Fanfics Brasil - Capitulo I - Parte 2 Julieta - adaptação

Fanfic: Julieta - adaptação | Tema: Vondy


Capítulo: Capitulo I - Parte 2

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Capitulo I - Parte 2


                    


Era meia-noite quando deslizamos pela entrada de automóveis da casa de tia Rose. Umberto já me avisara que Maite tinha chegado da Flórida naquela tarde, com uma calculadora e uma garrafa de champanhe. Mas isso não explica o segundo carro esporte estacionado bem em frente à porta.


– Espero sinceramente que não seja aquele o agente funerário – comentei, tirando a mochila da mala antes que Umberto pudesse chegar a ela. Mal pronunciei as palavras, estremeci diante de minha própria irreverência. Era completamente atípico eu falar assim, o que só acontecia quando quando estava perto de minha irmã.


Olhando apenas de relance para o carro misterioso, Umberto ajeitou o paletó como quem ajusta um colete à prova de balas antes do combate:


– Receio que existam muitos tipos de “agentes”.


Tão logo cruzamos a porta de entrada da casa de tia Rose, percebi o que ele queria dizer. Todos os enormes retratos do vestíbulo tinham sido retirados da parede e estavam encostados nela, como delinqüentes diante de um pelotão de fuzilamento. E o vaso veneziano que sempre estivera na mesa redonda sob o lustre já havia sumido.


– Olá – gritei, sentindo uma onde de raiva que não experimentava desde a última vez que tinha ido lá. – Ainda há alguém vivo?


Minha voz ecoou pela casa silenciosa, mas, tão logo o eco se extinguiu, ouvi pés apressados no corredor de cima. Apesar da corridinha culpada, porém, Maite teve que fazer sua habitual aparição em câmera lenta na escadaria larga, com o diáfano vestido de verão enfatizado suas curvas suntuosas muito mais do que se ela não estivesse usando nada. Com uma pausa para a imprensa internacional, ela jogou os cabelos compridos para trás com lânguida presunção e me lançou um sorriso desdenhoso antes de começar a descer.


– Ora, vejam – observou, com a voz meigamente gélida –, a “virgentariana” ainda está viva.


Só então notei o macho da semana vindo atrás dela, com o mesmo ar desgrenhado e de olhos injetados de todos os que passavam algum tempo a sós com minha irmã.


– Lamento decepciona-la – respondi, largando a mochila no chão com um baque. – Posso ajudá-la a despojar a casa dos objetos de valor ou você prefere trabalhar sozinha?


A risada de Maite era como um mensageiro dos ventos na varanda do vizinho, instalado ali exclusivamente para chatear.


– Este é o Archie – informou ela, em seu tom ao mesmo tempo profissional e casual. – Ele vai nos dar 20 mil por essa tralha toda.


Olhei para os dois enojada ao se aproximarem de mim:


– Quanta generosidade da parte dele! É obvio que ele tem paixão por lixo.


Maite lançou-me um olhar gelado, mas logo se conteve. Sabia muito bem que eu não dava a mínima para sua opinião e que sua raiva apenas me divertia.


Nasci quatro minutos antes dela. Não importa o que ela fizesse ou dissesse, eu sempre seria quatro minutos mais velha. Ainda que, em sua cabeça, Maite fosse a lebre hipersônica, e eu, a tartaruga que se arrastava, ambas sabíamos que ela podia dar quantas voltinhas arrogantes à minha volta quisesse que nunca me alcançaria de verdade, jamais cobriria aquela distância minúscula que nos separava.


– Bem – disse Archie, com uma olhadela para a porta aberta –, estou de saída. Prazer em conhecê-la, Dulce... é Dulce, não é? Maite me falou tudo ao seu respeito – acrescentou com um risinho nervoso. – Parabéns pelo bom trabalho, continue firme! Faça a paz e não amor, como dizem.


Maite acenou com meiguice quando Archie saiu, deixando a porta de tela bater. Porém, assim que ele se afastou e ela já não podia ser ouvida, seu rosto angelical se tornou demoníaco, como um holograma do Dia das Bruxas.


– Não se atreva a me olhar desse jeito! – disse, em tom zombeteiro. – Estou tentando ganhar algum dinheiro para nós. Não me parece que você esteja ganhando nenhum, está?


– Mas também não tenho o seu tipo de... despesas – falei, apontando com a cabeça para suas recauchutagens mais recentes, claramente visíveis sob o vestido colante. – Diga-me, Maite, como é que eles enfiam isso tudo aí dentro? Pelo umbigo?


– Diga-me, Dulce – imitou minha irmã –, como é não ter nada enfiado aí? Nunca!


– Perdão, senhoras – disse Umberto, colocando-se educadamente entre nós, como já fizera inúmeras vezes –, mas posso sugerir que terminem esse dialogo cativante na biblioteca?


Quando alcançamos Maite, ela já se acomodara na poltrona favorita de tia Rose, com um gim-tônica aninhado na almofada da cena de caça à raposa que eu tinha feito em ponto de cruz no último ano do ensino médio, enquanto minha irmã caçava presas eretas.


– O que foi? – perguntou, olhando-nos com mal disfarçada repulsa. – Vocês não acham que ela deixou metade da birita pra mim?


Era típico de Maite procurar briga sobre o cadáver de alguém, então lhe dei as costas e fui até a porta envidraçada. Lá fora, no terraço, os ambos vasos de terracota de tia Rose pareciam uma fileira de carpideiras, com as corolas das flores pendendo, inconsoláveis. Foi uma visão inusitada. Umberto sempre mantivera o jardim sob perfeito controle, mas talvez já não encontrasse prazer nesse trabalho agora que aquela que fora sua patroa e platéia agradecida não existia mais.


– Fico surpresa por você ainda estar aqui, Birdie – comentou Maite, girando a bebida. – Se eu fosse você, a esta altura já estaria em Las Vegas. Com a prataria.


Umberto não respondeu. Fazia anos que parara de falar diretamente com Maite. Em vez disso, olhou para mim:


– O enterro será amanhã.


– Não acredito que tenha planejado tudo sem nos consultar – disse Maite, balançando uma das pernas sobre um braço da poltrona.  


– Era o que ela queria


– Há mais alguma coisa que devamos fazer? – indagou minha irmã, soltando-se do braço da poltrona e endireitando o vestido. – Presumo que cada um de nós vá receber a sua parte, certo? Ela não se apaixonou por nenhuma fundação estapafúrdia de proteção aos animais ou coisa parecida, não é?


– Você quer dar um tempo? – retruquei com rispidez, e por um ou dois segundos, Maite pareceu realmente sem jeito. Mas depois deu de ombros, como sempre fazia, e tornou a estender a mão para a garrafa de gim.


Nem me dei o trabalho de olhar para seu fingido jeito estabanado, erguendo as sobrancelhas feitas à perfeição num ar assombrado, para mostrar que não tivera a intenção de servir toda aquela quantidade. Assim como o sol se derretia lentamente no horizonte, Maite logo se derretia numa chaise longue, deixando as grandes questões da vida a serem respondidas pelos outros, desde que garantissem que sua bebida continuasse chegando.


Desde minhas mais remotas lembranças, Maite sempre fora assim: insaciável. Quando éramos pequenas, tia Rose costumava rir, encantada, e exclamar: “Se essa menina estivesse numa prisão feita de biscoitos, fugiria de lá abrindo cominho a dentadas”, como se a voracidade de Maite fosse motivo de orgulho. Mas, afinal, tia Rose estava no topo da cadeia alimentar e, ao contrário de mim, não tinha nada a temer. Até onde eu podia me lembrar, Maite sempre havia conseguido descobrir meus doces, não importava onde eu os escondesse, e as manhãs de Páscoa em nossa família eram desagradáveis, meio brutas e curtas. Chegavam inevitavelmente ao clímax quando Umberto a repreendia por ter roubado minha cota de ovos de Páscoa, e Maite, com os dentes cheios de chocolate, respondia sibilando, debaixo da cama, que ele não era seu pai e não podia lhe dizer o que fazer.


O frustrante era que seu físico não a denunciava. Sua pele recusava-se obstinadamente a revelar seus segredos; era lisa como a cobertura acetinada de um bolo de noiva, as feições moldadas com a mesma delicadeza das frutinhas e florzinhas de marzipã criadas pelas mãos de um mestre confeiteiro. Nem gim nem café nem vergonha nem remorso, nada havia conseguido abrir uma rachadura naquela fachada vitrificada. Era como se Maite tivesse dentro de si uma fonte perene de vida, como se levantasse toda manhã rejuvenescida no poço da eternidade, nem um dia mais velha, nem uma grama mais gorda e ainda sedenta do mundo.


Para minha infelicidade, não éramos gêmeas idênticas. Uma vez, no pátio da escola, entreouvi alguém se referir a mim como um Bambi de pernas de pau e, embora Umberto tivesse rido e dito que aquilo era um elogio, não foi o que me pareceu. Mesmo depois de ultrapassar a idade em que tinha sido mais desajeitada, eu sabia que, perto de Maite, continuava parecendo magrela, desengonçada e anêmica; aonde quer que fôssemos ou o que quer que fizéssemos, ela era tão morena e efusiva quando eu era pálida e reservada.


Sempre que entrávamos juntas num cômodo, todos os refletores viraram-se imediatamente para ela e, mesmo estando bem a seu lado, eu era apenas mais uma pessoa do planeta na platéia. Com o tempo, entretanto, fiquei à vontade em meu papel. Nunca precisava me preocupar com a conclusão de minhas falas, porque Maite inevitavelmente as concluía por mim. E, nas raras ocasiões em que alguém perguntava sobre minhas esperanças e meus sonhos – em geral, quando eu tomava uma refinada xícara de chá com um dos vizinhos de tia Rose –, Maite me puxava para o piano, que tentava tocar enquanto eu virava as páginas da partitura para ela. Mesmo agora, aos 25 anos, eu ainda me agitava e acabava empacando nas conversas com estranhos, torcendo desesperadamente para ser interrompida antes de ter que combinar um verbo com um objeto. 



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Autor(a): jubrito

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