Fanfic: O amor e um anjo ~
Na planície, os rebeldes estavam alinhados, Baturiel os organizara em alas e fileiras, como colunas e linhas, verticais e horizontais. Formavam assim um exército maciço, como uma parede altíssima e de larga espessura.
Apenas os soldados da primeira ala se apoiavam em terra. Os outros, sobre eles, adejavam, pairavam no ar, esperando para voar ao objetivo.
Elevavam-se do chão três mil metros acima, que era a distancia do solo até o ultimo andar da fortaleza inimiga, e assim avançariam, em formação. Baturiel, era o único destacado e voava a frente, armado de lança e espada, preparado para liderar os milhões.
Era noite, mas a lua cheia iluminava todo o deserto, como um lustre fúnebre aceso para o confronto final. Do acampamento, os revoltos assistiam ao massacre de seus guerreiros de elite, bravos celestes que encararam a morte para facilitar a ação das legiões principais.
Mas, ao observar seus companheiros tombarem, não esmoreciam – ao contrário. A cada prateado abatido, acumulava-se no coração dos insurgentes a ânsia pelo combate, a energia que provém da vingança.
A cada instante de espera, crescia o desejo pela batalha, a vontade de lutar, de cruzar armas e perseguir o triunfo. E foi no exato momento em que caiu um dos alados estimados que soou a Sexta Trombeta.
De lança e espada nas mãos, Baturiel gritou, ao silenciar do estrondo.
Baturiel: AOS PROBOS, OS LOUROS; AOS PERVERSOS, A MORTE ! - repetindo as palavras de Ablon em seu discurso ao exército – EM HONRA DO CRIADOR E DAS CRIATURAS DA TERRA !
E iniciou seu ataque. As legiões rebeldes o seguiram.
Na Fortaleza de Sion, os defensores, que ainda brigavam com os lutadores de prata, avistaram o maravilhoso exército rebelde que se levantava no sul e progredia contra a cordilheira. Se comparados as tropas sitiadas, os revoltosos constituíam uma força pequena, apesar de seus milhões de soldados.
A energia desses atacantes, contudo, sufocava os perversos, que se apressaram em retomar posição, pois assim se achavam indestrutíveis. Mas muitos de seus generais haviam sido exterminados pelos combatentes de elite, e os capitães encontravam dificuldades para refazer os anéis.
Então, antes que reagrupassem o cinturão de defesa, uma torrente de setas, que mais pareciam raios dourados, precipitou-se sobre parte dos guerreiros que protegiam a bastilha.
Disparadas de todas as direções, as flechas encontraram seus alvos, abatendo grande numero de sitiados, obscurecendo até mesmo o brilho da lua. Mas de onde partia quele ataque quase invisível ? Como surpreendera tão eficientes soldados ?
As picadas certeiras dizimaram todos os combatentes que rodeavam o pináculo de torre e, quando eles caíram, Varna enxergou o pátio da Roda do Tempo.
Percebeu uma mulher de pele clara e cabelos negros presa a uma pilastra de mármore e concluiu que fosse a mulher que Ablon buscava, embora nunca a tivesse encontrado.
Varna: É a tal Victória – disse para uma oficial a seu lado – A redoma tinha o intuito de escondê-la do Primeiro General, para que ele entrasse em Sion por outro caminho. É possível que o anjo guerreiro esteja sendo atraído para uma armadilha.
Na Torre das Mil Janelas, um dos comandantes maldoso, chamado Mirdoth, viu a movimentação das arqueiras nas montanhas circundantes, agora claramente aparentes, e entendeu quanto seus lutadores estavam vulneráveis a sucessivas investidas. Deduziu, com isso, a estratégia dos revoltosos e tentou organizar os esquadrões.
Mirdoth: VOEM PARA A CORDILHEIRA ! - BERROU - MASSACREM OS PROSCRITOS !
XXX: NÃO ! - Discordou um segundo general, estourando aos gritos – NÃO PODEMOS DEIXAR A FORTALEZA DESGUARNECIDA. - As legiões hesitaram, aguardando o comando final. -
Mirdoth: ENTÃO DIVIDAMOS OS GRUPOS – propôs – NÃO VOU SERVIR DE ALVO PARA OS INSURGENTES.
XXX: CHAMEM AS LEGIÕES DE DENTRO DA TORRE ! - exigiu um terceiro, ferido na asa por um golpe dos prateados -
Enquanto discutiam, principiou-se uma nova torrente. Mirdoth foi perfurado por uma seta que lhe atravessou a garganta, e um outro caiu com uma ponta alojada no ombro. Mais defensores tombaram, mas ainda eram muitos os intocados.
Um oficial sobrevivente autorizou o deslocamento de tropas do interior da torre para o lado de fora. Assim, Sion converteu-se em algo semelhante a um ninho de insetos, repleta de zangões que saiam em fila, ajustando os ferrões.
Mas, abandonando o forte, as companhias internas esvaziaram os salões principais, deixando a guarda de seus tuneis e alguns poucos vigias, que sozinhos não teriam condições de impedir uma invasão – caso os rebeldes ali penetrassem.
Na sombria Sala dos Portais, Ablon e Miguel se entreolhavam, em perfeita concentração, iluminados somente pelo ardor de suas espadas fulgentes. Confiante em sua grandiosidade, o Príncipe dos Anjos, esperava pelo primeiro golpe, deliciando-se com a tensão do inimigo.
O general, por sua vez, suava, aguardando um vacilo para manobrar sua lamina. Os dois, escutaram, com seus sentidos afinados, a gritaria do exterior e o rasgo das flechas mortais que se fincavam nos sitiados. Depois, veio o impacto abafado das setas, derrubando um por um os defensores.
Ablon: Parece que seus guerreiros foram surpreendidos – constatou – Minhas legiões deram inicio ao ataque. Logo, Sion será invadida.
Miguel: Seus regimentos não perdem por esperar. Os insurgentes serão aniquilados, e suas legiões, totalmente vencidas. A mulher será sacrificada, e a essência de sua alma me elevará a divindade.
Ablon: Sua loucura é patética, Miguel. Com ou sem um espirito humano, acha que, sozinho, será capaz de governar todo o espaço universal ? Sua liderança ruiu até o firmamento e dividiu os anjos do céu. Seu carisma é uma farsa, e seus partidários o temem. Que tipo de reino pretende forjar sob o jugo do medo ?
Miguel: O medo é o instrumento dos fortes, não o carisma ou o amor. Só a firmeza e a repressão governam. A benevolência leva a fraqueza, a indisciplina e a inação. E você, general, é a imagem dos fracos, a mancha que ameaça a pureza dos gloriosos. Se apaixonou e semeou uma criatura do barro, como pode ? Como pode misturar a nossa essência com essa espécie de verme. Por milênios tolerei sua anarquia, mas hoje terminarei minha missão, conforme preconizou o Pai Criador.
Ablon não compreendia em absoluto, o curioso fatalismo do soberano. Imaginou o que impulsionava sua fé, mas interrompeu o raciocínio quando percebeu a ação da espada oponente. Era a Chama da Morte, que descia para esmagar-lhe a fronte !
Em súbita agressão, o tirano atacou com toda a energia e pericia, e por um momento o querubim achou-se desesperado, a exemplo de seus embates com Lúcifer e Gabriel. Mas uma força superior animou seus movimentos e a Flagelo de Fogo subiu para bloquear a poderosa lamina do adversário. Ao choque das armas, um fogaréu emanou das folhas ardentes, aclarando todo o recinto.
Miguel: Então ousa persistir no desafio, em vez de entregar-se a morte ? - rosnou -
Ablon: Vou além com minha ousadia – rebateu -
Em suprema velocidade, rolou para o lado e avançou como uma fera voraz. Mas o arcanjo era astuto e se defendeu. Começava assim o combate, com uma incrível sucessão de golpes que, a cada batida, estremecia a fortaleza.
Enquanto ainda se recuperavam do espanto das flechas, os defensores assistiram a violenta abordagem dos revoltosos. As legiões regulares, lideradas por Baturiel, avançavam sobre os sitiados, cheias de cólera e vontade.
Lá embaixo, na base da torre, já se empilhavam milhares de corpos, vitimados pelas flechas douradas e pela pujança dos guerreiros de prata. O montante de cadáveres, destroçados e mutilados, prostrava-se no solo, chegando a altura do primeiro andar.
Enfim, os poucos sobreviventes do grupo de elite recebiam reforço. Podiam recuar agora e ainda assim manter sua honra, mas nenhum dos celestes largou o combate. Continuaram a batalhar, e seguiriam lutando até a vitória final, ou até que a morte os levasse.
Sucedeu-se, então, o choque inevitável. O exército dos novos rebeldes atacou em vários níveis, cada qual mirando um cinturão de defesa.
Milhões de guardiões da fortaleza receberam a carga dos invasores, que rapidamente se espalharam por todos os cantos. Baturiel e seus anjos engoliram as linhas de sitio, suprimindo as defesas de Miguel como uma mão que se fecha sobre o cabo de uma bengala.
A distancia, a Torre das Mil Janelas converteu-se em um negro emaranhado de soldados alados, que se digladiavam em feroz ofensiva. A zona de conflito parecia uma nuvem coruscante, ora preta, ora rubra, que se movia em ondas desencontradas.
Para quem estava no calor da peleja, o barulho era quase insuportável. Metal se chocando, gritos estridentes de dor, zumbidos de flechas e lanças passando a centímetros.
Apesar de Sion erguer-se a quilômetros do chão, a área de batalha estava superlotada, e volta e meia um guerreiro era ferido por um golpe resvalado. Além do ar rarefeito pela altitude, o calor no centro da briga era incrível, com milhões de celestes lutando tão próximos.
Os rebeldes eram superiores, tinham bravura, força e disciplina, e a principio seu triunfo era certo. Mas não paravam de sair esquadrões do interior da bastilha, repondo a cada segundo os milhares de mortos e feridos.
XXX: Quantos mais ainda existem lá dentro ? - perguntou Shenial, um general, ao Baturiel -
Baturiel: Não sei – admitiu, voando pelas linhas adversárias – ataquem os comandantes ! - vociferou, sempre a evolução do confronto – Sem os comandantes, os malignos ficarão desnorteados.
E ilustrando a tática ordenada, Baturiel enxergou um chefe inimigo, que com a espada em punho tentava reagrupar sua divisão. O nome dele era Lahash, e antes da guerra civil era tido como um oficial indisciplinado, embora poderoso.
Devia ter alcançado o posto de comandante por meio de bajulações e subterfúgios, e o Honrado decidiu que ele seria seu alvo. Mestre no uso da lança, Baturiel arremessou a arma contra Lahash. A lamina voou tão rápido que parecia invisível, e por fim penetrou a placa peitoral do celeste. O rival não tardou a morrer.
Num instante suas asas se fecharam, a visão apagou e ele caiu, atrapalhando os soldados que lutavam nos cinturões abaixo. Um oficial de Miguel chegou por trás, mas Baturiel pressentiu o golpe. Esquivou-se do aço e logo avançou.
A decisão mais óbvia foi reagir com um soco. O murro acertou o adversário no queixo, e mesmo com a barulheira da guerra todos ali escutaram o ruído do pescoço rachando. Depois, sacou a espada e prosseguiu com a chacina.
No topo da fortaleza, Ablon e Miguel persistiram em fervoroso duelo.
As laminas se encontravam, e o Primeiro General resistia, mas era clara a superioridade do Príncipe dos Anjos, que frustrava todos os golpes do inimigo, respondendo as agressões com habilidade admirável. Ablon tentou avançar com um assalto na vertical, mirando-lhe a cabeça, depois na horizontal, a direita e a esquerda.
Miguel defendia, com tanta força que o bloqueio era quase um ataque e obrigava o renegado a usar toda a potencia dos músculos para não se partir ao meio. Era a vez de o príncipe se adiantar.
Era tão rápido que seus golpes deixavam rastros de movimento impressos no ar, os quais desapareciam momentos depois. Um humano que presenciasse um combate assim nem enxergaria as pancadas, tão assombroso era sua velocidade.
Miguel lutava com maestria ímpar. Lançou uma sequencia de ataques ligeiros, sem muita penetração, só para cansar o inimigo. Depois de dez ou quinze movimentos, usou as asas para pular sobre Ablon, rodopiando, e descer as costas dele.
Com esforço, o Primeiro General conseguiu se virar, mas a guarda ainda não estava firme. Por pura sorte, a Chama da Morte encontrou a Flagelo de Fogo – se encostasse na armadura, o renegado estaria morto !
A pancada foi impressionante, e Ablon foi duramente jogado contra a parede, sentindo alguns ossos da asa direita se quebrarem. Um pouco de sangue escorreu pela boca, mas ele se levantou prontamente, para segurar o próximo baque.
Miguel: Desista, rebelde ! - exclamou – Sua insistência só adiará sua morte. Prostre-se, para que eu abrevie este duelo. - O querubim estacou, diante da súbita proposta. -
Ablon: Um arcanjo demonstrando piedade ? Não é firmeza que governa o universo ?
Miguel não respondeu. Por um segundo, a justiça bateu em seu coração, e ele se lembrou das Batalhas Primevas e o rosto do Pai Celestial, cheio de afeição e bondade. Houve um tempo em que o príncipe chegou a amar, mas esse amor o levara ao ciúme.
Isso fora nos dias antigos, quando Yahweh fizera de sua essência a alma humana, entregando aos mortais a obra terrena, que os arcanjos julgavam ser sua. O amor dos gigantes transmutou-se em ódio, fomentando a tirania.
Ablon: Por quê, Príncipe Alado ? - insistiu - Como se degradou a tal ponto ? Por que não fez o que lhe foi ordenado e louvou a graça dos homens ? Talvez, se lhes tivesse indicado o caminho do bem, nunca tivessem conhecido a guerra ou a violência. Não foi pra isso que foi coroado ? Para liderar anjos e mortais e levá-los a trilha da virtude ?- Um brilho de esperança acendeu nos olhos da figura malévola. -
Miguel: Orion teria concordado com você – admitiu - Foi assim que reinou em Atlântida. Mas não sou indulgente. Recuso-me a servir aos impuros, porque provenho da luz do Onipotente. Como poderia adorar um bando de animais que se arrastavam na profundidade das cavernas imundas ?
Ablon: Os humanos são os herdeiros de Deus e carregam na alma o legado do Criador – Ablon discordou - Devia ter se conformado, servido. Mas sua soberba o incitou a carnificina.
Miguel abaixou a espada, consternado, refletindo sobre o impasse. Era literalmente mais alto que Ablon, e fisicamente mais vigoroso.
Miguel: Então eu lhe pergunto, Anjo Renegado, por que está lutando contra mim ? Também não é um perverso que combateu em mil batalhas sangrentas ?
Ablon: Não vou negar – reconheceu - nem vou me justificar por meus assassinatos. Não vou julgar meus atos, tampouco os seus. Mas agora não posso mais recuar. Há muitos que amo, muitos que confiaram em mim. Por eles, batalharei até a ultima centelha, mesmo que para isso tenha que roubar mais uma vida.
XXX: Mate-o – surpreendeu Vick, acorrentada -
O general não compreendeu sua atitude. Supôs que tivesse sob tremenda fadiga mental.
Mas foi Miguel quem atacou, recuperando toda sua loucura. Sumiu a duvida na face do opressor, e ele golpeou com a Chama da Morte, em traiçoeira manobra.
Ao enérgico impacto da arma inimiga, a Flagelo de Fogo escorregou das mãos do renegado, indo perder-se em um extremo da sala.
Desarmado, o general preparou a Ira de Deus, mas antes disso sofreu mais um assalto. A lamina resvalou no chão de pedra, abrindo uma enorme fissura no piso. Miguel revirou-se, cercando o querubim em um canto e submetendo-o sob o fio da espada.
Miguel: Esta é sua fronteira, proscrito, seu limite. Chega ao fim sua jornada - e, sem piedade, manobrou sua arma para lançar o choque fatal -
Mais uma vez, porém, a Ira de Deus salvaria o herói. Com inacreditável destreza, o soco partiu, e Ablon percebeu como se sentia bem utilizando sua técnica fundamental. Ele nunca estivera tão forte.
A energia divina percorreu seu corpo, agitando os átomos no espaço e concentrando o vigor na dureza dos punhos. A Ira de Deus, geralmente invisível, brilhou com uma aura dourada, acertando o rosto do tirano celeste.
Miguel não esperava uma surpresa daquelas. Viu apenas o murro se aproximando, explodindo contra o nariz, destruindo-lhe completamente o elmo. Atônito, cambaleou para trás, tropeçou e caiu.
Agora tinha sangue no rosto, e por um minuto a visão escureceu. Tossiu e tentou se agarrar a parede.
O soco de Ablon liberou o caminho entre o Primeiro General e a mortal. Com a celeridade da acometida, a pena escurecida de Apollyon, que o guerreiro carregava no cinto, desprendeu-se e escapou para o breu, sem que ele percebesse.
No curto instante de calma, durante o qual Miguel se levantava, Ablon não pensou em massacrá-lo. Dispensou a oportunidade de liquidar o rival e preferiu libertar a humana, aprisionada pelas correntes de ferro.
Por ela ingressara na guerra, e por ela invadira Sion. O Anjo Renegado acudiria Vick, para depois terminar a peleja.
Mesmo com as legiões internas da fortaleza unindo-se as tropas externas, os rebeldes venciam. Os soldados defensores eram repostos pelos esquadrões que saíam da torre, mas nem os incólumes eram capazes de segurar a coragem dos invasores.
Nas montanhas, as arqueiras continuavam a disparar suas setas, mas não mais em ondas compactas, e sim em ataques cirúrgicos, para não ferir os companheiros em combate. Agora, não só o chão, mas os degraus que circulavam os andares estavam abarrotados de mortos, e as rubras pedras do baluarte ficavam ainda mais rubras.
Então, surgiu no horizonte um grupo de celestiais envoltos em uma nuvem ardente. Do corpo escapavam labaredas vermelhas, e os punhos copiavam tochas acesas. Não carregavam arma ou armadura.
Eram os ishins, governantes das forças elementais, que chegavam a batalha no momento do esvaziamento da torre. Tinham por missão invadir a bastilha e inflamar o símbolo da opressão, destruindo o maior orgulho do arcanjo Miguel.
XXX: Guerreiros de prata – convocou Baturiel, ao perceber a aproximação de Aziel e seu time -, atrás de mim! Preparar ponta e lança – ordenou-
Pelo menos cem batedores de elite ainda viviam e responderam ao comando do general valoroso. Com esses heróis, o Honrado formou uma dupla fila no céu, para perfurar as posições inimigas e abrir uma ponta segura, através da qual os anjos do fogo pudessem passar sem ser acertados.
Não eram combatentes, apesar de seu poder magnânimo, e sofreriam se expostos ao calor do conflito. Assim atacaram os prateados e seu comandante, improvisando uma trilha celeste.
Por esse livre corredor seguiram os ishins, para adentrar o forte por suas incontáveis janelas, agora já desguarnecidas. Quando pisaram nos salões de Sion – imensas câmaras vazias, de magníficos vitrais, colunas enormes e teto ogival -, Aziel e seus alados estavam prontos para iniciar o incêndio.
Mas e quanto a Ablon ? Ele ainda não regressara. A Chama Sagrada decidiu esperar.
Ablon cruzou a Sala dos Portais com uma batida de asas, sobrevoando o pedestal no centro da câmara sobre o qual jazia o Livro da Vida. Agarrou-se a parede e, só com as mãos, arrebentou as correntes que prendiam Vick.
O ferro partiu-se com um estalar abafado. Sem dar espaço ao raciocínio, o Anjo Renegado tomou nos braços a mortal, que se apoiou na armadura do herói.
Ablon: Vou deixá-la em área segura. Há muitos túneis vazios nos andares inferiores – avisou, satisfeito por tê-la libertado, mas então estranhou o aroma da pele, que mascarava um odor adverso. A textura da tez também parecia bem diferente, e até as batidas do coração não soavam as mesmas -
No outro extremo da sala, o Príncipe dos Anjos ergueu-se, com os cabelos soltos, depois da destruição de seu capacete. Dali, retomou a Chama da Morte e enxergou o rosto da humana, amparado ao ombro do general.
De repente, os olhos verdes da moça ficaram azuis, e sua face inverteu-se em uma expressão demoníaca. Ainda sem sua espada, Ablon deu meia-volta em direção a saída e só então percebeu as nuances do aposento.
De posse da mulher, observou bem toda a sala, procurando a melhor rota de fuga. Mas então notou um detalhe terrível.
Das dezenas de portas misticas, com seus recuos anelados e símbolos característicos, uma estava entreaberta – era a passagem do inferno !
Antes que reagisse, a mão pequena da mortal, que abraçava seu forte pescoço, cresceu em garras enormes. As unhas pontudas, negras e afiadas penetraram a garganta do querubim, rasgando-lhe a carne em um movimento ligeiro.
Imediatamente, o renegado a soltou e caiu de joelhos, com jatos de sangue a espirrar pelo chão. O corte dilacerara a artéria carótida, e a morte era só uma questão de minutos.
Aturdido, assustado e sem palavras, Ablon voltou a olhar para a figura da mulher e de repente entendeu quem era, verdadeiramente, seu ardiloso carrasco.
Lúcifer, o Arcanjo Sombrio, estava ali, de pé, fitando o renegado, mas agora sobreposta por uma placa dourada. Trazia uma espada – fato raro, porque nunca era visto portando nenhum tipo de arma.
Mas o que fazia o Senhor do Sheol na Fortaleza de Sion ? Como teria entrado na torre ? Quem o teria chamado ? Era um demônio, supostamente o maior inimigo do céu.
XXX: O Diabo tem muitas faces – sussurrou a Estrela da Manhã – Você já deve ter ouvido isso em algum lugar – comprimiu as asas de morcego e juntou os dedos em estilo teatral-
Ablon: Lúcifer ! - exclamou, esforçando-se para respirar – Seu traidor ! Era uma ilusão...
Lúcifer: Ilusão ? - protestou, indignado- Ora, general, reconheça, ao menos uma vez, a grandeza de minhas habilidades. Não se trata de ilusão, absolutamente. É minha capacidade de transmutar-se. Você já a conhecia, suponho. - O renegado nada disse, tomado pela dor e engasgado com o próprio sangue, que lhe escorria aos litros pelo pescoço. - Tente entender, Ablon, não é nada pessoal. Fiz de tudo para evitar este horrível confronto. Chamei-o até mim e ofereci-lhe aliança. E aí, quando você recusou, não tive escolha – e simulou uma carranca de choro - Eu sinto tanto ! Se sua resposta fosse outra, talvez hoje estivéssemos aqui, eu, você e Miguel, prontos para dar a partida a um novo mundo, preparados para governar todo o universo. O que é a terra senão uma semente perto da magnitude do cosmo ? Quantos planetas poderíamos povoar por aí afora ? Quantos sóis poderíamos ainda dominar ? - E, ao terminar o discurso, ficou muito sério e completou. - O Armagedon não é o fim, é o principio.
Ablon: Mas a revolução... - tossiu - A guerra no céu.
Lúcifer: Minha queda foi forjada – continuou - e muito bem arquitetada por mim e pelo meu irmão - e a imagem do Príncipe dos Anjos ressurgiu no limitado campo de visão do general moribundo - Assim, governaríamos o céu e o inferno, a luz e as trevas, e no final teríamos a recompensa pela qual esperamos. Para nossa conspiração, recrutamos um agente duplo, o Anjo Negro, o único canal de comunicação entre o porão e o poleiro, uma entidade capaz de viajar livremente pelos planos de existência. Agora, com a essência da humana, teremos o livre-arbítrio, e a destruição do tecido extinguirá a fronteira que restringe nossos poderes. Onipotentes e dotados de vontade própria, cumpriremos nosso destino e nos elevaremos a divindade. O deus da luz e o deus das trevas, reinando absolutos sobre o infinito !
Ablon: Dois arcanjos dividindo o poder ? - a hipótese seria até cômica, se não fosse tão trágica -
Lúcifer: Sua visão é limitada, porque desconhece os anais dos dias remotos. Há muito tempo, antes da luz, havia Yahweh, o deus da claridade, e Tehom, a deusa da escuridão. O Criador nos deu a vida para que lutássemos a seu lado nas Batalhas Primevas e derrotássemos os deuses das trevas. E, quando tudo se acabou, quando o Altíssimo venceu e completou o trabalho da criação, sentiu-se ocioso, pois havia findado seu objetivo. E, cansado, dissipou sua essência. O maior erro do Reluzente foi ter-se consagrado único, porque isso acabou por levá-lo a inércia. Não cometeremos esse deslize. Sempre haverá fulgor e obscuridade; essas são duas províncias imisturáveis. Seremos eternos, inacabáveis, e cada qual controlará o seu reino. Para sempre brilhará em nós o estímulo da vida, porque o espaço é perene. E quando estivermos aborrecidos, restarão mais mundos para colonizar ou para destruir; mais lugares para saciar nossa fome. Povoaremos o cosmo com nossos agentes leais, que não serão nem anjos, nem demônios, mas uma espécie renovada, nossos arautos. O duplo reinado garantirá nossa infindável sobrevivência. E assim encerra-se nosso conluio, tão primorosamente realizado – finalizou, caminhando para mais perto do irmão - No paraíso ou no Sheol, ninguém desconfiou de nossa intenção- vangloriou-se- É admirável o poder da comunicação. Acho que sou o pai dos políticos.
Miguel, o Príncipe dos Anjos, repôs a bainha a Chama da Morte e aproximou-se do general. Irado, porém inútil, Ablon arrastou-se pelo piso da sala, na vã tentativa de retomar a Flagelo de Fogo, que ainda crepitava ali perto. Os inimigos gargalharam, desprezando seu esforço.
Lúcifer: Pouco antes da queda, Miguel e eu nos encontramos na terra para acertar os pormenores da conspiração, longe dos outros arcanjos. Ishtar, que vagava pelas cercanias, pressentiu nossa aura e descobriu nosso segredo. Seria um perigo para nós se ela desse com a língua nos dentes, portanto preferimos exterminá-la e caçar todos aqueles aos quais ela poderia repassar a informação. Eis o motivo pelo qual a irmandade foi condenada. Mas, ela foi a única esperta, decidiu passar para o nosso lado, claro que ela sabia que vocês nunca poderiam ganhar essa guerra.
Ablon: Então era tudo uma desculpa – gemeu - A justificativa de que os renegados provocaram sua queda era só um pretexto. Também a propaganda de Miguel não passava de um embuste para nos silenciar.
Lúcifer: Antes disso, enxergávamos a Irmandade dos Renegados como um séquito de desprezíveis. Suas ideias não poderiam nos ameaçar... até suceder-se esse desagradável episódio. E aí tivemos que decretar sua perseguição.
Exaurido, no limite de suas forças, Ablon animou-se para mais uma vez buscar o cabo da espada, mas não conseguiu. Uma nódoa grande de sangue inundava o solo de pedra, e sua pressão despencava. Com os olhos azuis já se apagando, ele fitou a porta do inferno, amaldiçoando sua pouca cautela e sua incapacidade de compreender a mente aguçada dos inimigos. Lúcifer agachou-se, para uma ultima e surpreendente revelação.
Lúcifer: A chave. Nunca precisei dela realmente, ou não a teria entregado na caverna do Diabo. Era uma relíquia original, de fato, mas não fazia a menor diferença para mim, já que minha passagem para Sion esteve aberta desde o inicio. Usei-a para desviar sua atenção, e consegui, ao que me parece. O segredo de uma boa mentira está nos detalhes, general.
Incapaz de falar ou reagir, o Anjo Renegado gemia, desejando ter a Flagelo de Fogo ao alcance. Admirado com o vigor do querubim, o Filho do Alvorecer, sarcástico, sinalizou para o irmão, permitindo que o moribundo recuperasse sua arma.
O Monarca Celeste concordou, mais por sadismo que por piedade, e chutou a espada, que foi parar sob o punho do massacrado guerreiro. Com toda a energia que ainda guardava, Ablon apertou o cabo do sabre, sem a intenção de largá-lo.
Lúcifer: Se assim prefere... - consentiu - Morrer brandindo a espada... Não farei objeção. - Lúcifer girou nos calcanhares e falou ao cúmplice: - Vamos, Miguel. Continuemos nossa conversa na cobertura. Lá é mais arejado – convocou, referindo-se ao pináculo da torre, o pátio da Roda do Tempo, onde Vick estava aprisionada - Permitamos que o revoltoso veja a mortal pela ultima vez.
O Príncipe dos Anjos agarrou o general pela gola da armadura, para arrastá-lo ao terraço. Antes, porém, pegou o Livro da Vida, sobre o pedestal, e o levou juntamente para o andar culminante.
A Estrela da Manhã subiu as escadas, seguida por Miguel. O sangue do renegado escoou nos degraus, desenhando uma trilha macabra e fazendo uma poça no chão do salão. Aos estímulos do cérebro, os músculos do querubim não mais respondiam, mas manteve os dedos firmes, carregando consigo a lamina ardente.
Autor(a): Fraanh
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Enquanto a batalha seguia em volta de Sion, vitimando milhões de alados, no interior Aziel e os ishins esperavam, na frigidez das câmaras vazias. Mesmo juntos, pareciam formigas diante da enormidade dos salões abandonados. Depois que todas as legiões de apoio se deslocaram para fora da torre, a fortaleza ficou desprotegida, quieta e um ...
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fraanh Postado em 16/10/2014 - 20:18:52
Por mais que eu esteja postando a primeira temporada rapidamente só para continuar a segunda (já que tive que sair do orkut), eu devo, com toda a educação do mundo, dar as boas vindas as leitoras que não me acompanharam antes, então, sejam bem vinda meninas, espero que estejam gostando, comentem por favor, eu não mordo não *-*