Meus dedos deslizaram das mãos de Any, eu tentei acompanhar o seu olhar parado, aflito, até a porta verde do centro cirúrgico se fechar. “Ela partiu”, essa foi a minha sensação quando a vi desaparecer. Olhei ao meu redor, era tudo tão esquisito naquele corredor pálido, vazio, impessoal. As pessoas vestidas de branco perambulavam indiferentes ao meu sofrimento. Me encostei na parede, mãos no rosto tentando conter as lágrimas que me faziam soluçar. Eu estava sozinha, tão sozinha que sentia um frio inexplicável congelar os meus ossos.
Caminhei de volta à sala de espera. A mãe de Any estava sentada em uma poltrona, abatida segurava nas mãos um copo de café. Pensei em me aproximar dela, talvez pudéssemos nos fazer companhia, mas não tive coragem.
Olhei-a de longe. Encostada na parede, em minhas mãos o lenço que a minha Any usava na cabeça minutos antes. Levei a peça na altura do meu nariz, aspirei com saudade. O cheiro dela estava ali, impregnado, como todo o meu corpo, as minhas roupas, a minha mente.
- Depois que ela sair de lá vamos conversar e acabar de vez com essa pouca vergonha de vocês. – disse a mulher me tirando completamente de órbita.
- O quê? – perguntei confusa e surpresa.
- É isso mesmo que você ouviu menina!
- Olha aqui – caminhei até ela – Depois que a Any sair daquela sala de cirurgia e ficar boa, vamos ter uma vida juntas, e seremos felizes.
- Olha aqui você sua... petulante! Acha mesmo que a minha filha vai ser feliz com uma... com uma... Mulher? – disse e exibiu a sua face fria.
- Sua filha é lésbica! – vociferei.
- Isso é um absurdo! – gritou quase cuspindo em meu rosto. Seus olhos vermelhos de raiva e indignação encaravam os meus. Estávamos começando uma guerra, disso eu não tinha dúvidas. Faltava pouco para uma voar no pescoço da outra quando senti as mãos do amigo de Any apertar o meu braço.
- Calma, Dul! – disse ele. Estávamos tão consumidas que nem o vimos entrar.
Engoli em seco e desviei o olhar da mulher furiosa a minha frente. Afastei-me devagar enquanto ele me segurava firme, pois as minhas pernas teimavam em me desobedecer.
- A senhora... – balbuciei.
- Shiiii – Leandro colocou as mãos na minha boca – Deixa isso pra lá. Se concentra na Any que tá lá dentro garota – falou baixinho, e foi nesse instante que eu desabei nos braços dele, pedindo colo, proteção, deveras agradecida pela sua presença naquele momento tão difícil.
- Cara, eu tô apavorada! – desabafei.
- Vem, Dul! – me puxou – Vamos dar uma volta pelo hospital, tomar um café... Você não pode ficar descontrolada desse jeito.
Ignoramos a mulher que voltou a se sentar. Antes de sair, dei uma última olhada na direção dela. Seu olhar de desprezo me mortificou. “Estávamos torcendo pela recuperação da mesma pessoa, no entanto, a mãe da mulher que eu amava ignorava inteiramente o amor que eu sentia pela menina, como se esse sentimento não fosse puro o suficiente para que eu almejasse dar a minha vida em troca da dela”.
- Pouca vergonha – resmungou ao notar que eu ainda a olhava, eu não retruquei. Do jeito que eu estava nervosa, não responderia pelos meus atos.
Fui com Leandro até um local aberto onde ele acendeu um cigarro.
- Não consegui chegar antes dela entrar no centro cirúrgico – disse nitidamente nervoso – Como ela estava?
- Apavorada. – falei me sentando em um banco de cimento – Já tem quase meia hora que ela tá lá dentro e pra mim, é como se fosse um século.
- Relaxa! Ela é forte, vai aguentar o que vier – sentou-se ao meu lado – Dul, eu tô muito feliz pela Any ter encontrado uma pessoa tão legal como você.
Fiquei em silêncio, me questionando se eu deveria falar com ele sobre as minhas intenções quando resolvi postar aquele comentário no site em que Lygia lê as histórias de amor entre mulheres. Apanhei o telefone nas mãos, lembrei-me de que não tinha ligado em casa.
- Vou falar com a minha irmã um minuto, tá?
- Fica a vontade – disse acendendo outro cigarro. Parecia uma chaminé.
Disquei para Ly, ela atendeu no segundo toque.
- Oi, Dul! – disse afoita do outro lado da linha.
- Ela tá na sala cirúrgica.
- Fica firme, viu? Eu e a mamãe estamos aqui torcendo para que dê tudo certo, está bem?
- Ela vai ficar boa, não vai? – perguntei arrasada.
- Vai sim, minha irmã. Não se desespera. Se eu pudesse iria correndo para perto de você.
- Quando isso tudo acabar, vou voltar pro Rio, Any irá comigo, seremos felizes. – disse em meio às lágrimas.
- Sim, vocês virão, e serão felizes, Dul.
- Conheci a mãe dela – falei.
- E como foi?
- Péssimo. Batemos boca agorinha, e se não fosse o amigo da Any interromper, acho que nós teríamos saído no braço.
- Pelo amor de Deus, Dul!
- Não, eu não teria coragem, mas... Putz! Ela é superhomofóbica. Uma ignorante, sabe?
- Calma. Ninguém consegue ganhar nada no grito. Ela vai ver que vocês se amam de verdade e quando se acostumar com essa realidade o relacionamento será menos agressivo.
- Se não se acostumar, perderá a filha, simples!
- Dul, é a mãe dela, não seja drástica.
- Vou desligar, Ly. Qualquer novidade te ligo, tá?
Duas hora de cirurgia...
De volta à sala onde estava a mãe de Any, eu me sentei ao lado de Leandro. Ele segurou minhas mãos. A mulher nos ignorou.
Três horas de cirurgia...
Aflita, eu andava de um lado para o outro quando uma médica entrou no ambiente.
- Tem alguma notícia, doutora? – perguntamos eu e dona Marília ao mesmo tempo. Nos olhamos feio.
- Desculpem, mas só posso dizer que a cirurgia ainda não terminou.
- Ninguém pode nos dar uma informação? – indignada, perguntou a mãe de Any.
- Perdoe-me. O que posso pedir a vocês é que aguardem.
Quatro horas e meia de cirurgia...
Enfim o médico de Any entrou na sala. Sua aparência era de exaustão.
- E então, doutor? – perguntamos os três.
- A cirurgia foi realizada com sucesso, vamos aguardar que a paciente acorde e a deixaremos em observação.
- Ela vai ficar boa? – me antecipei.
- Vou conversar com a mãe de Any a sós, está bem?
- O quê? Como assim? – falei alterada – Eu estive ao lado dela todo esse tempo, sou a namorada de Any, doutor! O senhor sabe disso.
- Desculpe, mas... – estava acanhado.
- Eu sou a responsável por ela, menina. – falou triunfante.
- Desculpe, ela é a mãe...
- Vocês são uns hipócritas! – disse e furiosa, saí da sala, Leandro veio atrás de mim.
- Calma, Dul! – pediu.
- Quem ele pensa que é? E essa mulher arrogante? – continuei andando rápido – Acha que vai me afastar de Any? Errou feio, viu? Ela não me conhece. Ah! Não me conhece!