Fanfics Brasil - Dona Any e Seus Dois Maridos - Adaptada

Fanfic: Dona Any e Seus Dois Maridos - Adaptada


Capítulo: 28? Capítulo

175 visualizações Denunciar


9


 


 


O namoro de Any e Ponch desembocou direto no casamento, pois noivado não houve, como logo adiante se constatará, exibindo-se causa e razão dessa anomalia a romper os procedimentos habituais e consagrados em todas as famílias que se prezam. Nambro, aliás, dividido em duas etapas distintas, perfeitamente delimitadas, cada uma delas com suas características próprias. A primeira, plácida e risonha, toda azul e rosa, um céu aberto, verdadeira festa, a concordia universal. A segunda, confusa e perseguida, clandestina, cor do vitríolo e do ódio, o inferno na terra, a malquerença, a repugnância, a guerra declarada.


 


Durante a primeira fase, dona Marichelo esteve irreconhecível de tanta gentileza e compreensão; colaborou ativa e devotada para o sucesso do idílio. Viu-se depois dona Marichelo a espumar abominação, rancor e vingança - espetáculo talvez pitoresco mas pouco agradável -, disposta a empregar todos os recursos para impedir o matrimonio da filha com aquele tipo imundo "verme, pústula, poça de pús". Toda essa podridão - "verme, pústula, poça de pús" - era Poncho, antes o mais perfeito rapaz solteiro da Bahia, o pretendente ideal, belo e simpático, coração generoso, pérola de meço, impoluto caráter, adamantino. No ledo engano nascido da emaranhada novela posta de pé por Mirandão na festa do Major Tiririca, confirmada e desenvolvida graças a imprevistas circunstâncias, permanecera feliz dona Marichelo cerca de dois meses, dois memoráveis meses quando calcou sob o tacão dos sapatos toda a Ladeira do Alvo e adjacencias, da negra Juventina com seus ares de senhora até o doutor Carlos Passos com a sua próspera clientela. Exibia influência, intimidade nos círculos governamentais, nas altas esferas, intimidade com o Poder, personificado em Poncho. E exibia sobretudo o moço namorado da filha, com sua elegância cafajeste, sua lábia, sua conversa bonita, sua prosopopéia. Poncho se lhe afigurava um deus-menino, era tudo para ela.  E para ele tudo era pouco, dona Marichelo agitava-se num afã de agradar, de cativar o rapaz, de amarrá-lo.


 


 Para manter dona Marichelo enleada em cegueira assim completa, concorreu grandemente curioso qüiproquó. Entre as amigas de Any, sua colega de escola, havia uma pobre Célia, além de pobre, aleijada, com uma perna defeituosa, manca. As duras penas, "roendo beira de penico", como resumia dona Marichelo, cursou a Escola Normal e diplomou-se professora. Candidata a um lugar no ensino primário estadual, lutava há meses para obte-lo, sem conseguir sequer ser recebida pelo Diretor de Educação. Dona Marichelo tinha-lhe estima e a protegia. Talvez porque, sendo a moça tão infeliz e humilde, a seu lado ela e Any pareciam umas ricaças. Atenta, escutava a manca queixar-se da vida e dos grandes do mundo, dizendo horrores dos funcionários, e revelando particulares sórdidos daqueles "vampiros da educação", como sibilava por entre os dentes escuros e podres. Ali só obtinham nomeação as oferecidas, dispostas a aceitar convites para passeios à noite em Amaralina, Pituba, Itapoã, para festinhas íntimas, umas casteleiras! Moça direita não tinha chance, mofava nas cadeiras de couro da ante-sala. De tanto nelas mofar, Célia constituíra-se picante repositório de malignas anedotas sobre funcionários, chefes de secção, sem falar no


Diretor do Ensino, invisível personagem sobre o qual, no entanto, a rejeitada postulante tudo sabia: os hábitos, os bens, as preferências, a esposa, os filhos, a rapariga; nada lhe escapava. Jamais, porém, conseguira ser por ele recebida e expor seu triste caso.


 


Ora, logo nos dias iniciais do namoro, certa noite, a professora em desespero - o prazo para as nomeações de novas mestras esgotava-se naquela semana - deparou com Poncho em casa de Any e a ele foi apresentada. Dona Marichelo gostaria de ver a moça empregada e gostaria mais ainda de afirmar perante a vizinhança o prestígio do rapaz, do pretendente a genro, dispondo de empregos e vagas, mandando na administração do Estado. Prestígio a ser utilizado por ela, dona Marichelo, a seu bel-prazer.


 


Estava, sem dúvida, a viúva enleada numa rede de enganos sobre a personalidade do gabiru a rondar sua filha, mas não cometia erro quando, ao descrever para os conhecidos aquele caráter sem jaça, elogiava-lhe o bom coração: para Poncho todo sofrimento era injusto e odioso. Assim, apenas dona Marichelo lhe contou a história de Célia, dramatizando detalhes, valorizando-lhe o aleijão ("mesmo se quisesse não podia aceitar os licenciosos convites dos canalhas da repartição, não tinha alicerces para tanto"), ampliando as injustiças, multiplicando a fome da moça e de seus cinco irmãos, da mãe reumática e do pai guarda-noturno, logo Poncho simpatizou com a nobre causa e fez-se seu campeão. Decidido realmente a falar sobre o assunto com seus conhecidos de jogo, alguns dos quais tinham certa influencia - jurou veemente a dona Marichelo e a Any exigir do Diretor do Ensino no dia seguinte pela manhã, na hora do despacho com o Governador, a imediata nomeação da professora. Não passaria do dia seguinte: retornasse Célia à Diretora pela tarde e procurasse o titular, nomeação e posse eram favas contadas.


 


- Pode deixar comigo . . .


 


- Pode deixar com ele . . . - repetia dona Marichelo.


 


Any nada disse, apenas sorriu, não lhe importando, se Poncho gozava ou não de tanto prestígio, preferindo até fosse ele menos influente e por conseqüencia menos ocupado. Passava dias sem aparecer, sem vir conversar ao pé da escada, e, quando vinha, trazia a face estremunhada, sonolenta, das noites em claro a despachar com o Govêrno. Tomou Poncho nome completo da candidata e os demais dados necessários. Novamente Célia escreveu aquela fria literatura num pedaço de papel e sem esperanças: muitas vezes já o havia feito. Tantos pedidos e recomendações e nenhuma conseqüência. Por que aquele almofadinha enxerido, com um ar velhaco, de deboche, um pé-rapado certamente, por que logo ele iria lhe obter o emprego? Até o padre Barbosa lhe dera um cartão para o Diretor, e, se o padre nada conseguira, quanto mais esse tal namorado de Any; quem perdera prestígio para esse tipo achar? Boa bisca não era ele, via-se logo na cara tresnoitada. Célia acumulara ceticismo e amargura a arrastar a perna cambaia pelas salas hostis da Diretoria de Educação. A felicidade dos outros não a enternecia, nem mesmo a daqueles raros desejosos de ajudá-la, penalizados de sua sorte. Seu coração estava seco e árido e, ao rabiscar os nomes do pai e da mãe, a data de nascimento e o ano de formatura, fazia-o certa de perder tempo e esforço, aquele biltre não ia tomar nenhuma providência, ela estava farta desses pinóias emproados: promessas fáceis e mais nada.


 


Mas, que jeito? Dona Marichelo estava toda caída pelo gabola, doutor Alfonso para cà doutor Alfonso para lá, e ela, Célia, ia filar o jantar da velha fogueteira. Quanto ao sujeitinho bastava olhar para a cara dele e logo se via qual o seu desiderato: comer os tampos de Any e quebrar no beco, sumir num adeus e nunca mais.


 


Era Célia injusta com Poncho, pois para servi-la fez o rapaz naquela noite o roteiro completo das casas de jogo, numa dupla urucubaca: perdeu quanto tinha no bolso e não deparou com um só conhecido importante a quem expusesse o pequeno drama da professora e pedisse por ela. Nem Giovanni Guimarães, nem Mirabeau Sampaio, nem seu xará Alfonso Lins, nenhum deles apareceu, como se todas as suas relações influentes houvessem entrado em recesso, abandonando a roleta, o bacará, o grande e pequeno, a ronda, o vinte-e-um. Demorou-se Poncho noite a fora, e a figura mais ilustre a aparecer foi Mirandão, com quem terminou indo cear um sarapatel de arromba em casa de Andreza, filha de Oxun e comadre do estudante de agronomia.


 


- A Zinha é mesmo caipora . . . - comentou Poncho, relatando o caso a Mirandão, a caminho do barraco da negra de Oxun. - Zambeta, mirrada, e ainda por cima, com esse azar . . .


 


Mirandão aconselhava Poncho a não se amofinar: há gente assim, amigada com o caiporismo, não adianta se querer acudir. Ao demais, a preocupação tira o apetite, e o sarapatel de Andreza era um monumento, louvado até pelo doutor Godofredo Filho, com tóda sua autoridade. No dia seguinte, Poncho trataria do embelêco. Afinal a maçante já esperara tanto, não era um dia a mais ou a menos que a levaria ao suicídio. Quanto ao sarapatel de sua comadre Andreza, como foi mesmo a frase; a frase, não, o verso de mestre Godofredo? E quem encontraram à mesa da filha-de-santo senão o próprio poeta Godofredo, a fazer honra à comida de Andreza, sem regatear elogios ao tempêro e à cozinheira, pedaço real de negra, palmeira imperial, brisa matutina, proa de barco. Andreza sorria com toda sua prosôpia e realeza, machucava pimentas para o molho.


 


- E olhe quem está aí! - saudou Mirandão - Meu imortal, meu mestre, considere-me de joelhos ante sua intelectualidade.


 


- De joelhos estamos todos diante desse sarapatel divino - riu o poeta, apertando as mãos aos dois rapazes.


 


Sentaram-se e Andreza logo constatou a face preocupada de Poncho. Ele sempre tão alegre e pícaro, cheio de astúcia e trêfego, e, que lhe acontecera para assim sombrear o rosto, melancólico. Conte, meu santo, lave a alma, bote os dissabores pra fora. Andreza, de amarelo, colares nos braços e no pescoço, era a própria Oxun se desfazendo em dengue e formosura. Conte, meu branco, não fique jururu, sua negra está aqui para lhe ouvir e consolar. Na mesa, a toalha cheirando a patchuli, o chão perfumado de folhas de pitanga, entre o sarapatel e a pura cachaça de Santo Amaro. Poncho desfiou o rosário de desditas da professora primária, uma infeliz. Sentada à cabeceira, a negra Andreza sentia-se comovida com o relato, apertava com a mão o seio arfante - coitadinha da moça com seu aleijão e sua fome, com seu desejo de trabalhar e sem emprego! Será que Godô, cujo nome saía nas gazetas, ele próprio alto funcionário, não podia dar uma palavra, se mexer pela pobrezinha? Tremiam os lábios de Andreza ao suplicar, Poncho tinha razão, como sentir-se alegre quando alguém sofria assim, tão dura vida? Por que quisera escutar essa feia história? Não poderia novamente sorrir enquanto não soubesse a moça nomeada.


 


O poeta Godofredo prometeu interceder, quem sabe talvez obtivesse algo, quando ficara ela de voltar à Diretoria? No dia seguinte . . . Não, naquela mesma tarde, pois já era quase manhã, assim lhe ordenara Poncho. Pois que ela fosse, Godofredo ia ver . . . Não esclareceu ser parente próximo e amigo íntimo do Diretor de Educação, pedido seu era ordem executada. Não gostava o poeta de exibir-se, mesmo seus poemas só de raro em raro os publicava. Queria apenas devolver o sorriso de Andreza, sem seu sorriso era triste a noite e o mundo deserto e frio. Assim, quando na tarde seguinte, Célia, pessimista porém persistente, arrastou sua perna capenga escada acima e penetrou na ante-sala do gabinete do Diretor de Educação, qual não foi sua surpresa ao ser saudada com ânsia e calor pelo secretário de Sua Excelência, antes seco e ríspido:


 


- Dona Célia, eu estava esperando pela senhora. Meus parabéns, sua nomeação já saiu, já foi assinada . . .


 


- Hein? - estremeceu a professorinha - o quê?


 


Cada vez mais gentil, o secretário tornou-se confidencial:


 


- O que estou lhe dizendo . . . A primeira coisa que o Diretor fez ao chegar . . . Alguém muito elevado deu ordens, certamente. Foi uma das últimas vagas e estavam todas reservadas . . . Quer um conselho? Vá logo se apresentar, não perca tempo.


 


Apresentou-se, tomou posse, reuniu a magra família e foi ao primeiro andar do Alvo agradecer. "Alguém muito elevado", contou; e dona Marichelo repetia as palavras rolando -as na língua, saborosa, enchia a boca com elas, tinham um gosto de poder. Vibrava de contentamento: não esperara nomeação tão rápida, resultado tão fulminante. Com aquela urgência, tão depressa, só mesmo ordens diretas do Governador. Do Governador minha filha, e não de outro, Poncho mandava e desmandava no govêrno.


 


A notícia fez seu curso na ladeira, e quando Poncho apareceu à noite, na esperança de ficar a sós, com Any, no escuro da escada, foi saudado pela vizinhança numa quase mànifestação de aprêço. Surpreendeu-se com os agradecimentos, abraços e louvores, dona Marichelo num exagêro histérico. O rapaz passara o dia dormindo e quase esquecera as desventuras da inexeqüivel candidata. "Oh!, disse, não é nada, nada me devem, por favor!"


 


O poeta cumprira a promessa, feita mais a Andreza do que a ele, Poncho. Mas, como explicar a verdade, desfazer o enrêdo? Jamais dona Marichelo e seus vizinhos, jamais a amarga professora e sua gente mirrada e encardida, côr de sujo, ali junta para lhe agradecer, jamais compreenderiam os intrincados caminhos por onde o mundo e os homens andam, jamais acreditariam dever Célia sua nomeação a uma negra cozinheira, muito mais pobre que ela, alegre num casebre de madeira na fímbria do mar de água de Meninos, a fornecer almoços a saveiristas e a carregadores, a negra Andreza de Oxun. A fama correu e os pedidos choveram. Implorando nomeação de professora primária somaram-se oito em menos de uma semana. De motorneiro de bonde a fiscal de rendas não houve cargo sem candidato a adular dona Marichelo, sem bater palmas na porta do sobrado na Ladeira do Alvo. Até o emprego de sacristão na igreja da Conceição da Praia, a vagar segundo constava mas ainda não era certo, até esse lhe vieram pedir. Nem se Poncho fosse ao mesmo tempo Governador e Arcebispo, nem assim daria abasto.



Compartilhe este capítulo:

Autor(a): Bela

Este autor(a) escreve mais 37 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?

+ Fanfics do autor(a)
Prévia do próximo capítulo

10     Tocava dona Marichelo os cimos do poder, sentia o gosto sem igual da fama; Poncho tocava os seios rijos de Any no escuro da escada, sentia o gosto sem igual da boca medrosa e sedenta da moça, mordia-lhe os lábios. Revelava-lhe um mundo apenas suspeitado de prazeres proibidos, ganhando a cada noite de namoro uma parcela de sua resistênc ...


  |  

Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 6



Para comentar, você deve estar logado no site.

  • bela Postado em 08/09/2009 - 11:57:21

    Postei em Dona Any e Seus Dois Maridos ....
    comentem por favor sim....
    bjinhoss

  • anacarolinaa Postado em 30/08/2009 - 20:53:01

    oii! será que você pode conferir minha mini web De Repente ?
    Ah! Adorei sua web!
    Obg!
    Bjooo

  • millarbd Postado em 26/08/2009 - 20:26:27

    ADOREIIIIIIIIIIIIII... POSTA MAIS...., PLIS....

  • marcos00 Postado em 26/08/2009 - 20:24:41

    2 leitorr

    kkk

  • bela Postado em 26/08/2009 - 19:54:13

    eba !!!! primera leitora... q bom q gostou ... espere q goste do resto...rsrsrs

  • millarbd Postado em 26/08/2009 - 17:00:25

    1 leitora... ja gostei.. posta logo!


ATENÇÃO

O ERRO DE NÃO ENVIAR EMAIL NA CONFIRMAÇÃO DO CADASTRO FOI SOLUCIONADO. QUEM NÃO RECEBEU O EMAIL, BASTA SOLICITAR NOVA SENHA NA ÁREA DE LOGIN.




Nossas redes sociais