Fanfic: "Anjo por acidente" (ADAPTADA)

PRÓLOGO

— Nós vamos perdê-la, doutor!
Anahi ouviu as palavras como se viessem de muito longe. Remexeu-se na maca, inquieta. Precisava sair dali e ir ao encontro de... Lutou para levantar-se, mas o corpo não obedeceu e a dor na cabeça aumentou.
Abriu os olhos e fitou as enfermeiras debruçadas sobre ela, olhando-a com preocupação. O pânico intensificou o aperto que sentia no peito e na garganta. Não conseguia respirar. Estava sufocando! Um arrepio gelado subiu-lhe pelas pernas, a dor espalhou-se, descendo para o coração. Ela gemeu baixinho. Estava com frio, muito frio.
De súbito, viu-se engolfada por uma luz cegante. Um calor agradável emergiu de sua alma, aquecendo-lhe os membros entorpecidos. Aninhada no brilho aconchegante, ela começou a subir... subir... subir...
O lugar estava apinhado de gente. Estranho, aquilo, numa quarta-feira de junho. Uma névoa fresca envolvia as pessoas que esperavam para entrar.
Anahi inclinou-se para o lado para ver o início da fila e o peso da asa esquerda desequilibrou-a. Na tentativa de manter-se de pé, ela colidiu com o companheiro de trás.
— Oh, desculpe — murmurou.
— Está tudo bem — o homem calvo afirmou, voltando a ler o livrinho que tinha nas mãos.
Talvez fosse uma Bíblia, conjeturou Anahi. Era um sujeito de sorte, pois até usava colarinho eclesiástico, o que deporia a seu favor, A senhora com ar de vovó na frente dela, usava uma camisola carde rosa, muito recatada. Anahi olhou para o próprio traje e fez uma careta. Por que inventara de vestir a minissaia turquesa, logo naquele dia? Com blusa amarela, para piorar tudo! Claro, naquela manhã, quando se vestira, ela não sabia que ia cair num bueiro. De qualquer maneira, a roupa não era apropriada e não combinava com aquele par de asas brancas.
Um vestido longo, branco, seria perfeito. Era irritante saber que estava ridícula, numa ocasião tão importante quanto aquela. Afinal, era sua despedida definitiva. O adeus. Em outras palavras, como dizia o povo, "ela esticara as canelas".
Anahi engoliu em seco e virou-se nervosamente, batendo com a asa na cabeça do pastor atrás dela.
— Oh, desculpe — repetiu.
O homem sorriu com a paciência de um santo.
-— Está tudo bem — tornou a dizer.
Anahi olhou para a frente outra vez. O que estava acontecendo, afinal? Por que a fila não andava? Ela tentou erguer-se no ar, tremulando as asas de leve, mas não conseguiu. O jeito, então, foi saltar na nuvem fofa que servia de apoio para seus pés, para ver o que causava a demora. Tudo em vão. Só pôde ver algumas cabeças a sua frente, além das quais tudo se perdia na bruma.
Bateu com delicadeza na asa de penas acinzentadas da senhora com ar de vovó. A mulher, baixinha e gorducha, olhou para trás e fitou Anahi através das lentes bifocais.
— O que é, minha querida? — perguntou com doçura.
— A senhora por acaso sabe por que a fila não está andando?
— Está andando, sim, querida, mas muito devagar. É que eles precisam registrar as pessoas, uma por uma, e entregar-lhes as auréolas.
— Ah... — murmurou Anahi. — Isso deve mesmo levar tempo.
— Sem dúvida -— replicou a senhora. — E o exame também é demorado.
— Exame?! — exclamou Anahi, ficando tensa.
— Claro — a mulherzinha gorducha respondeu com um risadinha mansa. — Mas não precisa preocupar-se, meu bem. É só uma questão de rotina.
Voltou a olhar para a frente e Anahi sufocou um gemido, de desânimo, deixando as asas pender. Que beleza! Um exame! Bem que ela pressentira que algo assim aconteceria. E nunca fora bem em teste algum. Ali, certamente fariam perguntas sobre os Dez Mandamentos e coisas assim. Bem, ela sempre fizera o possível para ser boa, mas mudara-se muito de um lugar para o outro, com a mãe, e nunca tivera a oportunidade de receber uma educação religiosa adequada.
Nem tinha certeza de que sabia todos os mandamentos. Não matarás. Ela nunca matara ninguém. Não adulterarás. Também não cometera esse erro. Mas perderia pontos por causa de xingamentos e algumas mentiras. De que mais poderia ser acusada? Quais eram os outros mandamentos? Experimentou o impulso de pedir emprestada a Bíblia do pastor para dar uma olhada. Virou-se tão bruscamente que a ponta da asa esquerda bateu num dos olhos dele.
— Ai! — o homem gemeu.
— Oh, desculpe!
Ele não respondeu, daquela vez. Sua expressão era a de um mártir. Anahi decidiu que pedir a Bíblia emprestada não era boa idéia.
De qualquer forma, não teria tempo. Um murmúrio excitado percorreu a fila, quando uma entidade vestida de branco apareceu subitamente ao lado dela. Era um homem bonito. Impossível dizer sua idade, mas tinha aparência jovem e olhos que expressavam prudência e sabedoria. Eram olhos bondosos. Um aro de ouro flutuava acima de seu cabelo encaracolado, de um rico tom cinzento.
— Saudações — ele cumprimentou. — Meu nome é Bud.
— Saudações, Bud — responderam o pastor e a velha senhora, em uníssono.
As outras pessoas da fila desapareceram na bruma. A "vovó" pressionou o cotovelo contra as costelas de Anahi, sugestivamente.
— Ah! Saudações, Bud — Anahi apressou-se em cumprimentar.
Bud sorriu.
— Vim aqui fazer um pedido — explicou. — Há um homem lá embaixo que acabou caindo na Cova, Um de vocês iria lá para ajudá-lo a sair?
— O nome dele não é Herbert Smith, é? — quis saber Anahi.
Bud negou, meneando a cabeça, e ela suspirou, aliviada,
— Preciso de um voluntário — a entidade de branco incentivou, examinando cada um dos três com seus olhos amorosos.
Anahi desviou o olhar, fixando os sapatos de salto alto que usava, meio escondidos pela bruma. Cova? Ela estremeceu. Bem, não se apresentaria como voluntária para
aquela missão de salvamento. Não saberia tirar o homem do buraco.
Além disso, já que chegara àquela região de bruma clara, onde o chão era feito de nuvens, ali ficaria. Sentia-se bem. Quando caíra no bueiro, estava indo para um encontro com tio Herbert, que ficara a sua espera inutilmente. Talvez, se descesse, pudesse explicar por que não aparecera. Não. Sentia-se segura naquela fila nas nuvens. Parecia que estava voltando para seu verdadeiro lar.
— Mas já esperamos tanto nesta fila! Eu quero entrar o mais depressa possível! — exclamou a "vovó", deixando claro que sentia o mesmo que Anahi.
— Será um trabalho de apenas duas semanas. Assim que o voluntário voltar, irá para o início da fila — prometeu Bud.
"Tirar o sujeito da Cova deve ser mesmo um trabalho difícil. Se fosse fácil, o voluntário não mereceria um tratamento tão especial", considerou Anahi consigo mesma.
— Preciso de uma pessoa paciente e controlada — prosseguiu Bud. — E, claro, alguém que tenha muito amor para dar. O amor é a resposta para tudo.
Anahi ergueu os olhos para o pastor. Ele abanava a cabeça, concordando solenemente com as palavras da criatura de branco. Então, marcou o lugar que estava lendo com um longo dedo ossudo e pigarreou.
— Tenho alguma experiência em lidar com as fraquezas humanas — declarou. — Quem é esse homem? Qual sua profissão?
— Ele se chama Alfonso Herrera -— respondeu Bud. Então, hesitou, antes de completar: — É advogado.
"Advogado", pensou Anahi , torcendo o nariz. "Isso explica muita coisa."
A senhora de camisola cor-de-rosa franziu a testa e até o pastor perdeu a aparência confiante. O silêncio tornou-se constrangedor.
— Quem estiver disposto a cumprir essa tarefa que dê um passo à frente — disse Bud, por fim.
Ninguém se moveu.
—- O assunto é urgente — ele pressionou. — Um de vocês três terá de ir.
Anahi  mal teve tempo de ver o olhar que o pastor e a "vovó" trocaram, antes de sentir que a empurravam discretamente para a frente. Ela tropeçou e quase colidiu com Bud.
O rosto dele iluminou-se com um sorriso radiante.
— Quanta gentileza sua, Anahi !
"Droga", ela resmungou intimamente.
— Anahi ... — Bud chamou-a baixinho.
Ela olhou-o, cheia de esperança. Ele teria mudado de idéia?
— Cuidado com o palavreado — Bud recomendou.
Anahi sentiu que perdia as asas, ficando muito mais leve. Deu um passo para trás, desequilibrada. Uma agradável brisa soprou sobre ela, fazendo-a oscilar na beira da
nuvem, antes de começar a cair... cair... cair...