Fanfic: Cidades de Papel - Adaptada Vondy | Tema: Vondy / RBD
— Chris — chamou Dul baixinho, devagar.
Ela apontava. Foi então que percebi o que havia de diferente.
A poucos metros de nós havia um carvalho. Grosso, retorcido e com jeito de muito antigo. Aquilo não era novidade. O parquinho à nossa direita. Também não era novidade. Já o cara de terno cinza largado junto ao tronco do carvalho, imóvel… aquilo era novidade. Estava rodeado de sangue; uma cascata sanguinolenta meio seca saía da boca. Que, por sua vez, estava aberta de um modo que bocas normalmente não deveriam ficar. Moscas pousavam na testa
Pálida.
— Ele está morto — disse Dul, como se eu não tivesse reparado.
Dei dois passinhos para trás. E me lembro de ter pensado que, se fizesse qualquer movimento súbito, ele poderia despertar e me atacar. Talvez fosse um zumbi. Eu sabia que zumbis não existiam, mas ele parecia um zumbi em potencial.
Quando dei os dois passos, Dul também deu, igualmente curtos e silenciosos, porém para a frente.
— Os olhos dele estão abertos — disse ela.
— Agentetemqueirpracasa — falei.
— Eu achava que a gente fechava os olhos quando morria.
— Dulagentetemqueirpracasaecontarpralguém.
Ela deu outro passo. Estava perto o suficiente para tocar o pé do sujeito caso esticasse o braço.
— O que você acha que aconteceu com ele? — perguntou. — Talvez tenha sido por causa de drogas ou coisa assim.
Eu não queria deixar Dul sozinha com o cara morto que podia ser um zumbi assassino, mas também não estava a fim de ficar ali conversando sobre o motivo da morte dele. Tomei coragem e dei um passo à frente para pegar a mão dela.
— Dulagentetemqueiragora!
— Ok, tudo bem — disse ela.
Corremos até nossas bicicletas, e eu sentia um frio na barriga exatamente como o de empolgação, mas não era. Montamos nas bicicletas, e deixei Dul ir na frente porque eu estava chorando e não queria que ela visse. Tinha sangue na sola dos tênis roxos dela. O sangue dele. O sangue do cara morto.
E então chegamos às nossas respectivas casas. Meus pais telefonaram para o serviço de emergência, e eu ouvi as sirenes a distância e pedi para ver o carro dos bombeiros, mas minha mãe não deixou. Então tirei um cochilo.
Meus pais são psicólogos, o que significa que sou centrado para cacete.Então, quando acordei, tive uma longa conversa com minha mãe sobre o ciclo da vida, e sobre a morte ser parte da vida, mas não uma parte da vida com a qual eu precisasse me preocupar muito aos nove anos, e aquilo fez com que eu me sentisse melhor. Para falar a verdade, nunca me preocupei muito com essa questão. O que é um feito e tanto, porque eu sou um bocado preocupado.
O lance é o seguinte: eu encontrei um cara morto. Eu, o pequeno e adorável menino de nove anos, e minha ainda menor e mais adorável companheira de brincadeiras encontramos um cara com sangue escorrendo da boca, e aquele sangue estava nos pequenos e adoráveis tênis dela quando voltamos de bicicleta para casa. É tudo muito dramático e coisa e tal, mas e daí? Eu não conhecia o cara. Gente que eu não conheço morre o tempo todo. Se eu surtasse toda vez que uma coisa ruim acontecesse no mundo, ia acabar completamente pirado.
Naquela noite, fui para o quarto às nove, porque nove era minha hora de dormir. Minha mãe me colocou na cama, disse que me amava, eu falei “Até amanhã”, ela respondeu “Até amanhã” e então apagou a luz e deixou a porta entreaberta.
Quando me virei de lado, vi Dulce María Saviñon parada do lado de fora da janela, o rosto quase colado na tela. Eu me levantei e abri a janela, mas a tela continuou entre nós, deixando Dul toda quadriculada.
— Fiz uma investigação — declarou ela muito seriamente.
Mesmo de perto, a tela dividia seu rosto, mas dava para ver que trazia nas mãos um caderninho e um lápis com marcas de dente na borracha. Ela baixou os olhos para as anotações.
— A Sra. Feldman, lá de Jefferson Court, disse que o nome dele era Robert Joyner. Ela me contou que ele morava na Jefferson Road, em um daqueles apartamentos em cima do mercadinho, então fui até lá e tinha um monte de policiais, e um deles me perguntou se eu trabalhava no jornal da escola, e eu respondi que nosso colégio não tinha jornal, então ele disse que, como eu não era jornalista, ele ia responder às minhas perguntas. Ele me contou que Robert Joyner tinha trinta e seis anos. Advogado. Não me deixaram entrar no apartamento, mas ele era vizinho de porta de uma moça chamada Juanita Alvarez, e eu pedi uma xícara de açúcar emprestada para entrar no apartamento dela, então ela me contou que Robert Joyner tinha se matado com um tiro. Aí eu perguntei o motivo, e ela me disse que ele estava se divorciando e que estava triste por causa disso.
Depois Dul parou, e eu simplesmente fiquei olhando para ela, o rosto cinzento iluminado pelo luar e dividido em mil pedaços pela trama da tela. Seus olhos redondos e arregalados ficaram se revezando entre mim e o caderno.
— Um monte de gente se divorcia e não se mata por causa disso — falei.
— Eu sei — disse ela, a voz fervilhando de empolgação. — Foi isso que eu disse a Juanita Alvarez. E então ela falou… — Dul virou as páginas do caderninho. — Ela falou que o Sr. Joyner era problemático. E aí eu perguntei o que isso significava, e ela me disse que nós apenas deveríamos rezar por ele e que eu precisava levar o açúcar para minha mãe, e eu falei para deixar o açúcar para lá e fui embora.
Fiquei em silêncio outra vez. Só queria que ela continuasse falando — aquela vozinha carregada de animação de quase saber das coisas, fazendo com que eu sentisse como se algo importante estivesse acontecendo comigo.
— Acho que sei o motivo — disse ela afinal.
— E qual é?
— Talvez todos os fios dentro dele tenham se arrebentado — respondeu ela.
Enquanto tentava pensar no que dizer, eu me aproximei e abri o trinco da tela que nos separava, soltando-a da janela. Coloquei a tela no chão, mas Dul não me deu oportunidade de falar. Antes que eu pudesse me sentar de novo, ela aproximou o rosto do meu e sussurrou:
— Feche a janela.
Então fechei. Pensei que ela fosse embora, mas simplesmente ficou ali me observando. Acenei e sorri para ela, mas seus olhos pareciam fixos em algo atrás de mim, algo monstruoso que a deixara pálida, e eu fiquei com medo demais para me virar e ver o que era. Só que não tinha nada atrás de mim, é claro — exceto, quem sabe, o cara morto.
Parei de acenar. Minha cabeça estava na mesma altura que a dela enquanto nos encarávamos através do vidro. Não lembro como aquilo terminou — se eu fui dormir primeiro ou se ela foi. Na minha lembrança, esse momento não termina. Só ficamos ali, fitando um ao outro, eternamente.
* * *
Dulce sempre adorou um mistério. E, com tudo o que aconteceu depois, nunca consegui deixar de pensar que ela talvez gostasse tanto de mistérios que acabou por se tornar um.
Autor(a): Ree Vondy
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