Fanfic: Jeghen Fal 279
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[Arco Escarlate - Capítulo 2]
SONHOS SOB ENCOMENDA
Por: Laura Ribeiro
- Belle... - os olhos fundos de meu irmão me encaravam no escuro. Estendi a mão, movendo os dedos lentamente na tentativa de tocá-lo. Mas quanto mais me aproximava, mais ele parecia se afastar.
- Methyl... - Minha voz soou fraca, desaparecendo na escuridão que parecia crescer. Tentei caminhar, mas minhas pernas não respondiam a comando algum.
- Earlibelle! - Sua voz recheou-se de angústia, e os olhos... cada vez mais fundos... eram tomados por uma chama violenta. Pisquei uma vez, e tudo de repente desapareceu. Na escuridão, uma pequena bússola, sem oeste, cintilava distante. Chamei por meu irmão algumas vezes. Nada. Logo algo me puxou. Um vórtex violento embrulhou-me pela cintura e logo fui lançada em meu próprio quarto.
- Earlibelle! - Abri os olhos em um impulso, chocando-me com a proximidade do rosto de Suhka. Seus olhos escuros fuzilavam-me com uma ânsia assustadora, e precisei buscar fôlego para começar a falar. - Ora! Você estava falando e se mexendo muito enquanto dormia. O que houve?
Esfreguei os olhos algumas vezes, tentando entender o que estava acontecendo. Em um instante eu via meu irmão, no outro, chamas o engolfavam. E agora... Suhka estava aqui.
- Desculpe, acho que foi um pesadelo. - Murmurei enquanto me desvencilhava do emaranhado de cabelo que parecia me envolver. Eu realmente devia ter me movido bastante para me enrolar no meu próprio cabelo daquela maneira. - Mas, você ainda não foi dormir? - Questionei ao notar o vestido verde que Suhka trajava. Logo me ocorreu que talvez não fosse mais noite. Virei-me para a janela, onde o Sol brilhava lucidamente. Incrédula, saltei da cama agarrando as primeiras peças de roupa que podia avistar.
- Belle... Se está apressada para ver os trabalhadores, saiba que eles já passaram em direção aos campos.
- Não posso acreditar nisso! - Esbravejei inutilmente. Com pressa para terminar os trançados dos cestos, acabei passando a madrugada anterior adiantando todo o trabalho, assim, teria a manhã livre para ir aos campos com Ngowe.
- Você foi se deitar exausta, era natural que fosse acordar tão tarde. - Falou casualmente enquanto ajudava-me a fechar o corpete de couro negro. Vesti uma saia azul sem muita vontade e aproveitei para prender a franja de lado. Suspirei algumas vezes, irritada com minha própria falta de cuidado.
- Mas... Ngowe passou por aqui? - Perguntei, deixando um último raio de esperança cruzar o quarto.
- Não? - Respondeu quase de maneira teatral, afastando-se de mim um instante. Contornou o quarto lentamente, e logo voltou-se em minha direção. - Por que ele passaria por aqui? É fase de colheita, os jovens estão com muito trabalho acumulado.
- Íamos juntos para os campos hoje. Ngowe disse que estava tudo bem. - Balbuciei enquanto terminava de amarrar as mangas da blusa que usava por baixo do corpete. Suhka deixou um murmuro de reprovação escapar e, sentando-se atrás de mim, passou a pentear meus cabelos.
- Bem, vocês podem ir outro dia. Não é como se os campos fossem sair do lugar. - Concordei com a cabeça, sem muita vontade de continuar aquela conversa. Deixei minha mente ser tomada pelas tarefas e entregas que tinha para fazer hoje antes do pôr do Sol. Não teria muito tempo para ficar lamentando. - Agora vá. Suas clientes provavelmente a estão esperando.
Passei pela cozinha com um falso sorriso estampado no rosto. Mamãe certamente notou meu ar de desapontamento, mas discreta como era, preferiu não comentar. Ao invés disso, ofereceu-me um pedaço de torta de maçã, esperando que a comida doce e quentinha servisse de consolo. Decidi partir logo cedo, recolhendo as cestas decoradas com uma pontinha de amargura. Os pães ainda estavam quentes quando os embrulhei, então provavelmente chegariam frescos nas casas das clientes. Acenei uma despedida para Suhka e mamãe e parti para o centro de Grimmia.
Caminhando, a viagem era um tanto mais curta. De carroça, era impossível cruzar a ponte que dava para a parte mais baixa da cidade, o que levava para um atalho e evitava toda a estradinha de terra que circulava a região. Era bem mais ermo, mas economizava tempo e solado do sapato. Segui com um meio-sorriso estampado no rosto em resposta aos “bom-dia” que continuava a receber. A primeira cliente morava na parte mais baixa da cidade, o que significava que teria de passar por todas as vendas e receber cumprimentos das senhoras até que alcançasse o destino.
- Mas ela é maravilhosa! - Ouvi a senhora Dormelia exclamar assim que recebeu sua cesta em mãos. Notei seus olhos escuros brilharem e as bochechas tingirem de rosa quando falou. Piscou algumas vezes, talvez tentando afastar pequenas lágrimas, talvez tentando entender o trançado de fitas que havia posto sobre a alça. Em outra situação, eu teria me emocionado com essa cena, mas hoje... hoje nada parecia ter tanta graça. Despedi-me com um aceno, saindo em direção ao centro de Grimmia. Senhora Merkel era a costureira mais conhecida da região. Ela chegou a, inclusive, receber propostas para se mudar para a capital, Solana, mas recusou o convite, afirmando que jamais deixaria Grimmia. Depois disso, tornou-se um hábito avistarmos damas e nobres da capital em nossa pequena cidade.
- Oh! Earlibelle! Vamos, entre, entre... - Convidou-me ansiosa, a voz recheada de vida, como sempre. Recusei uma vez, dizendo que tinha outras encomendas para entregar ainda hoje, mas ela insistiu, afirmando que não me deixaria seguir sem antes dividir um pedaço de torta com ela. Acabei aceitando, e não pude deixar de notar seus cabelos louros que amontoavam-se em cima da cabeça como um bolo de inverno, fazendo-me lembrar que já devia ser hora do almoço. No canto da sala, seu marido, o senhor Herbelian, ajeitava-se com as botas e roupas de montar. Carregava no rosto um farto bigode marrom, o que fazia com que sua boca desaparecesse por completo. Era um homem calado, sisudo, mas sempre muito prestativo.
- Venha Earlibelle. Sente-se aqui comigo. Oh! Mas que bela cesta! - Senhora Merkel sorriu largamente, deixando que a alegria se espalhasse pelo rosto enquanto falava. - Já deve estar cansada de ouvir sempre a mesma coisa, não é? Mas a verdade é que não me canso de seu trabalho. As senhoras de Solana e Ophio que costumo atender sempre perguntam por suas cestas. - Entregou-me um pedaço de bolo, seguido de uma xícara de chá. - Mas, conte-me, como vão as coisas com sua família? - Respondi com calma, alternando palavras e garfadas com cuidado para não fazer feio. Ao fundo, senhor Herbelian ainda se aprontava, guardando adagas e iscas em uma bolsa de couro.
- Venha, vou lhe mostrar meu último trabalho. - Acompanhei seus passos apressados em direção ao atelier. No meio da sala, um maravilhoso vestido roxo exibia luxo e brilho como eu nunca havia visto antes. Tinha certeza que só poderia ser uma encomenda da capital, dada a quantidade de pedras e bordados que pendiam de saia. As mangas bufantes eram feitas de material semitransparente, e o corpo, de puro veludo negro. A saia inferior era composta por milhares de pregas escuras, sobrepostas por um fino véu roxo. À medida que andava, o roxo parecia mudar o tom, assim como as pedras presas em desenhos complexos.
- Por sua reação, acredito que tenha gostado. - Sussurrou enquanto fitava-me com um largo sorriso. - Fico feliz, você parecia um pouco abatida mais cedo. - Sorri de volta, sem muita vontade de voltar nesse assunto. Notando minha reação, decidiu deixar para lá, saindo em direção a uma mesa à direita. Senhor Herbelian entrou nesse instante, cumprimentando-me com um aceno da cabeça.
- Querida, já vou. - Avisou, em tom apressado. - Earlibelle, depois daqui você pretende passar em mais algum lugar?
- Devo ir até a estalagem e voltar para casa. Precisa de algo nos campos ou na floresta?
- Não, obrigado. - Suspirou, ajeitando as bolsas de couro claro. - Bem, tome cuidado, entendeu? Existem alguns boatos estranhos rondando a região. Nada certeiro, é claro. Mas por via das dúvidas... - Sem terminar a frase, deu um beijo no rosto de Merkel e saiu em disparada pela porta da frente. Sua esposa observou-o pacientemente e logo voltou-se para mim, mostrando desenhos e referências para o vestido.
- Essa peça foi feita com base nessa borboleta, a Imperatriz da Noite. - Revelou um estudo detalhado da borboleta, com as cores e desenhos de suas asas.
- Imperatriz da Noite? Ela não vem daquela lagarta escura? - Merkel confirmou, completando ainda que era essa mesma lagarta que há alguns ciclos havia devastado parte da colheita de Grimmia. - Por que alguém iria querer usar um vestido que lembra esse ser?
- A Imperatriz da Noite é o símbolo maior do amadurecimento, arrependimento e possibilidade de reparação que possuímos. Quando lagarta, ela é capaz de comer, sozinha, mais de 15 flores dessas que você costuma usar em suas cestas. Depois de se alimentar, ela cria seu casulo com os restos da planta que comeu. Ali dentro, os dias e as noites passam monotonamente e é quando, acredito eu, ela decide tirar um tempo para refletir. Quando finalmente chega a hora de sair de seu casulo, ela já não é mais uma lagarta, mas uma borboleta completa. Em sua nova forma, ela tem muito mais liberdade para se locomover e, principalmente, de ver o mundo. - Aproximou-se do vestido, revelando um fino véu prata que se escondia como asas por baixo do corpo de veludo. - A Imperatriz da Noite devora, em vida, 15 flores. Mas, no breve tempo em que passa como borboleta, é capaz de fazer brotar mais de 100 dessas mesmas que devorou. - Segurou minha mão com cuidado, apertando os olhos enquanto falava. - Você entende, Earlibelle? A visão limitada que ela tem quando lagarta a leva a destruir os talos das flores sem antes vê-las. Quando borboleta, ela vê, de cima, o mundo reduzido em que costumava viver, e decide então, reparar todos os danos feitos. Nós também temos essa capacidade. - Sorriu brevemente, voltando-se para o vestido. - A jovem que encomendou esse vestido comigo acaba por passar por uma situação difícil em sua vida. Espero que, como a Imperatriz da Noite, ela possa superar essas intempéries todas.
Concordei com um murmuro, sentindo-me subitamente mais leve. Demorei o olhar sobre o vestido mais alguns instantes, até que fui desperta pela promessa de Merkel de me fazer um quando estivesse mais folgada. Agradeci com entusiasmo, não era sempre que se ouvia algo assim de uma costureira de renome! Com um sorriso, despedi-me da senhora, saindo em direção à hospedagem da cidade para minha última entrega do dia.
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[Arco Escarlate - Capítulo 2]
Autor(a): jfal279
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