Fanfics Brasil - Capítulo DEZ A culpa e das estrelas_História original

Fanfic: A culpa e das estrelas_História original | Tema: A culpa e das estrelas


Capítulo: Capítulo DEZ

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Só levamos uma mala. Eu não tinha como carregar minha bagagem e mamãe bateu pé dizendo que não seria capaz de carregar duas, então tivemos de lutar pelo espaço na mala preta que meus pais
ganharam de presente de casamento um milhão de anos atrás — mala estaque deveria ter passado sua vida útil em lugares exóticos, mas que acabou praticamente só indo e voltando de Dayton, onde a Morris Property, Inc., tinha uma filial que o papai visitava com frequência.
Argumentei com a mamãe que eu deveria ter direito a um pouco mais do que só a metade da mala, porque, para início de conversa, sem mim e meu câncer nós nem iríamos a Amsterdã. Mamãe contra-argumentou que, por ser duas vezes maior que eu e, portanto, precisar de mais metros de tecido para proteger seu pudor, deveria ter direito a pelo menos dois terços da mala.
No fim, ambas perdemos. É a vida.
Nosso voo só sairia ao meio-dia, mas a mamãe me acordou às cinco e meia, acendendo a luz e gritando:
— AMSTERDÃ!
Ela ficou andando de um lado para outro a manhã inteira se certificando de que tínhamos adaptadores de tomada e verificando pelo menos umas quatro vezes se tínhamos a quantidade certa de cilindros de oxigênio que durassem até lá, e se estavam todo cheios etc., enquanto eu simplesmente rolei da cama, vesti minha Roupa de Viagem para Amsterdã (calça jeans, camiseta cor-de-rosa e um cardigã preto, para o caso de o
avião estar frio).
Às seis e quinze a bagagem já estava na mala do carro, e então mamãe insistiu que tomássemos café da manhã com o papai, embora fosse uma questão de princípio, para mim, não comer antes de o sol nascer,
simplesmente porque eu não era um camponês russo do século dezenove me alimentando para me fortalecer antes de um dia inteiro de trabalho braçal. Mas mesmo assim tentei botar para dentro um pouco de ovo
mexido enquanto mamãe e papai se deliciavam com a versão doméstica do Egg McMuffin que tanto amavam.
— Por que comidas de café da manhã são comidas de café da manhã? — perguntei a eles. — Tipo, por que não comemos curry no café da manhã?
— Hazel, coma.
— Mas por quê? — perguntei. — Na boa, falando totalmente sério: por que é que os ovos mexidos passaram a ser exclusividade do café da manhã? Você pode colocar bacon num sanduíche sem que ninguém dê nenhum chilique. Mas no instante em que seu sanduíche ganha um ovo, vira um sanduíche de café da manhã.
Papai respondeu de boca cheia.
— Quando vocês voltarem, tomaremos café da manhã no jantar. Combinado?
— Eu não quero tomar "café da manhã" no jantar — respondi, cruzando os talheres no prato praticamente cheio. — Quero comer ovos mexidos no jantar sem essa concepção ridícula de que uma refeição que inclua ovos mexidos tem de ser café da manhã mesmo que seja hora do jantar.
— Você precisa escolher as causas pelas quais vai lutar nesse mundo, Hazel — minha mãe disse. — Mas se esta é a que você quer defender, ficaremos do seu lado.
— Do lado de trás — o papai acrescentou, e mamãe riu.
Eu sabia que era tolice, mas ainda assim me senti meio mal pelos ovos mexidos. Logo que eles acabaram de comer, papai lavou os pratos e nos acompanhou até o carro. Logicamente, começou a chorar, e beijou minha bochecha encostando nela a cara molhada e áspera. Ele apertou o nariz contra a maçã do meu rosto e sussurrou:
— Te amo. Estou tão orgulhoso de você... (Pelo quê, exatamente, me perguntei.)
— Obrigada, pai.
— Vejo você em alguns dias, querida. Te amo tanto!
— Eu também, pai. — Sorri. — Serão só três dias.
Ao percorrermos a entrada de carros de ré, fiquei acenando para ele.
Ele acenava também, e chorava. Passou pela minha cabeça o fato de que ele talvez estivesse pensando que era possível que não fosse me ver nunca mais, o que talvez fosse o que ele pensava todo dia de semana de manhã antes de ir para o trabalho, e isso devia ser uma droga. Mamãe e eu fomos de carro até a casa do Augustus e, assim que chegamos lá, ela quis que eu ficasse no carro para descansar, mas fui até a porta mesmo assim. Quando nos aproximamos, pude ouvir alguém chorando lá dentro. Num primeiro momento, não achei que fosse o Gus, porque o choro não soava nada parecido com o tom suave do jeito de falar dele, mas aí escutei uma voz que com certeza era uma versão alterada da dele dizendo: "PORQUE A
VIDA É MINHA, MÃE. ELA PERTENCE A MIM." Mais que depressa, mamãe colocou o braço nos meus ombros, me virou e me levou de volta para o carro, andando rápido.
— Mãe! O que aconteceu? — perguntei.
E ela respondeu:
— Não podemos ficar ouvindo a conversa dos outros, Hazel.
Entramos no carro e mandei uma mensagem de texto para o Augustus dizendo que estávamos lá fora esperando por ele.
Ficamos olhando para a casa por um tempo. O mais estranho nas casas é que quase sempre elas dão a impressão de que não tem nada acontecendo do lado de dentro, embora a maior parte das nossas vidas seja passada lá.
Fiquei me perguntando se esse seria mais ou menos o objetivo da arquitetura.
— Bem — mamãe disse após alguns instantes —, acho que chegamos muito cedo.
— É quase como se eu não precisasse ter acordado às cinco e meia —falei. Mamãe pegou a caneca de café no console do carro e tomou um gole.
Meu celular vibrou. Uma mensagem de texto do Augustus.
NÃO CONSIGO decidir o que usar. 
Você prefere me ver de camisa polo ou de camisa de botão? 
Respondi:
De botão. 
Trinta segundos depois a porta se abriu e um Augustus sorridente apareceu, carregando uma mala de rodinha. Ele estava com uma camisa azul-celeste de botão bem passada, por dentro da calça jeans. Um cigarro Camel Light pendia dos lábios. Minha mãe saiu do carro para cumprimentá-lo. Ele tirou o cigarro da boca por um instante e falou com o tom de voz confiante que eu estava acostumada a ouvir.
— É sempre um prazer vê-la, madame.
Fiquei olhando para eles pelo retrovisor até a mamãe abrir a mala. Um tempo depois o Augustus abriu a porta atrás da minha e se lançou na tarefa complicada de entrar, com apenas uma perna, no assento traseiro de um carro.
— Você quer ir no banco do carona? — perguntei.
— De jeito nenhum — ele respondeu. — E oi, Hazel Grace.
— Oi — falei. — Tudo o.k.? — perguntei.
— Tudo o.k. — ele disse.
— O.k. — falei.
Mamãe entrou no carro e fechou a porta.
— Próxima parada, Amsterdã — ela anunciou.



* * *



O que não era exatamente verdade. A próxima parada foi o estacionamento do aeroporto, e aí um ônibus nos levou para o terminal, e depois um carrinho elétrico aberto nos transportou até o local da inspeção de
segurança. O cara da TSA estava lá no começo da fila, aos berros, dizendo que era melhor que nossa bagagem de mão não contivesse bombas nem armas de fogo nem qualquer recipiente com mais de 100 ml de líquido, e aí eu virei para o Augustus e disse:
— Observação: ficar de pé em fila é uma forma de opressão.
Ao que ele falou:
— Na moral.
Em vez de passar pela revista manual, escolhi atravessar o detector de metais sem o carrinho nem o cilindro, e nem mesmo o cateter de plástico no nariz. Cruzar o aparelho de raios X marcou a primeira vez, em alguns
meses, que dei um passo sem o oxigênio, e foi ótima a sensação de andar livremente daquele jeito, transpondo o Rubicão, o silêncio da máquina reconhecendo que eu era, ainda que só por alguns instantes, uma criatura não metalizada.
Senti uma soberania corporal que não dá para descrever direito. O que posso dizer é que foi mais ou menos como quando eu era pequena e tinha uma mochila pesadíssima, cheia de livros, que eu levava para todo lado.
Depois de andar muito tempo com ela, sentia como se estivesse flutuando assim que a tirava das costas.
Após uns dez segundos, meus pulmões pareciam que estavam se dobrando sobre si mesmos como flores que se fecham ao anoitecer. Caí sentada num banco cinza localizado logo após a máquina e tentei recobrar
o fôlego, minha tosse um ruído rouco, e me senti bastante mal até recolocar a cânula.
E mesmo assim doía. A dor estava sempre presente, me puxando para dentro, exigindo ser sentida. Cada vez que alguma coisa no mundo exterior demandava um comentário meu ou a minha atenção, parecia que eu
acordava da dor. Mamãe me olhava, preocupada. Ela acabara de falar alguma coisa. O que foi que ela disse? Então me lembrei. Ela havia perguntado qual era o problema.
— Nada — respondi.
— Amsterdã! — ela exclamou. Sorri.
— Amsterdã — repeti.
Ela estendeu o braço para mim, me deu a mão e me puxou para que eu me levantasse.



* * *



Chegamos ao portão uma hora antes do horário marcado para o embarque.
— Sra. Lancaster, a senhora é uma pessoa impressionantemente pontual — o Augustus disse ao se sentar ao meu lado na sala de espera praticamente vazia em frente ao portão de embarque.
— Bem, ajuda o fato de eu não ser muito ocupada, tecnicamente falando — ela disse.
— Você é ocupada o suficiente — falei, embora me ocorresse que a ocupação da mamãe era basicamente eu.
Também tinha a função de esposa do meu pai. Ele não tinha a menor noção de coisas, tipo, tarefas bancárias, contratar bombeiros hidráulicos, cozinhar e qualquer outra atividade que não fosse trabalhar para a Morris Property, Inc. Mas a maior parte do tempo o negócio dela era comigo. A principal razão de viver dela e a minha principal razão de viver estavam terrivelmente enredadas.
Conforme os assentos da sala de espera foram sendo ocupados, o Augustus disse:
— Vou comprar um hambúrguer. Quer alguma coisa?
— Não — respondi —, mas admiro sua recusa em se submeter às convenções sociais do café da manhã.
Ele inclinou a cabeça para o lado e olhou para mim parecendo meio confuso.
— A Hazel está revoltada por causa da guetização dos ovos mexidos — mamãe explicou.
— É vergonhoso o fato de nós simplesmente passarmos a vida inteira aceitando cegamente a associação dos ovos mexidos com o período da manhã. — Quero conversar mais sobre isso — o Augustus disse. — Mas estou morrendo de fome. Volto já.



* * *



Quando já se haviam passado mais de vinte minutos e o Augustus ainda não tinha voltado, perguntei para a mamãe se ela achava que havia algo de errado, e ela só levantou os olhos da revista detestável que lia pelo tempo suficiente para dizer:
— Ele deve ter ido ao banheiro ou coisa assim, só isso.
Uma funcionária da companhia aérea andou até nós e trocou meu cilindro de oxigênio por outro, fornecido pela empresa. Fiquei sem graça de ter uma pessoa ajoelhada na minha frente, com todo mundo olhando, então enviei uma mensagem de texto para o Augustus enquanto durava aquele procedimento.
Ele não respondeu. Mamãe parecia despreocupada, mas eu já imaginava todos os tipos de contratempos que poriam fim à viagem para Amsterdã (prisão, acidente, colapso mental) e senti como se houvesse algo
não necessariamente cancerígeno de errado com meu peito conforme os minutos foram se passando.
E, bem na hora que a moça que estava atrás do balcão anunciou que daria início ao embarque antecipado de quem pudesse precisar de um pouco mais de tempo para entrar, e todas as pessoas que aguardavam o voo se viraram diretamente para mim, vi o Augustus mancando apressado na nossa direção com um saco do McDonald’s na mão, a mochila jogada nas costas.
— Por onde você andou? — perguntei.
— A fila estava enorme, foi mal — ele disse, estendendo a mão para me ajudar a levantar.
Aceitei a ajuda, e seguimos lado a lado até o portão, para o embarque preferencial.
Senti que todos observavam nossos movimentos, imaginando o que haveria de errado conosco, e se aquilo nos mataria, e como minha mãe devia ser uma heroína e tudo mais. Essa, às vezes, era a pior parte do
câncer: a evidência física da doença separa você das outras pessoas.
Éramos irreconciliavelmente diferentes, e isso nunca ficou tão óbvio como quando nós três andamos no avião vazio, a comissária de bordo nos recebendo com uma expressão compadecida e fazendo um gesto na
direção da nossa fileira, que ficava bem mais no fundo. Sentei no meio da fila de três cadeiras com o Augustus no assento da janela e a mamãe no do corredor. Fiquei me sentindo meio sufocada pela presença da minha mãe, então obviamente me bandeei para o lado do Augustus. Estávamos logo atrás da asa do avião. Ele abriu o saco e desembrulhou o hambúrguer.
— Na verdade, a questão dos ovos — ele disse — é que a cafedamanhazação dá ao ovo mexido uma certa sacralidade. Você pode arranjar bacon ou cheddar em qualquer lugar e a qualquer momento, em tacos, sanduíches de café da manhã ou num queijo quente, mas ovos mexidos… eles são importantes.
— Ridículo — eu disse. As pessoas começavam a se acomodar no avião. Não queria olhar para elas, então virei o rosto, e isso significou encarar o Augustus.
— Só estou dizendo que talvez os ovos mexidos sejam guetizados, sim, mas também são especiais. Há um lugar certo e uma hora certa para eles, como para rezar.
— Você não poderia estar mais equivocado — falei. — Está se deixando influenciar pelos pensamentos bordados nas almofadas dos seus pais. Você está argumentando que uma coisa frágil e rara é bela só porque é frágil e rara. Mas isso é uma grande mentira, e você sabe disso.
— Você é uma pessoa difícil de se consolar — o Augustus disse.
— O consolo superficial não é um consolo verdadeiro — falei. — Você já foi uma flor rara e frágil. Você se lembra disso.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Você sabe como calar a minha boca, Hazel Grace.
— É meu privilégio e minha responsabilidade — retruquei. Antes que o contato visual entre nós fosse interrompido, ele falou:
— Por falar nisso, foi mal eu ter evitado a sala de espera para o embarque. A fila no McDonald’s não estava tão grande assim, na verdade;
eu só… só não quis ficar sentado lá com todas aquelas pessoas olhando para nós, e tal.
— Para mim, principalmente — falei. Era provável que ninguém desconfiasse de que o Gus já esteve doente algum dia, mas eu carregava a minha doença do lado de fora, o que foi, em parte, o motivo pelo qual me
tornei uma pessoa caseira. — Augustus Waters, criatura famosa por seu carisma, fica constrangido ao se sentar ao lado de uma garota com um cilindro de oxigênio.
— Não é constrangimento — ele disse. — É que às vezes essas pessoas me irritam. E não quero ficar irritado hoje.
Um minuto depois, ele enfiou a mão no bolso e abriu a tampa do maço de cigarros.
Passados uns nove segundos, uma comissária de bordo loira correu até a nossa fila e disse:
— Senhor, não é permitido fumar neste avião. Nem em qualquer avião.
— Eu não fumo — ele explicou, o cigarro dançando na boca enquanto falava.
— Mas…
— É uma metáfora — expliquei. — Ele coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de completar o serviço.
A comissária ficou desconcertada só por um segundo.
— Bem, essa metáfora não será permitida no voo de hoje — ela disse.
O Gus assentiu com a cabeça e devolveu o cigarro ao maço.



* * *



Enfim taxiamos na pista e o piloto disse: Comissários, preparar para a decolagem, e foi então que duas enormes turbinas a jato deram sinal de vida e começamos a acelerar.
— Essa é a sensação de estar num carro com você — falei, e ele sorriu, mas continuou com o maxilar tensionado. Então perguntei: — Você está bem? — Nós estávamos ganhando velocidade quando,
de repente, a mão do Gus apertou o braço da cadeira. Ele arregalou os olhos, eu coloquei a minha mão em cima da dele e repeti: — Você está bem? — Ele não disse nada, só olhou para mim com olhos esbugalhados.
Por fim, perguntei: — Você tem medo de avião?
— Daqui a pouco eu respondo.
O nariz da aeronave embicou para o alto e decolamos. O Gus olhou pela janela, vendo o planeta encolher abaixo de nós, e foi então que senti a mão dele relaxar sob a minha. Ele olhou para mim, depois para a janela, e anunciou:
— Estamos voando.
— Você nunca viajou de avião antes?
Ele balançou a cabeça negativamente.
— OLHE! — exclamou, apontando para a janela.
— É — falei. — É, dá para ver. Parece que estamos num avião.
— NUNCA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE SE VIU ALGO ASSIM — ele disse.
O entusiasmo do Gus era fofo. Não pude resistir e me inclinei para dar um beijo na bochecha dele.
— Só para você saber, eu estou bem aqui — mamãe disse. — Sentada do seu lado. Sua mãe. Que segurou sua mão quando você deu seus primeiros passos.
— É coisa de amigo — lembrei a ela, virando para beijá-la no rosto.
— Não pareceu tão de amigo assim — o Gus murmurou alto o suficiente para que eu pudesse ouvir.
Quando um Gus surpreso, empolgado e inocente emergiu do Augustus Maravilhoso e Adepto de Metáforas, não consegui resistir, literalmente.



* * *



Aquele foi um voo curto para Detroit, onde o carrinho elétrico foi ao nosso encontro quando desembarcamos e nos levou até o portão para Amsterdã. O segundo avião tinha telas de TV na parte de trás de cada encosto, e logo que ultrapassamos o topo das nuvens, o Augustus e eu sincronizamos o momento de começar a ver TV para assistirmos à mesma comédia romântica, ao mesmo tempo, em nossas respectivas telas. Mas, mesmo tendo sincronizado perfeitamente a hora de apertar o play, o filme dele começou alguns segundos antes do meu. Assim, a cada cena engraçada, ele ria quando eu ainda estava ouvindo o início de qualquer que fosse a piada.



* * *

 


Mamãe tinha planejado dormirmos as várias horas que o voo ainda ia durar, para que, quando aterrissássemos às oito da manhã, já chegássemos na cidade prontos para aproveitá-la ao máximo, e tal. Então, quando o filme acabou, nós três tomamos comprimidos para dormir. Mamãe capotou depois de alguns segundos, mas o Augustus e eu ficamos acordados olhando pela janela por algum tempo. O dia estava claro, e mesmo que não desse para ver o sol se pondo, dava para perceber a reação do céu a esse movimento.
— Cara, isso é lindo — falei, mais para mim mesma.
— A luz do sol nascente forte demais em seus olhos que perecem — ele disse, citando o Uma aflição imperial.
— Mas ele não está nascendo — falei.
— Em algum lugar está — ele retrucou, e logo depois disse: —
Observação: seria fantástico voar num avião ultrarrápido que conseguisse perseguir o nascer do sol em torno do planeta por um tempo.
— Além disso, eu viveria mais — falei, e ele me olhou de esguelha. —
Você sabe, por causa da relatividade, e tal. — Ele ainda parecia confuso.
— Nós envelhecemos mais devagar quando nos movemos mais depressa em comparação a quando estamos parados. Assim, neste exato momento, o tempo está passando mais devagar para nós do que para as pessoas no solo.
— Gatas de faculdade — ele falou. — Elas são inteligentes demais. Revirei os olhos. Ele bateu o joelho (de verdade) no meu e eu reagi fazendo a mesma coisa.
— Está com sono? — perguntei.
— Nem um pouco.
— É — falei. — Eu também não.
Remédios para dormir e analgésicos não tinham em mim o mesmo efeito que em pessoas normais.
— Quer ver outro filme? — ele perguntou. — Eles têm um da Natalie
Portman da fase Hazel dela.
— Quero ver alguma coisa que você não tenha visto ainda.
No fim, acabamos assistindo ao 300, um filme de guerra sobre trezentos espartanos que protegem Esparta de um exército invasor com, tipo, um bilhão de persas. O filme do Augustus começou de novo antes do meu e, depois de alguns minutos ouvindo ele dizer: "Droga!" ou "Finalizado!" toda vez que alguém era brutalmente assassinado, me inclinei sobre o apoio para o braço e encostei a cabeça no ombro dele para, de fato, assistirmos ao filme juntos em apenas uma das telas. 300 apresentava uma coleção respeitável de jovens sem camisa, musculosos e com óleo no corpo, e por isso não era particularmente difícil
de ver, mas o que o filme mais mostrava era um monte de espadas empunhadas sem um propósito legítimo. Os corpos de persas e espartanos iam se acumulando e eu não consegui entender direito por que os persas
eram tão do mal e os espartanos, tão do bem. "A contemporaneidade", citando o UAI, "se especializa no tipo de batalha no qual ninguém perde nada de valor, exceto, como se poderia argumentar, suas vidas." E era isso o que acontecia com aqueles titãs em batalha.
Perto do fim do filme estavam quase todos mortos, e houve um momento insano em que os espartanos começam a empilhar os corpos para formar uma parede de cadáveres, que se transformou numa enorme barreira separando os persas do caminho para Esparta. Achei aquela carnificina um pouco gratuita, então desviei o olhar da tela por um segundo e perguntei ao Augustus:
— Quantas pessoas você acha que morreram? Ele fez um gesto para eu calar a boca e disse:
— Shh. Shh. É agora que as coisas vão ficar interessantes.
Quando os persas atacaram precisaram escalar a parede da morte, e os espartanos conseguiram ocupar o topo da montanha de cadáveres.
Conforme os corpos iam se acumulando, a parede de mártires se tornava ainda mais alta e, portanto, mais difícil de escalar. Todos brandiam as espadas/atiravam flechas e rios de sangue corriam montanha da morte
abaixo etc.
Afastei a cabeça do ombro do Augustus por um instante para dar um tempo daquelas cenas sanguinárias e observei-o assistindo ao filme. Ele não pôde conter o sorriso bobo. Olhei para a minha tela de canto de olho e vi a montanha de corpos de persas e espartanos crescendo. Quando os persas finalmente derrotaram os espartanos, olhei para o Augustus de novo. Embora os bonzinhos tivessem acabado de perder a batalha, ele
parecia completamente satisfeito. Eu me aconcheguei a ele de novo, mas mantive os olhos fechados até a guerra acabar.
Enquanto rolavam os créditos, ele tirou os fones de ouvido e disse:
— Foi mal, eu estava submerso na nobreza do sacrifício. O que você ia dizendo?
— Quantas pessoas acha que morreram?
— Tipo, quantas personagens fictícias morreram neste filme fictício? Não o suficiente — ele brincou.
— Não, quer dizer, tipo, desde sempre. Tipo, quantas pessoas você acha que já morreram até hoje?
— Por acaso, eu sei a resposta para essa pergunta — ele disse. — Há sete bilhões de pessoas vivas no mundo, e mais ou menos noventa e oito bilhões de mortos.
— Ah — falei.
Eu achava que porque o crescimento populacional tinha sido muito acelerado, houvesse mais pessoas vivas do que todos os mortos juntos.
— Há cerca de quatorze pessoas mortas para cada vivo — ele disse.
Os créditos continuaram rolando. Demorava muito para que todos os cadáveres fossem identificados, imagino. Minha cabeça ainda estava encostada no ombro dele.
— Pesquisei isso uns anos atrás — o Augustus continuou. — Eu estava me perguntando se todo mundo poderia ser lembrado. Tipo, se nós nos organizássemos, e designássemos uma determinada quantidade de cadáveres para cada vivo, será que haveria pessoas vivas o suficiente para se lembrar de todos os mortos?
— E há?
— Claro. Qualquer um pode listar quatorze mortos. Mas nós somos uns pranteadores muito desorganizados, por isso acaba que muitas pessoas se lembram de Shakespeare e ninguém nem pensa na pessoa para quem ele escreveu o soneto cinquenta e cinco.
— É — falei.
Fiquei em silêncio por um minuto, e aí ele perguntou:
— Você quer ler ou alguma coisa assim?
Respondi que sim. Comecei a ler um poema chamado Uivo, de Allen Ginsberg, para minha aula de poesia, e o Gus pegou para reler o Uma aflição imperial.
Depois de um tempo, ele falou:
— É bom?
— O poema? — perguntei.
— É.
— É. É muito bom. Os caras nesse poema tomam mais drogas que eu. Como está o UAI?
— Ainda perfeito — ele respondeu. — Recite para mim.
— Esse não é bem o tipo de poesia para você ler em voz alta com a mãe dormindo ao lado. Tem, tipo, sodomia e pó de anjo — falei.
— Você acabou de mencionar dois dos meus passatempos favoritos — ele disse.
— Tá, então recite alguma outra coisa para mim.
— Humm — falei. — Eu não tenho mais nada.
— Que pena. Estou seco por uma poesia. Você sabe alguma de cor?
— "Sigamos então, tu e eu" — comecei, meio nervosa. — "Enquanto o poente, no céu se estende / Como um paciente anestesiado sobre a mesa."
— Mais devagar — ele pediu.
Eu fiquei com um pouco de vergonha, como quando contei a ele sobre o Uma aflição imperial.
— Ah, tá. Tá. "Sigamos por certas ruas quase ermas, / Através dos sussurrantes refúgios / De noites indormidas em hotéis baratos, / Ao lado de botequins onde a serragem / Às conchas das ostras se entrelaça: / Ruas que se alongam como um tedioso argumento / Cujo insidioso intento / É atrair-te a uma angustiante questão… / Oh, não perguntes: ‘Qual?’ / Sigamos a cumprir nossa visita."
— Estou apaixonado por você — ele disse, baixinho.
— Augustus — falei.
— Eu estou — ele disse, me encarando, e pude ver os cantos dos seus olhos se enrugando. — Estou apaixonado por você e não quero me negar o simples prazer de compartilhar algo verdadeiro. Estou apaixonado por você, e sei que o amor é apenas um grito no vácuo, e que o esquecimento é inevitável, e que estamos todos condenados ao fim, e que haverá um dia em que tudo o que fizemos voltará ao pó, e sei que o sol vai engolir a única Terra que podemos chamar de nossa, e eu estou apaixonado por você.
— Augustus — repeti, sem saber mais o que dizer.
Senti como se tudo estivesse crescendo dentro de mim, como se eu me afogasse numa alegria estranhamente dolorosa, mas não consegui dizer aquilo de volta. Não consegui falar nada. Só olhei para ele e deixei que olhasse para mim, até que ele assentiu, comprimiu os lábios, virou para o
outro lado e encostou a cabeça na janela.



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Autor(a): pedry

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Acho que ele deve ter acabado dormindo. Eu peguei no sono, e acordei com o barulho do trem de pouso sendo baixado. Estava com um gosto horrível na boca, por isso tentei mantê-la fechada com medo de intoxicar o avião inteiro. Virei para o Augustus, que olhava pela janela, e enquanto mergulhávamos através de um bloco de nuvens baixas endireite ...


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Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 1



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  • duda__vondy Postado em 02/07/2014 - 14:02:19

    Oie , adorei vc ta postando o livro !!


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