nuca. Não agora, censurou a si mesmo. Especialmente não agora. Eram uma tripulação de fugitivos agora, um bando de fora-da-lei. Não estava em posição de oferecer um futuro a ninguém.
Seu objetivo era claro. Tinha que levar Dulce a Boston, deixá-la junto à segurança de sua família e transportar Dino e a família até o Canadá. Aquele tinha que ser seu propósito. Qualquer outra coisa só traria problemas.
- Christopher?
Ao som da voz suave dela, ele quase soltou o leme.
- É tarde - disse, num resmungo. - Você deveria estar dormindo.
- Como posso dormir depois do que fizemos? - Dulce aproximou-se com um passo jovial, seus olhos brilhando como as estrelas. Extraía energia do ar à sua volta. Como estava diferente da mulher sisuda e reprovadora que subira a bordo meses antes. Agora, usava roupas simples, tinha os cabelos soltos, os pés descalços deslizando pelo chão de tábuas. Parecia tão incrivelmente atraente e sedutora que ele quase gemeu de frustração. - Que dia excelente foi este!
Christopher ficou irritado com o verdadeiro júbilo na voz dela.
- Você transformou a todos nós em criminosos.
- Não soe tão reprovador. Era o que você queria, não era?
- Eu queria que Dino e Delilah tornassem a ficar juntos, sim - admitiu ele - mas eu estava esperando conseguir isso sem me tornar um pirata.
- A escravidão é criminosa.
- Não aos olhos da lei. - Christopher sentiu o choque de uma terrível verdade. Aquele dia não era seu. Aquela vitória não era sua. Dulce lhe tirara ambas as coisas. Bem no fundo, sentia-se vencido por ela.
Autor(a): chrisdul
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
PARTE IV O Cisne Então, repentinamente, ele ergueu as asas. Elas cortaram o ar com muito mais força do que antes, e os vigorosos impulsos levaram-no longe. Antes que ele se desse conta do que estava acontecendo, descobriu-se num grande jardim, onde macieiras floresciam. Os lilases preenchiam o ar com seu doce perfume, pendendo em cachos de arbustos longos ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 49
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carolinevondyzinha Postado em 15/04/2015 - 20:09:41
Meu deuses cadê vc posta +
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lalita_vondy Postado em 15/07/2014 - 16:40:06
Oieeeee LEITORA nova!! Posta mais por favor to curiosa!! Nao abandona nao por favor!!! Posta vai!! Bjoes!!
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mariaeduardavondy Postado em 30/05/2014 - 15:20:42
Oii! Sou leitora nova!por favor não abandona a web!Por favor!è uma das webs mais perfeitas q eu já li aq no site!por favor volta a postar!
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samandra Postado em 08/03/2014 - 09:43:26
Oi, posta mais :)
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lolawho Postado em 24/02/2014 - 15:15:42
POSTA MAIS!!! PLEASE...
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taisa Postado em 03/02/2014 - 16:05:57
Um MÊS SEM CAPÍTULO NOVO :/
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taisa Postado em 22/01/2014 - 23:23:52
QUERO POSTS...
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lolawho Postado em 18/01/2014 - 19:18:39
Por favor continua a web!!!! *---*
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a_letiicia Postado em 03/01/2014 - 20:49:47
Ahhh espero que você dê-nos esses capítulos enormes todos os dias, todos os dias! hahaha Porque é tão gostoso ir descendo, descendo e descendo o capítulo e ainda ter mais coisa pra ler hahahahahh na verdade é bom porque dá continuidade, não fica aquela história toda picada com meia dúzia de palavras por capítulos, interrompendo as coisas que tem que acontecer sabe? não sei explicar, mas é ótimo!!! hahaha Enfim, eu sabia!!!! Sabia que a timidez, a tristeza, e a inibição da Dulce eram culpa daquele bando de imbecis que ela tinha que conviver. Olha como ela está feliz nesse navio? Ela como ela está se divertindo, se soltando... Ela encontrou o seu lugar ali, perto das pessoas que a 'alta sociedade' provavelmente despreza. Claro que a Dulce tá se livrando pouco a pouco das 'máscaras', o cabelo grande com esses penteados horríveis, os óculos, as roupas enormes e pesadas, os sapatos antiquados... E isso é culpa do Christopher também, que a propósito já está louco por ela.
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vemkgaabi Postado em 03/01/2014 - 11:37:36
Por favor posta maaais estou amando a web *---*