Fanfics Brasil - Capítulo 40 O amor e um anjo ~

Fanfic: O amor e um anjo ~


Capítulo: Capítulo 40

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 Ablon: Você sabe que lugar é esse ? - perguntei - 


Orion: Não tenho certeza - ele respondeu - Os barqueiros do Styx nunca pegam a mesma rota mais de uma vez. Imagino que estejamos cruzando a Arcádia, a terra das fadas. 


Ablon: A terra das fadas – concordei - Ela é incompreensível até mesmo para nós. Mas pensei que as fadas vivessem no plano etéreo, que permeia o mundo físico. Não imaginava que tivessem também uma dimensão só para elas. 


Orion: Alguns dizem que elas migraram para o mundo dos homens há muito tempo, mas é a Arcádia sua casa central - ele arriscou -  


Ablon: E por onde mais deveremos passar ?


 Orion: Não sei. Foi Amael quem liderou toda a barganha. Ele me disse que o rio Styx era largamente usado antigamente, pelos deuses pagãos, e que foi abandonado depois das Guerra Etéreas. Contou-me sobre a lenda dos leviatãs, barcos como este, mas gigantes, capazes de transportar milhares de almas. 


Não muito depois, o barco fez uma curva a direita, invadindo um canal secundário e subindo o rio contra a corrente. A visibilidade era boa, e logo a frente avistamos uma pequena cascata, cuja queda descia por uma encosta rochosa. Pelo curso da embarcação, passaríamos bem embaixo da cachoeira. Senti os respingos, mas as águas se abriram e o barco correu para dentro de um túnel lotado de estalactites. A sensação de tranquilidade foi ficando para trás. 


Gritos de desespero se fizeram, terríveis berros humanos, cheios de pavor e angustias. Por algum motivo, achei que estávamos no caminho certo para o inferno. Com meus sentidos apurados notei, mesmo na escuridão, que as paredes de pedra eram decoradas com rostos de homens e mulheres, que se moviam presos a argila. 


Enfim, o barco deslizou para fora do túnel e saiu em campo aberto. Prosseguiu rio abaixo por uma região detestável, de céu avermelhado, conhecida pelo nome de vale dos Condenados. Uma planície tenebrosa nascia a margem do rio, e seu solo estava amontoado, até onde a vista alcançava, de pedaços de corpos humanos que se contorciam em agonia. 


Criatura hibridas - misturas bizarras de homem e bicho - pulavam sobre os cadáveres, mordendo e devorando-lhes as carnes. Em alguns pontos, buracos no chão cuspiam jatos de fogo, formando línguas de chamas.


Ablon: Este lugar sempre foi horroroso - divaguei - mas, percebo claramente o toque pessoal de seu amo aqui, Lúcifer transformou Sheol em uma segunda Gehenna. 


Orion: Meu amo é o senhor da dor e do desespero. Mas não sinta pena daqueles que você vê sofrendo aqui. Eles fizeram por merecer. 


Sob os meus pés, o soalho de vime tremeu. Eram os condutores que atracavam o barco, prendendo as cordas as hastes do fundeadouro - uma apavorante estrutura, toda feita com ossos humanos. O Rei Caído deixou a embarcação e seguiu por uma estrada pavimentada de crânios, que passava em meio aos corpos e ia terminar na boca de uma caverna de pedras chamuscadas. Em algum lugar ali dentro, a Estrela da Manhã aguardava seu convidado. 


Pisei fora do barco, tencionando acompanhar meu amigo, mas alguém me segurou pelo braço. Como não tinha sentido nenhuma vibração, imaginei que fosse um dos barqueiros, mas ao me virar descobri o pobre Amael, o Senhor dos Vulcões. Conservava a aparência humana, que usara para ir a Haled. Os olhos castanhos eram profundos, afundados em olheiras pesadas. O cabelo longo e crespo pingava de suor, e ele parecia muito fraco e exausto, até mesmo a fala vacilava.


 Amael: General... você me perdoa ? Perdoa-me pelo o que eu fiz ? - sua voz soou rouca, como um suspiro de um doente final - 


Não pude ficar insensível a situação. Tive pena do infernal, uma entidade perturbada, cheia de mágoa no coração.


 Ablon: Você não precisa do meu perdão, Amael. Além disso, quem sou eu para perdoá-lo ? Sou apenas um fugitivo, só isso - retruquei, meio sem jeito - 


 Não me via na posição de juiz, muito menos de salvador.  O olhar do zanathus brilhou de esperança, e ele voltou a suplicar.


 Amael: Você sabe que o que fiz foi errado. Nunca concordou com as ordens dos arcanjos. Sabia que Miguel ordenava as catástrofes porque odiava os terrenos, tinha inveja deles. Aqui, no porão, a maioria acha que agi corretamente. É por isso que preciso do seu perdão – implorou - 


Analisei o infeliz, com toda piedade do mundo, e pousei-lhe a mão no ombro, só para confortá-lo. 


 Ablon: Se isso vai fazê-lo sentir-se melhor, então eu perdoo. 


 Amael: Obrigado, general - ele abaixou a cabeça, agradecido - Um dia redimirei por completo. É uma promessa. 


 Já a distancia, o Rei Caído de Atlântida, parado sobre a via de crânios, me chamou. 


 Orion: Ablon, meu senhor o aguarda.


 Voltei-me ao abatido Amael pela ultima vez, mas ele já tinha regressado a penumbra.  Tentei esquecer a cena do barco.  Tentei expulsar a angustia do coração.  Tentei esquecer a dor daqueles que estavam sofrendo, no céu, na terra e também no inferno.  Deixei os tormentos para trás e retomei a confiança.


 Dei as costas para o ancoradouro e segui em frente, diretamente ao covil da serpente. A entrada da caverna estava sendo vigiada, e seu guardião não era uma sentinela comum.


 Ninguém menos do que o demônio Apollyon, o Exterminador, antes conhecido como Anjo Destruidor, um dos assassinos mais temidos do inferno, defendia a passagem.


 Coincidência ou não, era também o meu maior inimigo, e isso já havia milhares de anos. Alguns dizem que as antigas inimizades nunca se acabam, mas ganham força, acumulando ódio e fúria, e por vezes explodem em ataques violentos. Durante a maior parte de minha existência soube controlar minha ira, mas a presença do malikis sempre despertava uma raiva especial. Dessa vez, porém, era eu quem dava as cartas. 


Havia sido convidado e contava com a proteção do chefão. Preferi, então, conter meus impulsos destrutivos e não acometer de primeira. Quando nos encaramos, porém, a tensão não pode ser evitada. Eramos combatentes por natureza e desejávamos, os dois, entrar em duelo. O demônio avançou, mas Orion o deteve. 


Orion: Afaste-se, Apollyon, ele é nosso convidado. 


O Exterminador segurava uma espada mistica, a famigerada Fogo Negro, conhecida por ser a arma mais poderosa do universo, superando até mesmo as relíquias dos arcanjos. Pertencera ao deus Behemot, servo de Tehom, e fora um presente de Lúcifer. Conhecida por tomar parte em incontáveis crueldades, sua lamina era escura, larga e pesada, e ardia em chamas negras, espectrais. Era cobiçada por todos os demônios guerreiros, mas não havia quem roubasse de seu esgrimidor.


 Agressivo, ele desembainhou sua folha, mas a manteve apontada ao chão. O corpo do Destruidor parecia humano, mas o rosto deformado denunciava a marca de sua discórdia. Os olhos eram como globos pretos, e da boca saltavam duas fileiras de dentes pontudos. Uma longa queimadura do lado direito da face, que começava na cabeça e terminava no queixo, deixava a carne exposta, revelando parte dos músculos e dos tecidos do cranio. O ferimento fora infligido pela Flagelo de Fogo, a espada flamejante do arcanjo Gabriel, durante a guerra no céu. 


Apollyon era mais alto e mais forte que eu, mas não tão ágil e resistente. Suas asas estavam recolhidas, imperceptíveis. O malikins não liberou o caminho, então o satanis forçou a passagem. Mas o guardião não queria ceder e apertou forte o cabo da espada. Seu olhar me fulminava.


 Apollyon: Ablon, o Anjo Renegado... - desdenhou o assassino, numa voz inumana - Deve ter muita coragem para vir aqui, sozinho e desarmado - o comentário soou como uma ameaça - 


 Ablon: Eu imaginei que você não entenderia - respondi, impassível - Mas não estou desarmado – e olhei para os meus próprios punhos - Acho que posso fazer um bom estrago com o que já tenho - provoquei, referindo-me, obviamente, a minha técnica de batalha, a Ira de Deus -


 O demônio guerreiro sorriu, malicioso. 


 Apollyon: Continua arrogante. Tem sorte de estar vivo. Seus amigos, porém, estão todos mortos. Eu mesmo acabei com muitos deles. A cabeça de seu principal comparsa, Yarion, tem lugar de honra em meu castelo. A Irmandade dos Renegados sucumbiu finalmente. E, em breve, você encontrará a mesma fortuna.


 Ablon: Se é assim tão capaz, por que nunca me venceu ? Eu sempre estive na Haled, a sua espera. Muitos demônios encontraram o meu rastro, e a todos superei.


 A cólera é um sentimento inerente aos malikis, a ordem de diabos guerreiros.  Apollyon era a imagem do caos e pouco podia fazer para segurar sua raiva.  Não estava preocupado em dominar seu ardor, mas só em destruir, liquidar, esmagar. 


 Assim, a minha declaração, investiu sem pensar, erguendo a espada em posição de combate.  Mas eu não me movi, antes que o Exterminador atacasse, o Rei Caído de Atlântida se interpôs entre nós, esfriando a tensão.


 Orion: Não, Apollyon. Não haverá peleja neste lugar - censurou, usando toda sua oratória monárquica - Já disse que Lúcifer tem assuntos com ele. 


 Furioso, o Destruidor acatou, sem saber ao certo por que, e liberou a entrada. 


 Ablon: Tenha paciência, malikis – instiguei - O Dia do Ajuste de Contas está próximo.


 Ainda cheio de raiva, mas impedido de avançar pelos poderes repelentes de Orion, o infernal replicou, em caráter profético: 


 Apollyon: Ablon, seu destino é tão rubro quanto suas asas. 


 Ablon: E o seu é tão negro quanto seu coração.


Orion e eu descemos por tuneis obscuros, que terminavam em um grande salão escavado na pedra. Uma galeria nascia além da passagem e estava abarrotada de ossos, do chão as paredes. Labaredas ocasionais brotavam do solo, iluminando o cenário e soltando fumaça. Apesar da amplitude da gruta, experimentei uma desagradável sensação de claustrofobia, talvez por causa da atmosfera enevoada, que reservava zonas de penumbra aqui e ali, ocultando inomináveis perigos. 


Lúcifer, a Estrela da Manhã, estava no fundo da furna, elegantemente sentado em seu trono de crânios. Sua postura majestosa era muito superior a dos lideres comuns e imitava a imponência de um deus. De longe, parecia um homem belíssimo, de rosto juvenil, traços finos e aparência angelical. A pele era macia, delicada, e os olhos refletiam um azul profundo, tal qual o brilho do céu. Os longos cabelos loiros estavam presos em trança, atados por pequeninos fios de ouro. 


Uma túnica de seda branca cobria-lhe todo o corpo delgado, deixando escapar a única coisa que realmente distinguia como um ser infernal, um horrendo par de asas de morcego. 


Em pé ao seu lado, estava seu principal conselheiro, o odioso demônio Samael. A primeira vista, era só uma criaturinha desprezível, magra e esguia. Tinha o corpo como o das serpentes e uma língua dupla que se agitava para dentro e para fora da boca, pro entre as presas ofídicas. Andava se arrastando, pois não tinha pernas, só braços, iguais aos humanos, em contraste com sua forma bizarra. Quando ainda era um anjo, Samael for incumbido da tarefa de transmutar-se em cobra e ir ao Jardim do Éden tentar o memorável Adão.


 Sua natureza vil e perigosa o aproximou de Lúcifer desde o inicio, e depois da queda acompanhou seu mestre as trevas do Sheol. Ao converter-se em demônio, continuou deixando sua marca detestável na humanidade, tendo guiado inúmeras almas a corrupção. Ficou tão famoso entre os terrenos que muitas vezes foi confundido com o próprio Diabo, recebendo dos mortais a designação de Satã ou Satanás. Orion se ajoelhou diante de seu mestre, espalhado na cadeira de ossos. Mas atrás, estava em alerta. 


Lúcifer: Bom trabalho, meu servo - elogiou, reconhecendo o esforço do Rei Caído - Agradeço por sua lealdade.  - Depois, me encarou, satisfeito, e voltou-se a seus comandos - Orion, Samael - falou aos demônios - Podem ir agora. 


Orion: Sim, meu amo - aceitou, retornando ao mesmo túnel por onde tinha entrado -


 Samael se arrastou e desapareceu em um canto obscuro. Quando teve certeza de que seus súditos já não o escutavam, o Filho do Alvorecer relaxou e abriu um sorriso cordial. 


Lúcifer: Não imagina como estou feliz por ter aceitado meu convite. 


Ablon: Poupe-me de suas amabilidades, Lúcifer. Esta é uma viagem de negócios. 


Lúcifer: Mas é claro que é - acedeu, com um sorriso malvado, ocultado pela fumaça das labaredas - 


Ablon: O que aconteceu com seus chifres e cauda ? Você parece ter mudado bastante desde a ultima vez que o vi. 


O Arcanjo sombrio se levantou, deixando transparecer muita calma. A autoconfiança certamente era sua característica mais importante. 


Lúcifer: Ora, general, não fique impressionado. Posso assumir qualquer forma. No principio até e me surpreendia, mas depois de tantos anos a coisa vai ficando aborrecida. “ O Diabo tem muitas faces ”. Você já deve ter ouvido isso em algum lugar. 


Minha expressão séria não se alterou, apesar do humor diabólico.


 Ablon: Entendo - disse apenas, como quem não vê graça e uma piada de mau gosto .-


Lúcifer caminhou firme na minha direção, mas estacou a uma distancia aceitável. 


Lúcifer: A propósito, espero que Apollyon não tenha causado problemas na entrada. Se o fez, peço desculpas. Tente compreender que ele e você são como os dois lados de uma moeda. Absolutamente diferentes, mas pertencendo a mesma peça.


 Ablon: O que quer dizer ? - reagi, perguntando a mim mesmo se aquele não era mais um dos muitos estratagemas da espécie infernal -


 Lúcifer: Perceba, o destino de vocês está unido desde o principio. Apollyon uma vez foi um anjo, encarregado de destruir Sodoma e Gomorra. E sabemos que a conjuração que você comandou foi deflagrada quando Miguel ordenou a aniquilação dessas duas cidades. Infelizmente vocês puseram tudo a perder quando levantaram armas contra o conselho.


 Ablon: Infelizmente - apressei em esclarecer - confiei minha revolta a um dos arcanjos, a um dos grandes. Acreditava que ele também estava indignado com a tirania do príncipe e com sua intenção de acabar com a humanidade. - Ao dizer isso, olhei zangado para ele e completei - Mas esse arcanjo me traiu. 


O filho do Alvorecer logo entendeu a indireta e passou a defensiva.:


 Lúcifer: Eu não queria de fato fazê-lo, Ablon, juro a você! - protestou, com um toque de inocência infantil - 


Ablon: Então por que o fez ? Você sabia que delatando a conjuração conseguiria mais poder e prestigio. Foi por isso, não foi ? Ambição. 


Lúcifer: Sim, sim! - exclamou, excitado por ter a oportunidade de expor sua versão - Eu os delatei para poder subir na hierarquia e me igualar a Miguel. Só assim poderia arquitetar minha própria rebelião e ter a chance de sair vitorioso. Eu sabia que vocês nunca despojariam o tirano. Eram apenas dezoito. Dezoito anjos! - ele se esforçava para ser convincente - Eu, ao contrário, consegui trazer um terço do céu para o meu lado. Tínhamos realmente a chance de vencer. Será que entende agora ? Não foi nada pessoal. Nunca tive coisa alguma contra você. Sempre admirei sua vontade e sua perseverança. Mas tive de sacrificar a irmandade para dar inicio a algo muito maior, que, eu imaginava, duraria para sempre. 


Ablon: Não seja hipócrita, Lúcifer. Você nunca quis o bem dos humanos, tampouco dos anjos. Queria depor Miguel por razões particulares. Queria tomar o lugar dele e ascender acima de Deus. 


Lúcifer: Isso não é verdade, general. Quero o bem da humanidade. E foi por isso que o chamei aqui. Para evitar que nosso inimigo traga o Armagedon sobre a terra. 


Ablon: E por que você acha que eu ia querer impedi-lo ? O Armagedon marca o despertar do Altíssimo. Yahweh acordará de seu sono e punirá os injustos. 


Lúcifer: Ora, Ablon, pense bem! Se isso é verdade, então por que Miguel está se preparando pra o Juízo Final, por que está tão ávido por esse momento ? Ele é um opressor e seguramente o primeiro a ser condenado se o Criador acordar. 


Ablon: Qual a sua hipótese, então ? 


Lúcifer: Miguel provavelmente descobriu um meio de usar a energia que será desprendida ao despertar do Altíssimo para se converter em um deus, ele próprio. - declarou, chegando ao ponto em que queria - 


Eu estava confuso. 


Ablon: Isso é possível ? 


Lúcifer: Sem duvida.


Eu sabia que a Miguel não faltava vontade de tornar-se onipotente. Sua gana de poder era ilimitada. Ele seria capaz de qualquer coisa para alcançar a divindade, até mesmo roubar a energia do Pai. Quanto a isso eu tinha certeza, mas como o príncipe pretendia implementar seu projeto macabro ? 


A Estrela da Manhã passeava pela caverna, aguardando minha reflexão. 


As asas de morcego movimentavam-se lentamente, para a frente e para trás, acompanhando o caminhar elegante. Parou ao lado de uma lareda e brincou com o fogo, pondo o dedo na chama. 


Lúcifer: Estou pedindo sua ajuda para impedir que o Príncipe dos Anjos conclua seu plano terrível, poupando assim milhares de vidas humanas – desfechou -


 Ablon: Se é verdade que Miguel pretende ascender ao nível de Deus, o que me garante que você não tentará imitá-lo ?


 Lúcifer: Já disse que não quero ser Deus, Ablon. Talvez no passado, quando ainda era um arcanjo, isso tenha me passado pela cabeça, mas hoje não. De uma olhada a sua volta. Tenho meu próprio reino aqui. Tenho meus servos. Nada me ameaça, nem as legiões celestiais - garantiu, caminhando de volta ao trono - Trazer as almas injustas para cá e torturá-las é o que eu gosto de fazer, você sabe disso. Para mim, é imperativo preservar as coisas como estão. Anjos no céu; e nós, demônios, no inferno. Não há ninguém que se beneficie mais com essa disputa do que eu. Ela move o paraíso também, mas a verdade é que meu irmão percebeu que esta perdendo. A degradação tomou conta da humanidade. Cada vez mais, os mortos vem até mim. Por isso Miguel quer o fim do mundo, quer que o tecido se desintegre logo. - O Diabo se sentou novamente e teceu uma explicação mais detalhada - Nós, os infernais, não temos devaneios de pureza. Veja o caso daqueles que morrem em bondade. Seus espíritos seguem ao céu e lá permanecem por toda a eternidade, enfiados naquelas chatíssimas colonias celestes. Os arcanjos nunca permitiriam que se tornassem alados, mas nós... ah, conosco é diferente – regozijou-se - Toda alma corrompida que vem para cá tem sua chance de crescer, de prosperar e de vir a comandar hordas inteiras. Não é um caminho fácil, é claro, mas com isso nossas forças estão se multiplicando. Em breve teremos contingente suficiente para invadir o paraíso. - Não gostei nem um pouco do que ouvi, mas Lúcifer me tranquilizou - É claro que não pretendemos fazer nada disso. Sei, melhor do que ninguém, que não há trevas sem luz. Mas a verdade é que aquele déspota lá no poleiro - e apontou um dedo para cima - está se borrando de medo do que eu possa vir a fazer - o tom ficou mais agressivo - e encontrou a hora certa para agir. 


A capacidade de persuasão do demônio era lendária. Por muitas vezes, tinha repetido para mim mesmo que recusaria o acordo, mas agora não podia negar que estava ansioso para ouvir a proposta. Ainda não sabia se a aceitaria, mas o fato era que os argumentos do Arcanjo Sombrio faziam todo sentido. Poucas vezes escutei verdades tão sérias sobre o tirano Miguel, e as proposições de Lúcifer, com efeito, eram postas de forma que ambos parecíamos já aliados contra um perigo maior. 


Ablon: Digamos que eu aceite. Qual é minha parte no acordo ? 


O Filho do Alvorecer sorriu na penumbra e se ajeitou no trono de ossos. 


Lúcifer: Você conhece a Fortaleza de Sion. - Não era uma pergunta. -


Ablon: Eu a vi ser construída. 


Lúcifer: Em uma câmara no penúltimo andar de Sion, está a Sala dos Portais. É um aposento circular, com muitas portas, que na verdade são passagens misticas para outros planos de existência. Uma delas leva ao Sheol, ligando a câmara a um ponto especifico no inferno, muito próximo a esta caverna em que estamos agora. O que você precisa fazer é entrar na torre e abrir a porta correta. Assim, eu e minhas hostes poderemos invadir o baluarte por dentro. Pegaremos Miguel desprevenido e o mataremos, abreviando assim seus dias de crueldade. De outra maneira, nunca poderíamos penetrar na bastilha. - Fitei o vazio, digerindo aquelas palavras. -


Enquanto isso, Lúcifer enfiou a mão em um buraco ao lado do trono e de lá tirou um objeto rústico, moldado em barro sólido. Tinha a forma de uma cruz, envolta por um anel, e o tamanho não superava o de uma palma aberta. A aparência era ordinária, mas suas vibrações eram muito fortes. A superfície estava marcada por inscrições misticas, em uma linguagem só acessível aos anjos.


Lúcifer: Pegue! - e jogou o objeto no ar, agarrei por reflexo - Está é a chave. Basta que você a encaixe na cavidade da porta e empurre a passagem. Estaremos lá em instantes. 


Analisei a relíquia e constatei sua autenticidade. 


Ablon: Por que eu ? - indaguei de repente, ainda relutante em concordar - Por que você precisa de mim para fazer o serviço ? -  Lúcifer me contemplou, com certo ar de admiração -


Lúcifer: Primeiro por que você é o melhor combatente que conheço. Depois de tudo pelo que passou e de todos os inimigos que enfrentou, não creio que haja no mundo quem possa vencê-lo em combate direto - era um exagero, é claro, mas a Estrela da Manhã entendeu que deveria me exaltar, como técnica de eloquência - Segundo, porque você viveu muito tempo na Haled e sabe melhor do que ninguém ocultar sua aura pulsante. Por isso, os guardiões de Sion não poderão ser alertados de sua presença, se decidir por uma infiltração sorrateira, o que recomendo fortemente. Afinal, nem mesmo um general sobreviveria a um exército de querubins furiosos  - concluiu e aguardou minha reação, me deixando bem a vontade - 


Ainda estava indeciso, mas não sabia exatamente por que. Como poderia acertar um pacto com a mesma entidade que, havia anos, me pusera e a meus amigos na linha de fogo ? 


Lúcifer: O que eu lhe ofereço - reforçou, percebendo minha hesitação - não é apenas a oportunidade de derrotar Miguel. É a chance de salvar o universo. 


Ponderei. Não era exatamente aquilo que esperava ouvir do Senhor do Sheol. O Diabo sempre tinha palavras corretas para o momento mais oportuno. Em contendas verbais era invencível. 


Lúcifer: Escute, guerreiro - prosseguiu, emendado um novo assunto -, não ache que estou alheio ao que acontece na terra. Sei que os homens estão envolvidos em sua própria guerra e que desenvolveram armas capazes de devastar o planeta. Mas para nós, imortais, essas bombas que ameaçam cair são apenas sinais que nos indicam a iminência do Apocalipse. Por mais que os humanos tentem se destruir, nunca terão sucesso absoluto. Nem mesmo nós conseguimos isso. Você se lembra da era glacial ? Lembra-se do diluvio ? Já perdi a conta de quantos cataclismos os arcanjos fomentaram - e ajustou a tonalidade da voz, para parece mais dramática - Não... os terrenos vão sobreviver a esta guerra mundial, como já fizeram anteriormente, e seus remanescentes ressurgirão das ruínas. Entretanto, se Miguel conseguir o que planeja, os massacres continuarão. Sem o tecido da realidade para limitar-lhes os poderes, os anjos da morte vagarão pelos escombros ceifando cada vida humana, até que não reste mais “nenhum primata para sujar a criação”. Mas... - o tom mudou novamente, assumindo um caráter glorioso - se vencermos... Se vencermos tudo voltará a ser como era antes da tirania, e o paraíso será finalmente governado pelos alados devotos da palavra de Deus. Você alcançará sua redenção e voltará ao céu como herói.


Ablon: E quanto a Deus ? - surpreendi, encurralando o infernal - 


Lúcifer: Deus ? - pela primeira vez Lúcifer se complicou, mas com sua mente aguçada logo contornou a situação - Bem... Se Yahweh acordar mesmo, general, então saberá o que fazer. Mas acho que não devemos contar mais com isso. Caso queira mesmo saber, minha consciência está limpa. Sempre fiz o que achei certo. Nunca me curvei e nunca me curvarei a um assassino. Todavia, tenho ciência de que não serei meu próprio juiz. Se o Altíssimo resolver me punir, não poderei fazer nada além de aceitar a sentença. Não tenho vergonha dos meus pecados, porque não são maiores do que os erros dos outros. 


Foi um discurso impressionante, reconheci, mas será que as palavras do Arcanjo Sombrio eram verdadeiras, ou aquilo não passava de uma encenação para me empurrar a armadilha ou me usar como peça em seu jogo ? 


O Filho do Alvorecer era astuto, traiçoeiro e, acima de tudo, sedutor. Dominava a oratória e sabia explorar os pontos fracos de seus entrevistados. Qualquer um se dobraria facilmente a ele, sobretudo diante de uma proposta tão tentadora: destruir o perverso Miguel, salvar a humanidade e retornar ao paraíso. O que mais um anjo renegado poderia querer ?


 Tudo se encaixava e, pelo o que conhecia da personalidade de Lúcifer, ele não estava sendo adverso a sua natureza. 


Todos ganhariam: anjos, demônios e homens. É claro, muitos mortais seriam vitimados pela força de suas armas humanas e pela guerra que eles próprios arquitetaram. Mas eu já testemunhara situações bem piores, como a que sucedeu ao diluvio, quando somente alguns poucos terrenos sobreviveram, e mesmo reduzidos revitalizaram toda a civilização. As evidencias me empurraram para a resposta positiva, mas meu veredicto final surpreendeu o Diabo. 


Ablon: Não posso fazer isso, Lúcifer. 


Lúcifer: Não compreendo, general - sua expressão era séria, mas neutra - Se nos unirmos, poderemos concretizar aquilo que tanto eu como você sempre sonhamos: por fim a opressão dos arcanjos.


Ablon: Sou um anjo renegado. Nunca tomei parte neste confronto entre o céu e o inferno porque nunca concordei com ele. E não será agora, próximo do fim, que vou mudar minha posição - e virei o corpo, já me preparando para deixar a caverna - Mas não se preocupe. Suas informações estão seguras comigo. Vou usá-las da melhor forma e talvez até faça alguma coisa para deter o Armagedon - e acrescentei, com firmeza -, mas não será ao lado de um traidor. 


As palavras saíram agressivas, mas não havia raiva em meu coração. Era uma opinião sólida, consciente, que provinha da experiencia, e não do furor da vingança. Na verdade, Lúcifer, nunca fora o objeto de minha vingança, nem mesmo o arcanjo Miguel, e sim o demônio Apollyon, que torturara meus amigos. 


Preparado para qualquer investida, fechei os punhos e recuei uns dois passos. Lúcifer não era o tipo que engolia desaforos e talvez não tivesse gostado de ter sido chamado de traidor. Mas, como o demônio observara anteriormente, eu era um oponente inigualável, e agora contava com a proteção das runas mágicas gravadas nos braços. 


Contrariando todas as expectativas, Lúcifer replicou: 


Lúcifer: Respeito sua decisão, general. Se é nisso que acredita, então que assim seja. 


Sim, era isso. E ponto final. Não havia muito mais a dizer, e eu não estava disposto a continuar por ali, em tão funesta companhia. Caminhei a saída, mas me lembrei que ainda segurava a chave de pedra. Como não tinha selado nenhum acordo, achei por bem devolvê-la, mas a Estrela da Manhã me impediu. 


Lúcifer: Não, Ablon, fique com a chave. Para o caso de você mudar de ideia. - Estranhei. -


Lúcifer sempre fora esperto e prudente, mas não havia prudencia alguma em deixar uma peça tão importante em poder de alguém que não fosse seu aliado. Imaginei que aquela atitude poderia ser calculada, uma ação posta em prática para me fazer reconsiderar,.Mas, se esse era seu objetivo, o Arcanjo Sombrio falhara. Não estava disposto a entrar na ciranda. 


Movi a cabeça em negativa e mais uma vez pensei em largar o objeto, porém o anfitrião reiterou: 


Lúcifer: Não se preocupe comigo. Mandei fazer uma cópia - declarou, piscando um dos olhos e reassumindo sua faceta sarcástica - Leve-a com você. 


Por fim, concordei, e guardei a relíquia no bolso, não havia mal algum em ficar com ela. Talvez suas vibrações pudessem me denunciar, mas quem viria caçar-me, a esta altura ? Acabara de me encontrar com o próprio Diabo, e, se Miguel em pessoa aparecesse para me matar, eu o enfrentaria. Novamente, refleti todas as artimanhas e trapaças possíveis e conclui que Lúcifer não era mais uma ameaça. Em seguida, deixei a caverna. 


Minha ultima visão foi bem parecida com a primeira: vislumbrei o diabo sentado em seu trono de crânios, com a expressão indecifrável por trás da fumaça. Enquanto caminhava rumo a saída da caverna, percorrendo aqueles nebulosos tuneis de pedra, entendi que não estava realmente seguro enquanto continuasse ali, no inferno, a mercê de meus inimigos. 


 Sempre soube, de fato, que aquele dia seria o momento mais critico, uma vez recusada a aliança, nada impediria Lúcifer de ordenar minha morte. 


 Por isso, não ficaria espantado se encontrasse um grupo de extermínio a minha espera, pronto para aniquilar-me na passagem adiante.  Foi com surpresa, entretanto, que me deparei com o caminho livre. 


 Ao contrário de uma recepção brutal e sangrenta, tudo o que percebi foi a abertura na caverna a minha frente e a extensa via de ossos que levava ao ancoradouro, onde os barqueiros esperavam para me levar de volta. 


 Orion estava lá, aguardando meu retorno, mas não vi sinal de Apollyon, e isso me perturbou seriamente.  O Rei Caído de Atlântida se aproximou pela estrada de ossos, sempre mancando com a dor no joelho. 


 Orion: Você recusou a aliança, não foi ? - perguntou, já prevendo a resposta - 


 Ablon: Como você já imaginava. 


 Fomos andando na direção do barco de vime.  Ali, os sinistros condutores preparavam suas varas. 


 Orion: Esta poderia ter sido nossa ultima chance de vencer o arcanjo Miguel - lamentou o atlante, visivelmente desconsolado - 


 Ablon: Não confio em Lúcifer. Por trás daquele discurso apaixonante, há uma mente doentia e maligna. O Diabo mente sempre, e por isso é totalmente imprevisível. Não, Orion, já fui suscetível as ideias dele, mas desta vez eu pude, de alguma forma, ver a sombra da traição em seus olhos. Ainda não sei ao certo o que ele planeja, mas nada é como parece. Algo me diz que estamos sendo usados como peões em uma conspiração gigantesca. Todos nós. Inclusive você. 


 Orion também já tinha sido enganado por Lúcifer, assim como Amael e tantos que se entregaram a rebelião. 


 Outros, como Samael e Apollyon, desde sempre tiveram o coração corrompido, e para esses não houve graça maior do que serem atirados ao inferno.  Para o Rei de Atlântida, então, que conhecia melhor do que ninguém as múltiplas faces de seu amo, as minhas desconfianças não eram de todo infundadas. 


 Ao ouvir a advertência, o satanis assentiu levemente com a cabeça, mas não ousou ir além.  Antes de entrar no barco, olhei mais uma vez para trás, para a entrada da gruta, e uma sensação pavorosa me assaltou. 


 Ablon: Vamos embora, Orion. Alguma coisa terrível está para acontecer.



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Autor(a): Fraanh

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Comentários do Capítulo:

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  • fraanh Postado em 16/10/2014 - 20:18:52

    Por mais que eu esteja postando a primeira temporada rapidamente só para continuar a segunda (já que tive que sair do orkut), eu devo, com toda a educação do mundo, dar as boas vindas as leitoras que não me acompanharam antes, então, sejam bem vinda meninas, espero que estejam gostando, comentem por favor, eu não mordo não *-*


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