Fanfics Brasil - Púrpura e Negro Jeghen Fal 279

Fanfic: Jeghen Fal 279


Capítulo: Púrpura e Negro

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Púrpura e Negro


         Abri os olhos com dificuldade. Tudo em meu corpo parecia latejar. Das pálpebras até cada junta de meu dedo, eu sentia uma dor aguda que se espalhava com o movimento. Ajeitei-me sobre o que parecia uma cama de plumas e senti o cheiro doce de lavanda se espalhar. No teto, desenhos intricados misturavam-se à pintura de um céu estrelado. Notei o relevo aparente de cada estrela, o que dava ligeira impressão de profundidade. Tentei respirar fundo, mas o peito dolorido não permitia que eu enchesse muito os pulmões. Virei-me uma, duas vezes até me dar conta de que não sabia onde estava.


         Levantei em um salto. O quarto amplo e recheado de móveis e cortinas diferentes era completamente estranho para mim. Segurei um pouco a testa, tentando parar a dor de cabeça que me atingiu repentinamente. Engoli em seco. Eu estava sobre uma cama imensa, revolta por travesseiros e lençóis de um branco surpreendente. As quatro colunas de madeira negra seguravam uma cortina de veludo púrpura e pequenas franjas douradas que rodeavam-me como um cortinado. Desci da cama, ignorando a dor na coluna e esforçando-me para ficar de pé. Os joelhos tremeram um pouco, mas logo fui capaz de me manter sobre as duas pernas. Descalça, assustei-me com o carpete branco que se estendia por quase toda a área do quarto. À minha frente, uma larga escrivaninha escura era atolada por papeis e livros encapados com couro. Tentei ler do que se tratavam, mas pareciam apenas contas e recados rápidos. “Relatório Arena”, li no cabeçalho de um deles. Havia um desenho esboçado de uma construção circular, que eu também não fazia ideia do que poderia ser. Ao lado de um tinteiro usado, havia uma pedra azul com um brilho maravilhoso. Ergui-a contra a luz e notei como não havia um defeito sequer sobre sua superfície. Seu interior era completamente translúcido, de uma beleza hipnotizante. Coloquei-a de volta no lugar e observei que, ao lado da escrivaninha, uma outra cama, bem arrumada, escondia-se do feixe tímido de luz que atravessava as janelas. Observei através do vidro e notei que devia estar, pelo menos, no quarto andar de alguma torre. De longe, vários homens pegavam seus cavalos e partiam pelo portão mais ao norte. Um deles, de topete castanho, agitava-se enquanto discutia com mais alguém. Sem entender o que se passava, voltei-me para o interior do quarto. Ao lado da janela havia um grande armário de roupas. Agitei a maçaneta e observei enquanto a porta se abria lentamente. Nos cabides, milhares de casacos, capas, coletes, lenços e tecidos rendados. Toquei-os com curiosidade, notando o tecido de alta qualidade. Lã tingida, pele, couro e veludo. Mais à esquerda, várias botas alinhavam-se de acordo com o tamanho do cano. Passei a mão pelas gavetas e me assustei com a quantidade de joias, luvas e pedras que eram organizadas de acordo com a cor. De preto a branco, cobre a ouro, anéis a diademas, havia uma verdadeira fortuna naquele quarto. Receosa, afastei-me do armário, fechando-o depressa. O resto do quarto era decorado com móveis pequenos, flores de lavanda, mapas diversos, um quadro com uma meia lua, capas penduradas, pinturas do céu à noite, miniaturas de cavalos e uma incrível coleção de espadas. Próximo à porta, uma imensa cortina avermelhada se escondia em um cômodo um pouco afastado. Pé ante pé, aproximei-me para observar os desenhos cravados em ouro ao redor do portal, até que a maçaneta se virou, rangendo com pesar.


         Com o coração na boca, corri para detrás das cortinas, apertando-me o máximo possível contra a superfície irregular às minhas costas.


– Senhor? – Uma voz rouca chamou do lado de fora. Esperou um instante para então entrar no quarto. Pela fresta da cortina, observei um homem de idade mover-se com dificuldade sobre o carpete branco. Usava uma capa vermelha pesada sobre os ombros, decorada com o que mais parecia pele de morsa. Observou ao redor em silêncio, até que chamou mais uma vez. Convencido de que quem procurava não estava ali, voltou a observar o entorno. Passou a mão sobre cama em que eu estivera a pouco, exibindo a quantidade excessiva de anéis que trazia sobre os dedos.  Procurava alguma coisa com os olhos, mas não consegui entender exatamente do que se tratava. Desistindo, voltou-se para a escrivaninha, e então observei o pouco cabelo branco que se acumulava ao redor de sua cabeça. A barba, em contrapartida, era incrivelmente longa e farta. Notei quando revirou os papéis, parando apenas ao encontrar a pedra que eu havia visto antes. Virou-a contra a luz, exatamente do mesmo modo que eu fizera, e, sorrindo, colocou-a no bolso do robe. Caminhou um pouco mais até a janela, e, vendo alguma coisa, saiu apressado do quarto.


         Saí de trás da cortina em direção à janela. Curiosa para saber o que vira, apoiei-me sobre o vidro e lancei o olhar para o portão por onde alguns homens saíram cavalgando mais cedo. O homem com o topete ainda estava lá embaixo, acenando agitadamente para um outro que acabava de chegar montado em um cavalo negro. Saltou do cavalo elegantemente e foi em sua direção. Notei quando discutiram alguma coisa e saíram apressados para longe do meu campo de visão.


         Suspirando, e ainda sem entender nada, lembrei-me da pedra que estava sobre a escrivaninha. Aquele senhor que entrara há pouco certamente a havia roubado, caso contrário não teria entrado tão sorrateiramente no quarto, chamando por algum “senhor”. Quando esse senhor voltasse e desse falta dessa pedra eu, sem dúvida alguma, seria a primeira a ser acusada. Tinha de recuperá-la. Não sabia onde estava nem quem morava ali, mas tinha certeza de que se fosse acusada, não conseguiria essas respostas com facilidade.


         Assim sendo, abri a porta vagarosamente, saindo abaixada por um longo corredor vazio. De longe, pude ouvir algumas vozes agitadas. Decidi ignorá-las, seguindo até uma área mais iluminada. O lugar era enorme, com várias escadas de pedra, quartos infinitos, e vitrais espalhados por todos os lugares. Sem ideia de onde encontrar aquele senhor, vaguei sem rumo pelos corredores, checando as portas que estavam abertas.


– Vamos, senhor, eles estão lá em cima! – Ouvi uma voz agitada por trás de mim. Assustada, escondi-me atrás de uma pilastra de pedra e observei quando dois jovens subiam apressados as escadas que eu acabara de descer. O primeiro tinha um longo cabelo negro e usava um casaco azul escuro. O segundo, de topete castanho, que o chamara de senhor, trajava um colete verde sobre uma blusa branca bufante. Segui-os com os olhos e me surpreendi ao notar que o senhor de capa vermelha acabava de sair de um quarto um andar acima. Apressadamente, subi as escadas cuidando para não fazer barulho. Conferindo para saber se não havia mais ninguém por ali, abri a porta e entrei no quarto.


         Diferentemente do quarto em que eu acordara, este mal tinha móveis, sendo todos substituídos por pilhas e mais pilhas de livros velhos. Tapei o nariz, irritada com o cheiro de mofo, e pus-me a procurar a pedra. O único móvel presente era um baú ao pé da cama. Com cuidado, rastejei-me até a sua frente e fiz força para levantar sua tampa. No seu interior, mais livros e panos escuros se acumulavam em um amontoado de poeira. Vasculhei até o fundo, mas nem sinal da pedra. Talvez estivesse em seu bolso. Desse modo, eu não teria como recuperá-la, e teria então de tentar explicar o que vira. Exausta, e ainda sentindo as dores se espalharem pelo corpo, sentei-me sobre o baú. Como alguém daquela idade conseguia dormir num lugar abafado como este? A sensação que tinha era horrível, parecia mais um depósito do que um quarto.


         Levantei-me mais uma vez e, aproximando-me da porta, notei uma pequena caixinha brilhar sobre os livros. Abri-a com pressa, e não pude segurar um sorriso ao encontrar a pedra ali dentro, junto de outras de cores diferentes. Tinha certeza que todas tinham a mesma origem dessa azul, mas, como não havia provas, preferi deixá-las ali mesmo.


         Com a recompensa em mãos, saí sorrateiramente do quarto, fechando a porta atrás de mim. No andar de baixo parecia estar acontecendo alguma coisa importante, já que vozes e passos agitados podiam ser ouvidos com clareza. De todo modo, eu deveria agora voltar para o quarto e devolver a pedra para a escrivaninha. Assim, tudo estaria de volta no lugar e eu poderia perguntar o que quisesse sem levantar suspeitas.


         Voltei pelo caminho de onde viera, mas os corredores agora estavam completamente abarrotados de pessoas. De longe, pude notar que muitos carregavam espadas e armaduras sobre o corpo. Seriam soldados? Deveria tomar outro caminho, se é que, de fato, havia algum outro.


         Caminhei próximo à parede, observando o movimento antes de mudar de área. Todo o lugar era decorado por pequenos relevos que cobriam as paredes, detalhes e portões. As cortinas de veludo agitavam-se livres com o vento que vinha de fora. Parecia levemente abandonado, mas não entregava a suntuosidade que certamente tivera algum dia. Já havia cruzado uns dois ou três salões, subido e descido mais de sete escadas, mas ainda sem sinal de onde estivera. A verdade é que eu já não fazia mais ideia de como voltar para o quarto. Tive a impressão de já ter cruzado alguns corredores e cômodos mais de uma vez, mas não tinha como afirmar isso com certeza. Cansada, e sem noção de como prosseguir, apoiei-me sobre o parapeito de uma janela. Do lado de fora o Sol brilhava intensamente, e meu estômago começava a doer de fome. Olhei para baixo. Rente às paredes externas, havia um caminho estreito de pedras, que parecia circundar o local. Não, não seria seguro passar por ali...


Mas...


Se esse caminho rodeava o lugar, seguindo-o, eu certamente encontraria o quarto. Eu só precisava procurar o portão próximo do local em que vira os homens cavalgarem e então encontraria a janela certa.


         Sem pensar muito, dependurei-me na abertura da janela e pousei sobre o caminho de pedras. O olhar fixo à frente fazia o andar muito mais seguro, mesmo sabendo que qualquer movimento errado poderia me lançar para baixo. Segui em silêncio, respirando lentamente em compasso com meu caminhar. Logo estaria de volta no quarto, para aquela cama macia e branquinha. A pedra estaria sobre a escrivaninha e tudo ficaria bem.


Tudo... ficaria bem...


Repeti essas palavras mentalmente até alcançar uma área mais alta. Escalei o que pareciam degraus. Com dificuldade, agarrei-me em algumas raras pedras salientes até que encontrei um lugar que pudesse me apoiar.


         Respirando pesadamente, consegui erguer-me sobre uma plataforma estável, até me dar conta de que se tratava de uma pequena varanda suspensa. Rolei por entre alguns arbustos e, ficando finalmente de pé, assustei-me ao me deparar com o jovem de cabelos negros. Tentei falar alguma coisa, mas a voz, desacostumada a sair, falhou miseravelmente. Baixei a cabeça com pressa, esperando que brigasse ou gritasse comigo por ter invadido aquele lugar enquanto escalava paredes, mas nada falou. Ergui o rosto para notar que, na verdade, nem havia se dado conta de minha presença ali. Estava sentado em um banco, de costas para uma estranha porta que se misturava à parede, fitando o nada à sua frente.


         Sabia que se tentasse abrir a porta, ele acabaria vendo e eu não teria como explicar. E não me restavam forças para fazer o caminho de volta pela parede mais uma vez. Assim sendo, sentei-me ao seu lado. Sua pele branca reluzia em um tom levemente aperolado, de uma delicadeza que eu jamais havia visto antes. O cabelo negro ia até os ombros, com quatro mechas, duas frontais e duas laterais, maiores pendendo sobre os braços. Estava desorganizado, provavelmente por causa do vento que soprava. Os olhos escuros eram marcados por olheiras fundas, e não pude deixar de notar uma pintura estranha abaixo dos cílios. Não piscou, nem por um instante, mas era visível a expressão que se agravava lentamente. Os olhos marejavam-se e voltavam ao normal de maneira repetida. Era óbvio que estava triste. Com pena, observei-o por mais alguns instantes. Uma máscara escura estava caída à sua frente, e tinha nas mãos enluvadas uma caixinha delicadamente decorada. Lembrei-me da caixa encontrada no quarto do senhor de idade. Talvez ele tenha voltado ao quarto e, ao dar pela falta da pedra azul, ficou triste. Talvez o pessoal daqui tenha o hábito de guardar suas pedras em caixas como esta e ele esteja se culpando por ter mantido a sua fora do lugar.


Enfim... Era hora de lhe retornar a pedra que resgatara. Sem cerimônia, segurei uma de suas mãos e depositei a pedra ali. Sorri timidamente, sem saber exatamente como agir naquela situação. Ele se voltou para mim assustado, como se acabasse de despertar de um sono profundo. As sobrancelhas erguidas denunciavam a surpresa que eu causara com aquele gesto. Ergui o rosto para fitá-lo apropriadamente e, sem fôlego algum, vi-me completamente envolta pela profundidade de seus olhos negros.


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Autor(a): jfal279

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