Fanfic: Dona Any e Seus Dois Maridos - Adaptada

No tempo de Poncho, quando dona Marichelo aparecia era às carreiras, em rápidas passagens, o indispensável para falar mal do genro e empreender o caminho de volta antes do maldito surgir com sua graçolas de mau gosto. Porque com Poncho, dona Marichelo nunca levara vantagem, jamais o dominara, nem sequer conseguia deixá-lo nervoso e irritado. Apenas a enxergava a cochichar, era tomado de riso, demonstrando a maior satisfação, como se a sogra fosse sua visita preferida, o pulha.

-Olhe quem está ai: minha santa sogrinha, minha segunda mãe, esse coração de ouro, essa pomba sem fel. E a lingüinha, como vai bem afiada? Sente aqui, minha santa, junto de seu genrinho querido; vamos vasculhar o lixo da Bahia...

E ria aquela sua risada sonora e alegre de homem ladino e satisfeito com a vida: se tanto titulo a vencer e tanta divida espalhada, tanta apertura de dinheiro e tanta urgência de numerário para apostas as não conseguiam entristecê-lo nem exasperá-lo, como poderia dona Marichelo alimentar esperanças? Por isso o odiava, e pelo que ele lhe fizera nos primeiros tempos do namoro.

Numa rabanada raivosa abandonava o campo de batalha, tangida pelo riso de Poncho, ia vingar-se em dona Any, acusando-a rua afora, em agitados comícios:

- Nunca mais ponho os pés nessa casa, filha amaldiçoada! Fique com o cachorro do seu marido, deixe que ele insulte sua mãe, esqueça o leite que mamou... Vou embora antes que ele me bata... Não sou igual a você que gosta de apanhar...

Com a risada de Poncho a persegui-la pelas esquinas, estourando nos becos, gaitada de mofa – dona Marichelo perdia a cabeça. Uma vez a perdeu por completo; esquecida de sua condição de senhora viúva e recatada, deteve-se na rua cheia de gente e, voltando-se para janela onde o genro se torcia de rir, descascou-lhe, com o braço nu, uma penca, senão todo um cacho de bananas. Acompanhava o gesto grosseiro com praga e insultos, a voz estrangulada:

- Tome, seu sujo, seu indecente, tome e meta...

Escandalizavam-se os passantes, o grave professor Epaminondas, a pulcra dona Dulce:

- Mulher mais sem compostura... – criticava o professor.

- É uma histérica... – definia a professora.

Apesar de bem conhecer dona Marichelo, testemunha que fora daquele e outros furores, familiar de seu caráter difícil, de seu congênito azedume, ainda assim, na fila do Elevador, tornava dona Maite a surpreender-se. Nunca imaginara pudesse perdurar a quizília entre sogra e o genro mais além da morte, não concedendo dona Marichelo ao finado sequer uma palavra de lamentação, mesmo vazia de sentimento, puramente formal, da boca para fora, nem isso:

- Até o ar que respira aqui ficou mais leve depois que o desgraçado esticou as canelas...

Dona Maite não pôde conter-se:

- Puxa! A senhora tinha mesmo raiva de Poncho, hein?

- Oxente! E não era para ter? um vagabundo sem eira nem beira, pau-d’agua, jogador, não valia de nada... e se meteu na minha família, virou a cabeça da minha filha, tirou a desinfeliz de casa pra viver as custas dela...

Jogador, cachaceiro, vagabundo, mau marido, era tudo verdade, considerou, pensativa, dona Maite. Como odiar, no entanto, mais ale da morte? Não se deve, no carrego dos defuntos, varrer e enterrar os recentimentos e as discórdias?

Não era essa a opinião de dona Marichelo:

- Me chamava de velha xereta, nunca me respeitou, ria nas minhas bochechas... Me enganou quando me conheceu, me fez de boba, me arrastou na rua da armagura... Por que hei de me esquecer, só porque está morto no cemitério? Só por isso?