Fanfic: Dona Any e Seus Dois Maridos - Adaptada
6
NUMA BREVE E POLIDA CURVATURA, MIRANDÃO, O ROSTO RESPLANDECENTE de simpatia, pediu licença, sentou-se ao lado de dona Marichelo. As cadeiras de palhinha circundavam a sala, encostadas à parede. O estudante crônico ("perseverante", corrigia ele, se lhe recordavam seus sete anos de Escola de Agronomia) estendeu as pernas, ajustou cuidadoso o vinco das calças, analisando os pares no tango argentino caprichado, figurações difíceis, passos quase acrobáticos, sorriu aprovativo: nenhum dançarino podia comparar-se a Poncho, nenhum com sua classe, benza-te Deus e te livre do mau olhado, t`esconjuro! Mirandão era supersticioso. Mulato claro e pachola, de seus vinte e oito anos de idade, a mais popular figura dos castelos e das casas de jogo da Bahia.
Sentindo o olhar de dona Marichelo a acompanhar o seu, para ela voltou-se, abrindo ainda mais o cativante sorriso; a examiná-la com olho crítico e apreciador. "Bucho definitivo, sem serventia", concluiu com pesar. Não devido à idade. Há muito Mirandão inscrevera em seu código de procedimento com as mulheres um parágrafo afirmando jamais a nenhuma dever-se desprezar por madura ou velha, caso contrário podia-se cair em erros fatais. Mulheres já além dos cinqüenta ainda por vezes mantinham rara e admirável forma e juventude, capazes de surpreendentes perfomances, de recordes imprevisíveis. Ele o sabia por viva experiência, e ainda agora, ao fitar as ruínas de dona Marichelo, recordava-se do esplendor crepuscular de Célia Maria Pia dos Wanderleys e Prata, todos esses nomes para designar uma tampinha desse tamanho, senhora da alta sociedade, mulherzinha espevitada, levada da breca. Com mais de sessenta anos confessados, e a por florestas de chifres no marido e nos amantes, insaciável. Com netas balzaquianas e bisnetas casadoiras, e ela a fazer caridade - e que caridade! era árdega e magnânima fêmea a jovens estudantes necessitados. Mirandão semicerrou os olhos: para não ver a vizinha, carcaça sem recurso nem escapatória, e também para melhor recordar o uterino e inesquecível furor de Célia Maria Pra dos Wanderleys e Prata e as notas de cinqüenta e cem mil- réis que ela, grata, riea e esperdiçada, lhe enfiava às escondidas no bolso do paletó. Ah! bons tempos aqueles, Mirandão a iniciar-se nos estudos e nos mistérios da vida, calouro de agronomia, cascabulho da noite, e Maria Pia dos Wanderleys gastava legítimo perfume frances nas rugas do pescoço e nos baixios.
Reabriu os olhos para a sala, a sentir nas narinas a fragrância da inolvidável tataravó; a seu lado, o xaveco com cara de bruxa argaço vil, pelancas nas bochechas, coque nos cabelos - continuava a fitá-lo com seus olhos miúdos. Era um espantalho, devia feder sob as anáguas, um aftim de carne passada; Mirandão aspirou rápido as sobras do perfume francês na memória distante - ah! nobre Wanderley, onde andarás agora, septuagenária? A velha na cadeira, que estrepe mais sem misericórdia!
Educado, porém, como se honrava de ser, o permamente estudante de agronomia não deixou de sorrir para dona Marichelo. Uma bruaca, uma catraia, resto de peixe seco e salgado, inútil para qualquer ação ou pensamento lúbrico, nem assim deixava de merecer respeito e atenção: exausta mãe de família, pelo jeito viúva; e Mirandão era, no fundo, um moralista extraviado nas casas de tavolagem. Ao demais, chegara seu momento de euforia.
- Festinha animada, não acha? - perguntou a dona Marichelo iniciando o histórico diálogo.
Era sempre assim, em cada um de seus freqüentes pileques. Primeiro tinha aquela fase de esfuziante júbilo. Parecia-lhe o mundo perfeito e bom, a vida alegre e fácil, e naquela hora Mirandão tudo podia compreender e estimar, estabelecia-se entre ele e as demais criaturas um clima de comunhão total, mesmo entre ele e a fedida arraia-mijona, sua vizinha de cadeira. Ficava delicado, conversador, a imaginação extravasando, sem limites. A figura do estudante pobre, "perpétuo estudante e perpetuamente sequioso", imagem por ele criada e da qual vivia, cedia lugar ao homem moço, importante e vitorioso, promovido a engenheiro-agrônomo, quando não a livredocente da Escola, enumerando vantagens, galgando cargos e conquistando mulheres. Danava-se a contar histórias, e como as contava! Era um mestre da narrativa oral, criador de tipos e de suspense, um clássico da boa prosa.
Se a bebedeira se prolongava, no entanto, ao fim da noite esse otimismo e essa euforia se esfumavam, e, ao término da esbórnia, envolvia-se Mirandão em lástima e lamento, a flagelar-se, lancinante, em impiedosa autocrítica, recordando a esposa vítima de sua degradação, os quatro filhos sem comida, toda a família ameaçada de despejo, e ele ali, nos antros de jogo e nos prostíbulos. "Sou um miserável, um crápula, um canalha", alardeava um Mirandão pungente, com remorsos e sem malícia, um moralista. Mas essa segunda e lamentosa fase só de raro em raro acontecia, só em ocasiões de porres monumentais.
As vinte e três e trinta, porém, na casa em festa do major Pergentino Pimentel, aposentado da Polícia Militar do Estado, encontrava-se Mirandão contente com o mundo, disposto a cordial e proveitoso intercambio de idéias com dona Marichelo. Acabara de comer e beber à tripa forra na sala de jantar, provando todos os pratos, repetindo alguns deles. Num esperdício de comida, ali se exibiam os quitutes baianos, vatapá e efó, abará e caruru, moquecas de siri mole, de camarão, de peixe, acarajé e acaçá, galinha de xinxim e arroz de haussá, além de montes de frangos, perus assados, pernis de porco, postas de peixe frito para algum ignorante que não apreciasse o azeite de dendê (pois como considerava Mirandão de boca cheia e com desprêzo, há todo tipo de bruto nesse mundo, sujeitos capazes de qualquer ignomínia). Toda essa comilança regada a aluá, a cachaça, a cerveja, a vinho português. O Major realizava sua festa há mais de dez anos, cumprindo severa obrigação de candomblé, desde quando os orixás haviam-lhe salvo a esposa ameaçada de morte com pedras nos rins. Não media despesa, juntando dinheiro o ano todo para gastá-lo satisfeito naquela noite. Mirandão se atolara, garfo respeitável e copo mais ainda. Agora, empanzinado, afrontado de tanto comer e beber, só mesmo um bom cavaco para ajudar a digestão.
Na sala, os pares desdobravam-se no tango argentino, ao piano Joâozinho Navarro. Dizendo-se Joãozinho Navarro, para os entendedores já se disse tudo, não havia pianista mais reqüestado na Bahia, e certa gente, como um juiz de nome Coqueijo muito entendido em música, ligava o rádio só para ouvi-lo a dedilhar, num programa de canções populares. E, pela madrugada, no Tabaris, não era seu piano o motivo da maior ammação? Festa particular dificilmente o obtinha, não lhe sobrando tempo para tais amadorismos. Indefectível, porém, na brincadeira em casa do Major, a quem Joãozinho não podia enfonar, era-lhe devedor de gentilezas antigas.
Mirandão olhava complacente os dançarinos, aplaudia com a cabeça a execução de Joãozinho - batuta! - sorrindo para a vizinha, constatando a absoluta ausência de qualquer outro penetra, além dele e de Poncho. Nenhum outro herói! - penetrar na festa do Major Tiririca (como os moleques do Rio Vermelho haviam apelidado o bravo Pergentino) era proeza impossível, motivo de apostas e desafios. Mirandão considerava-se realizado: finalmente haviam conseguido, ele e Poncho, furar a barreira estabelecida pelo Major e obter que a pesada porta de carvalho, trancada a chave, única passagem a abrir-se para os convidados e só para os convidados - todos eles rostos familiares aos donos da casa, amizades de longa data - obter que se abrisse para ele e para Poncho e lhes desse entrada. E não só isso; sendo os dois acolhidos aos abraços pelo Major e por dona Aurora, sua esposa, ainda mais ciosa da qualidade e identidade dos convivas, que o marido. Lá fora, no sereno animadíssimo, os gabirus amargaram a derrota ao vê-los penetrar, após breve troca de palavras com o Major Tiririca, cruzando a intransponível soleira por entre ruidosas exclamações de dona Aurora. Como o haviam conseguido?
Mirandão suspirou de bucho farto, num sorriso beato. Lá ia Poncho pela sala, a bailar, a dama linda em seus braços, loira rechonchuda, servida de carnes - e quem gosta de ossos é cachorro -, com uns olhos de azeite e uma pele cobreada, cor de chá, formosa de ancas e de seios.
- Pedaço de descaminho, perdição de loira! - louvou Mirandão, apontando a moça a dançar com o amigo.
O estupor pôs-se em guarda, alteou o busto seco, ganiu com voz batalhadora:
- É minha filha . . .
Mirandão nem se alterava:
- Pois receba meus parabéns, minha senhora. Vê-se logo que é moça direita, de família. O meu amigo . . .
- O moço que está dançando com ela é seu amigo?
- Se é meu amigo? Intimo, minha senhora, fraterno . . .
- E quem é ele, eu poderia saber?
Mirandão endireitou-se na cadeira, puxou do bolso o lenço perfumado, enxugou umas gotas de suor na testa larga, cada vez mais sorridente e feliz: nada havia de que ele tanto gostasse como de armar uma patranha, uma história bem divertida.
- Permita-me que.antes eu me apresente: doutor José Rodrigues de Miranda, engenheiro-agronomo, requisitado no Gabinete do Delegado Auxiliar . . . - estendia a mão, cordialíssimo.
Num último assomo de desconfiança, dona Marichelo mediu o interlocutor com um olhar hostil. Mas a fisionomia pachola e o franco sorriso de Mirandão apagavam qualquer suspeita, rompiam qualquer resistência, desarmavam e conquistavam qualquer adversário, mesmo maligno e ranheta como dona Marichelo.
Autor(a): Bela
Este autor(a) escreve mais 37 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
7 NAQUELE DIA, AO FIM DA TARDE, QUANDO MAIOR O MORMAÇO, uma atmosfera espêssa, de cimento armado, estando Poncho e Mirandão em São Pedro, no Bar Alamêda, a tomar as primeiras cachaças do dia, discutindo planos para a noite de festa no Rio Vermelho, eis que na porta do botequim viram surgir a afogueada face de ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo
Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 6
Para comentar, você deve estar logado no site.
-
bela Postado em 08/09/2009 - 11:57:21
Postei em Dona Any e Seus Dois Maridos ....
comentem por favor sim....
bjinhoss -
anacarolinaa Postado em 30/08/2009 - 20:53:01
oii! será que você pode conferir minha mini web De Repente ?
Ah! Adorei sua web!
Obg!
Bjooo -
millarbd Postado em 26/08/2009 - 20:26:27
ADOREIIIIIIIIIIIIII... POSTA MAIS...., PLIS....
-
marcos00 Postado em 26/08/2009 - 20:24:41
2 leitorr
kkk -
bela Postado em 26/08/2009 - 19:54:13
eba !!!! primera leitora... q bom q gostou ... espere q goste do resto...rsrsrs
-
millarbd Postado em 26/08/2009 - 17:00:25
1 leitora... ja gostei.. posta logo!