Fanfic: O amor e um anjo ~

A Torre das Mil Janelas

 O terrifico Anjo Negro, com suas distinguíveis asas de penas pretas e o elmo fechado a cobrir todo o rosto, voava pelo plano etéreo, levando a mulher desacordada nos braços.  Era Vick, e ela não podia atravessar o tecido da realidade sem o recurso de um portal, pois, era humana. 

 Mas o Anjo Negro tinha habilidades magnificas, e uma delas era a propriedade de “abrir todas as portas”.  Podia, portanto, se mover a vontade pelos planos, cruzar a membrana, atravessar o astral e invadir o etéreo.  Dentre todas as edificações do etéreo, a Fortaleza de Sion é a mais magnifica. 

 Suas proporções superam em todos os aspectos as estruturas humanas -mais parece uma torre, edificada em cem anéis decrescentes, um sobre o outro, terminando em um pequenino pátio circular, onde está fixado o maior dos artefatos do mundo, a Roda do Tempo, o circulo mistico criado por Deus para marcar a continuidade do sétimo dia. 

 A magnitude da fortaleza é tamanha que o primeiro anel, a base, chega a superar três mil metros em diâmetro. 

 De suas paredes externas, assentadas por uma rocha avermelhada, nascem dezenas de milhares de sacadas, janelas e umbrais, cautelosamente vigiados pelos poderosas legiões de querubins que guardam e cercam o perímetro. 

 Em seu interior, um numero incalculável de câmaras e salas dá abrigo aos partidários do arcanjo Miguel, anjos vis, invejosos, que deixaram suas moradias no paraíso para lutar a grande Batalha do Armagedon. 

 A fortaleza é chamada também de Torre das Mil Janelas, embora tenha muito mais do que um milhar de passagens.  O Anjo Negro voou por cima do circulo de montanhas que protegia Sion e se aproximou da torre. 

 Adiante, quase no horizonte, era possível enxergar as águas rubras do rio Styx. 

 Nenhum dos dois querubins que patrulhavam a região, nem mesmo os capitães e comandantes, ousou deter aquela estranha entidade, que ninguém sabia de onde viera e que respondia apenas ao Príncipe dos Anjos. 

 Aterrissou firme em umas das plataformas do penúltimo andar e penetrou por um túnel escuro, para desaparecer nas entranhas a torre. Ainda carregada, Vick acordou, mas deixou-se levar sem reação. 

 Sentia-se inútil, mas também era fascinante, estar em lugar onde nenhum ser humano jamais entrara e que nem sequer contemplara.

 Ao fim do corredor, diante de uma enorme porta metálica, uma figura aguardava a chegada do Anjo Negro e de sua presa. Vestia uma armadura completa, de aço brilhante, com detalhes dourados, e levava na cinta uma espada de cabo adornado.  O elmo de queixada pontuda tinha uma crina vermelha, e as asas brancas pareciam afiadas nas pontas, e reluzir como navalhas. 

 Vick com certeza nunca tinha visto aquele ser fabuloso, nem em sua imaginação, mas estava certa de que era o arcanjo Miguel.

Miguel: Encontrou problemas em proceder a meu comando ? - perguntou o Príncipe dos Anjos - 

 Anjo Negro: Foi tão simples quanto derrotar a renegada Ishtar – respondeu - 

 Miguel: Bom... - murmurou, analisando a mulher - Acompanhe-me.

 A porta metálica abriu-se sem precisar ser tocada, revelando um aposento curioso ao término de uma escada ascendente.  Era uma grande sala redonda, revestida com as mesmas pedras vermelhas que compunham a fortaleza.

 Em suas paredes, a humana contou duas duzias de portas de ferro, todas fechadas.  As dobradiças pareciam seladas, e nas portas não havia maçanetas, mas cada uma delas tinha no centro um recuo anelado, decorado com símbolos angélicos.

 Vick supos que aqueles nichos fossem um tipo de fechadura mistica, onde seria encaixada uma chave redonda.  No meio da sala fixava-se um pedestal em formato de meio coluna, sobre o qual jazia um livro de aparência antiga, escrito por dentro e por fora. 

 Vick não sabia, mas aquele era o Livro da Vida. 

 O aposento que cruzavam era, a propósito, a famosa Sala dos Portais, o lugar para onde Lúcifer queria enviar Ablon na tentativa de abrir o acesso ao inferno.  Na câmara havia uma única porta aberta, diferente das outras, mais larga. 

 Sua passagem levava a uma segunda escada, bem mais estreita, e os dois celestes se dirigiam para lá.  No percurso, a mortal notou que Miguel tomou o Livro da Vida do pedestal e o guardou consigo. 

 Os degraus culminavam em um alçapão aberto, que saia para um pequeno patio redondo.  No meio descansava uma grande roda, como uma mesa de pedra, presa no chão por um eixo. As extremidade da roda eram marcadas por uma sucessão de caracteres, como os números de um relógio. 

 As inscrições, que Vick não podia entender, derivavam do código sagrado dos malakins, um idioma anterior a aurora do mundo. 

 Haviam chegado, portanto, ao topo da fortaleza, e aquele terraço estreito era seu ultimo nível.

 Foi então que Vick viu que sobre um dos lados da mureta do pátio fixava-se uma pilastra de mármore negro, com correntes para amarrar prisioneiros.  Foi ali que o Anjo Negro a prendeu, de frente para a roda, não deixando chance de fuga.

 Miguel: Pode ir agora - disse ao raptor - Você sabe o que fazer. 

 A criatura voltou-se ao alçapão e deixou o terraço. Vick estava agora sozinha com o Príncipe dos Anjos. 

 Jamais imaginara terminar naquela situação, diante do grande tirano do universo.  Não sabia como proceder, o que falar ou como agir.  Fora tomada pelo medo. 

 Abriu os olhos, compreendendo a inutilidade de simular o desmaio.

 Miguel: Vick, a humana de Ablon - proferiu Miguel, orgulhoso - Não sabe quanto é valiosa para nós. 

 Ela não tinha certeza do que o arcanjo estava falando, mas formulara uma hipótese em sua mente. 

 Vick: Se pensa em me usar como isca para atrair Ablon, não terá sucesso em seu intento. O Anjo Renegado não tem como alcançar o plano etéreo. 

 O Príncipe dos Anjos tirou o elmo, e a mulher viu seu rosto.  Mesmo cheio de cicatrizes, era lindo, porém com uma face muito dura. 

 Miguel: Sei bem disso mortal, como não saberia ? Eu mesmo o bani para a Haled muito antes de você nascer. Se hoje Ablon é um fugitivo, é porque eu o expulsei de minha casa. - Desbancada, a mulher limitou-se a encarar o arcanjo, neutra. -  Mas você conhece a história – continuou - Pouca coisa deve ter-lhe escapado. Você não contou a eles não é ? Mas você sempre foi apaixonada por essas histórias, leu e estudou os mistérios cósmicos, alguns amigos já até a tiraram para louca na adolescência por essa fixação não foi ? Tenho certeza que ficou impressionada quando conheceu um anjo de verdade, mas, não tão impressionada, pois um pouco das coisas você já sabia, já imaginara milhares de vezes, apesar de nem tudo ser como está escrito. E tem mais, a Feiticeira de En-Dor lhe fez um favorzinho. Por que fez isso, mulher, com que objetivo ? -  Miguel era inteligente e astuto, e havia tocado no ponto fraco da moça.  Ela não conseguiu responder. -   Foi por causa dele, daquele anjo guerreiro. Você escolheu não morrer na esperança de que um dia o mundo mudasse e vocês pudessem ter seu momento de paz – Vick estava assustada, como aquele tirano sabia de tanta coisa ? - Mas esse dia jamais chegará. O próprio Anjo Renegado já perdeu as esperanças. E você deveria aceitar e verdade.

Vick: A sua verdade não é a mesma que a minha, arcanjo - ousou a humana - 

Miguel: Está errada. Acha mesmo que a capturaríamos apenas para armar uma emboscada para um anjo proscrito ? Não... Nossas intenções para com você são ainda mais grandiosas. 

Vick: Não foi isso o que o seu capanga disse ao me raptar.

 Miguel: Você não deve confiar tanto em seus inimigos. Honra, glória, virtude... são convenções humanas. Nós, arcanjos, não somos limitados por elas. 

Ela preferiu não questioná-lo e guardou silencio. Tranquilo, Miguel caminhou pelo pátio, fitando a roda de pedra. 

Miguel: Sabe o que é isso ? - perguntou, correndo o dedo sobre a superfície do artefato rochoso - 

Vick: Suponho que a Roda do Tempo. Ablon me contou sobre ela.

 O arcanjo satisfez-se com a resposta. A conversa, ao que parecia, tomava o rumo que queria. 

Uma brisa gelada soprou no terraço, esvoaçando as melenas escuras da prisioneira. 

Miguel: Observe as marcações na rocha. Sei que não pode entendê-las, mas é fácil compreender o trajeto da roda. Como percebe, em breve ela completará seu ciclo -afirmou, indicando os caracteres e mostrando que o ultimo deles já avançara. Para Vick, contudo, o objeto parecia estático- A Roda do Tempo continua girando lentamente, embora você não possa perceber com sua visão humana. Será que não entende, mulher ? Não há nada que seu Amor Renegado possa fazer. Nem mesmo eu tenho o poder de parar o percurso do mundo. Somente o Altíssimo poderia fazê-lo. 

Vick: Você é um assassino, Miguel. Ceifou milhares de vidas humanas e justificou seus crimes com a palavra de Deus. Ninguém mais do que você desrespeitou as ordens do Criador. Por que acha que Ele o poupará de sue julgamento, quando acordar de seu sono ?

 Miguel: Você me chama de assassino, mas não vê o que sua espécie fez ao planeta. Guerras, morte, fome, destruição. Agora, as armas terrenas são tão potentes quanto a força divina, e o conflito dos homens acabará com o mundo. Os humanos roubaram o poder de Deus, e o usarão contra eles mesmos. Desde sua criação, os mortais vêm cultivando o ódio, o egoísmo e a violência. 

Vick: Isso não o isenta de sua responsabilidade. 

Miguel: Suas palavras são levianas, mortal. Tudo o que fiz foi lutar para resguardar este mundo, desde o inicio. Sempre soube que terminaria assim, e de tudo tentei para preservar a criação de meu Pai -ele parecia sincero-. Se pensa que falhei, está enganada. Tudo agora converge para que minha vontade se cumpra. A humanidade será aniquilada. Os sobreviventes serão sacrificados, e enfim terei o trono que me foi reservado.

Vick: Levianas sãos as suas palavras, arcanjo. Como poderia saber que a humanidade caminharia para o abismo ? Pelo que sei, os únicos anjos que tem o dom de previsão sãos os malakins, e mesmo eles nada previram sobre as guerras dos homens. 

 Ele sorriu, pois estava prestes a exibir suas cartas. 

 Miguel: O que é o poder de um malakim se comparado a força de Deus ? Se o Anjo Renegado lhe contou tanto, talvez tenha lhe falado a respeito disto. 

 Miguel tomou a mão um livro de folhas amareladas, escrito por entro e por fora com caracteres angélicos, e o ergueu as vistas da moça. 

Miguel: Este é o Livro da Vida, uma relíquia sagrada. Foi-me entregue pelo próprio Yahweh antes de ele buscar seu repouso e contém toda a história do sétimo dia. Está tudo marcado aqui: o passado, o presente, o futuro. O destino de cada um de nós está traçado, foi escrito por Ele. 

Vick engoliu em seco.

 Ablon havia, mais de uma vez, comentado sobre aquele tomo mistico, e, se fosse verdade que ele continua o trajeto do mundo, então talvez o tirano estivesse mesmo certo.  Apesar de todas as suas atrocidades, seu impulso teria sido legitimo, segundo sua natureza celeste.  Mas a humana preferiu não acreditar nisso. 

 Não poderia jamais aceitar que as ideias e os valores do Primeiro General fosse mutilados.  Será que, por tanto tempo, Ablon lutara por causas errôneas ? 

 O arcanjo afastou o livro.  Deu as costas para a prisioneira e achegou-se a mureta do pátio. 

 De lá, vislumbrou o horizonte e a cadeia de montanhas que circundava a fortaleza.  Olhou para o céu, para o chão lá em baixo e para os anjos que patrulhavam a torre. 

 Por fim, fitou o curso vermelho do rio Styx.  Em seus olhos, a moça identificou a sombra do passado. 

 Miguel: Houve um tempo, mortal, em que os arcanjos governaram o mundo - a voz do príncipe soou mais suave - Foi um breve momento, um instante fugaz entre a partida de Deus e o despertar da consciência humana, e a consequente confecção do tecido da realidade. Naqueles dias, a terra era um paraíso, até que sua raça começou a depredá-la. Com Yahweh ausente, tive que tomar a decisão de aniquilar todos de uma vez, porque achava que podia mudar meu destino, que podia me esquivar do que estava escrito no Livro da Vida. Mas não pude. E, enfim, entreguei-me a meu propósito. 

 A humana examinou o discurso e encontrou uma falha nos argumentos do príncipe.

Vick: Mas e quando o Criador acordar ? Acha que Ele permitirá que você assassine os sobreviventes humanos e instaure seu mundo perfeito ? - tentou ironizar - 

Foi então que o júbilo dominou a face do tirano. 

Miguel: Vejo que não entendeu absolutamente nada do que eu disse, mulher – e aproximou-se da prisioneira - Saiba que mais cedo ou mais tarde os filhos superam os pais. O tempo de Yahweh terminou. É hora de estabelecermos uma nova ordem no universo. 

Enfim, Vick entendeu as pretensões de Miguel, e o simples pensamento do que poderia acontecer a estarreceu. Não teve coragem de falar, mas o arcanjo explicitou seu plano. 

Miguel: Quando a Roda do Tempo findar, eu me proclamarei divindade. A maneira pela qual farei isso você saberá a seu tempo, mas de qualquer forma não compreenderia o processo. Agora consegue imaginar por que a trouxemos aqui ? 

Vick pensou por um tempo, analisando os fatos e enfim, soube a resposta.

 Vick: Você precisa da minha alma. Por isso ainda não me matou - disse sem entusiasmo algum - 

Miguel: Eu sou um arcanjo. Nós, assim como os anjos, estamos presos a nossa natureza. Não temos livre-arbítrio. Esse é um atributo da alma, a alma que nos falta, a alma que nos foi negada – e um toque de melancolia, misturado a um impulso de ira, acompanhou sua ultima frase-

 Vick estava assombrada. Nunca se sentira assim, tão inútil e ao mesmo tempo tão cobiçada. 

Se pudesse, poria fim a própria vida, mas estava imobilizada na pilastra de mármore e lembrou logo em seguida... grávida. 

Miguel: Sua alma é poderosa - prosseguiu o malfeitor -, talvez a mais poderosa de todas. O Apocalipse iniciou-se e caminha para a conclusão. No tempo exato, usarei a energia de sua alma para fazer a minha própria, completando assim meu destino. Yahweh não despertará e os homens serão arrasados. Com a desintegração do tecido, nada me impedirá de povoar o mundo com os anjo leais a minha autoridade, e a terra finalmente será ocupada por seres iluminados, não pela matéria decrépita que hoje a habita. 

Vick reuniu vontade suficiente para encarar o tirano. 

Vick: É curioso, não acha ? Para alcançar o que sempre almejou, precisa daquilo que mais odeia. Se o destino realmente existe, é possível que esteja a lhe pregar uma peça, arcanjo. 

Miguel: Está errada mais uma vez, mortal. O próprio Yahweh arquitetou tudo isso e delineou seus anseios no Livro da Vida. Toda a nossa jornada está gravada, e minha fortuna é assumir o lugar Dele.

Vick: Diga-me então. Príncipe dos Anjos... Você acha que minha alma apenas é suficiente para levá-lo ao trono supremo ? Acredita que, sozinho, tem poder para governar o universo ? 

Miguel: Não, Vick. Ainda há um elemento essencial ao meu plano, que não cabe ser revelado. É minha peça final. 

A moça teve medo de pensar qual era essa peça. 

Vick: Você esquece que tem inimigos igualmente poderosos, Miguel – atacou a mulher - Acha que eles permitirão que leve adiante esse projeto macabro ? 

O príncipe sorriu com desdém. 

Miguel: Deve estar pensando em meus irmãos. Nenhum deles me preocupa, realmente. Gabriel não teria coragem de me enfrentar. Sua bondade pedante o levará a derrota. E quanto a Lúcifer... Eu já cuidei dele. Há um bom tempo ele não oferece ameaça. 

E já farto com aquela humana, tola e insignificante em sua concepção. Miguel repôs o elmo, agarrou o Livro da Vida e desceu os degraus do alçapão, deixando-a sozinha no pátio. Por enquanto estava segura, mas quando seu fim chegasse experimentaria a pior de todas as mortes.

 Achou-se egoísta por ter-se deixado levar pela luxuria e decidido viver para sempre, pretendendo, no futuro, estar com o renegado. 

Mas aí entendeu que o que a manteve erguida fora justamente a esperança, esse desejo por um tempo de paz, ao lado do anjo que amava. Assim como Ablon resolvera uma vez, Vick decidiu conservar a esperança, a mesma que já havia fenecido no olhar do lutador fugitivo.