Flash Back on:
Não era um dia como outro qualquer no Democracy. Alguns alunos comemoravam, outros se lamentavam, mas nada daquilo me atingia. Eu não estava inserida em nenhum grupo para sofrer qualquer tipo de influência.
Fui para a biblioteca e como sempre, me sentei na mesa mais isolada. Mesmo em um local geralmente silencioso, era possível ouvir os murmúrios a respeito do resultado das eleições para presidente do grêmio estudantil daquele ano. Muitos alunos pensaram que Christopher iria vencer, já que seu pai era um político influente e sua campanha foi simplesmente espalhafatosa. Só que, contrariando as expectativas até da direção, um candidato do último ano venceu.
Às vezes sentia como se o Democracy fosse um pequeno país. As pessoas levavam muito a sério tudo que acontecia ali. Era como se não percebessem que o ensino médio durava pouco e a vida “de verdade” começaria quando nos formássemos.
Cansada das futilidades que me rodeavam, abri um livro e tentei estudar. Passaram-se alguns minutos, até que senti alguém se sentar na cadeira ao meu lado. Achando que era Christian, não me preocupei.
- Olá. - A voz baixa me assustou.
Encolhida e com o rosto praticamente escondido dentro do livro, senti um frio percorrer a minha espinha.
- Tudo bem? - Estranhamente acanhado, Christopher insistiu na conversa.
Com a face coberta pelos cabelos, ergui só um pouco a cabeça e verifiquei se seus colegas estavam por perto tramando algum mal contra mim.
- Estou sozinho. - Sussurrou, para que ninguém ouvisse.
Desconfiada, usei toda a minha coragem para perguntar:
- O que quer?
O fitei e Christopher baixou a cabeça para não me encarar.
- Só quero te fazer uma pergunta.
Fiquei totalmente confusa. Era a primeira vez em anos que Christopher se dirigia a mim. Na verdade, nunca fora tão educado. Quando éramos crianças, sua turminha zombava de mim como se eu fosse um tipo de cachorro perneta ou doente. Um dia ele até me cutucou com um graveto.
- Pergunte. - Minhas mãos suavam muito.
- Você pode me ajudar? Nós vamos ter aquele prova difícil de Química na Quarta e eu estou totalmente perdido nessa matéria.
- Ah... - Agora estava começando a entender seu repentino interesse em mim. Meu trabalho de Química foi o melhor da classe e Christopher queria tirar proveito disso. - Eu... - Não podia ajudá-lo. Não depois de tudo que fez comigo.
- Olha, sei que no passado impliquei um pouco com você. Foi coisa de criança, você sabe. Não significa que não podemos ser amigos agora.
- Amigos? - Nunca imaginei em toda minha vida que ouviria aquilo. Baixei a cabeça sem saber como agir. Praticamente ninguém falava comigo e agora o rapaz mais popular do colégio queria ser meu amigo? - Eu... eu... acho que tudo bem. - Engoli em seco.
Um pequena chama de esperança acendeu dentro de mim. Talvez, se Christopher falasse comigo de vez em quando, os outros alunos veriam que eu não era um monstro ou portadora de uma doença contagiosa.
- Vai poder me ajudar? - Tocou suavemente minha mão direita. A mão que não tinha cicatrizes.
- Vou sim. - Dei um meio sorriso, o qual ele não pode ver por causa da cortina de cabelos.
- Obrigado.
- Quando quer estudar?
- Pode ser esta noite? É que ando sem tempo. Estamos treinando muito para os últimos jogos do final da temporada.
Refleti por um breve momento e, mesmo relutante, cedi.
- Tudo bem. Você quer ir na minha casa?
- Hãmm... - Ficou na dúvida. - Pode ser aqui mesmo na biblioteca? O zelador é meu amigo e quando não tenho tempo para estudar ele me deixa ficar aqui à noite.
- Até que é uma boa idéia.
O fato de ele querer ficar na biblioteca só podia provar que realmente estava interessado em estudar.
- Nos encontramos aqui às 20:00h?
- Err... - Ainda não estava acreditando. - Sim.
- Vou avisar ao zelador, ele te deixará entrar. Obrigado. - Deu um rápido sorriso e saiu.
Assim que fiquei sozinha respirei fundo. Estava imersa em um misto de perplexidade, empolgação, receio e curiosidade.
Logo que foi possível, contei para Christian as novidades e ele também ficou confuso. Como não estava presente no momento que Christopher conversou comigo, e não viu o quanto foi amigável, acabou ficando bastante desconfiado.
(...)
Assim como Christopher falou, às 20:00h em ponto o zelador me deixou entrar no colégio. Ansiosa, mandei uma mensagem para Christian dizendo que eu estava bem e que não se preocupasse. Depois, coloquei o telefone no modo silencioso para não nos atrapalhar.
O tempo correu e nem sinal de Christopher. No momento que o relógio da biblioteca marcou 20:30h, desisti de esperar. Então, reacendendo a minha esperança,Christopher rompeu porta adentro.
- Desculpe pelo atraso. - Falou alto se aproximando.
Automaticamente me encolhi, sempre baixando a cabeça numa tentativa inútil de me esconder.
- Eu já estava indo, então...
- Ainda é cedo. Vamos estudar. - Sentou-se perto de mim e senti o cheiro de bebida.
Minha voz saiu trêmula ao questionar:
- Você... está... bêbado? - Um nó se formou em minha garganta.
- Não. - Abriu um livro, só que não o leu por estar de olhos fechados.
Sem saber o que dizer ou fazer, fiquei rabiscando em meu caderno.
- Quer conversar? - Fechou o livro com força.
- O quê? - Fui pega de surpresa.
Pigarreou olhando para minhas mãos.
- Doeu muito?
Era evidente que se referia às cicatrizes. Desconfortável com a pergunta, apenas respondi:
- Eu era muito pequena... Lembro de pouca coisa.
O silêncio voltou a predominar. Foi quase impossível continuar ali.
- Qual a sua dúvida sobre Química? - Murmurei.
- Dulce...
Estremeci ou ouvir meu nome sair de sua boca, pois sempre que o pronunciava era acompanhado das palavras “duas caras”.
- Sim? - Me distanciei, ficando na pontinha da cadeira.
Christopher levantou-se abruptamente, me assustando a ponto de eu cair da cadeira. Ele se inclinou para me ajudar e rastejei para longe com um medo que me deixou sem fôlego.
- Calma. - Segurou-me pelos braços e me obrigou a levantar. - Shhh... - Afagou o topo da minha cabeça.
- Quero... ir embora.
Ele não me soltou, mas por sua expressão dava para notar que também não estava feliz de estar ali.
- Tudo bem. - Soltou-me só que não consegui me mover. - É a sua chance, vai! - Ordenou severamente, mas minhas pernas tremiam e meu coração parecia que ia sair pela boca.
Natalie Merchant - My skin
Ele fechou os olhos com força. Então, em um ato que desafiava a lógica, beijou-me mesmo com os cabelos cobrindo a maior parte do meu rosto. Nossos lábios se tocaram por um tempo curto demais pra eu ter consciência do que significava aquilo.
Seus braços eram vigas de aço em minha volta. Eu não tinha como fugir e, para ser sincera, não queria fugir. Christopher foi o primeiro garoto que me tocou. Era uma sensação boa, mesmo que errada. Assim como qualquer adolescente, eu tinha sonhos românticos. Que garota maltratada do jeito que eu fui não sucumbiria à possibilidade irreal de ser amada por alguém tão lindo quanto Christopher? Na época, Tânia ainda não havia chegado ao Democracy e ele era simplesmente o rapaz mais cobiçado.
Eu tinha tanto medo de ninguém nunca me querer. De nunca saber como é ser tocada e beijada, por isso o deixei passar as mãos pelo meu corpo. Ele tinha consciência de que eu não gritaria ou pediria para que parasse e, incentivado por isso, me colocou sobre uma das mesas e se deitou sobre mim.
O senti relutante, como se fosse desistir. Seus olhos estavam fixos nas minhas roupas e eu sabia o porquê. Sempre vesti roupas que cobrissem todo o meu corpo para esconder as cicatrizes. Ninguém tinha a menor ideia de como era a minha pele por debaixo das vestes escuras e grossas.
Guiado por uma motivação que eu desconhecia, Christopher subiu a minha saia. E sem nem olhar para mim, arrancou a minha calcinha. Ao se colocar entre minhas pernas, pousou seu rosto no vão entre meu pescoço e ombro, obviamente no lado que não era deformado.
Ele tocou-me intimamente, talvez querendo descobrir se eu era “estranha” ali também. Mesmo sendo doloroso passar por aquilo, senti prazer com seus dedos. Eu não podia me dar ao luxo de repudiá-lo, pois quem mais teria coragem de fazer todas aquelas coisas?
Christopher continuou com a carícia até que seu corpo cedesse ao que sua mente parecia estar decida a fazer. Quando finalmente abriu a calça, colocou um preservativo e penetrou-me com um único e forte movimento. A dor intensa me fez trincar os dentes e gemer. Foi uma sensação que eu realmente não estava preparada para sentir.
Christopher estava se esforçando para continuar, mas não deixei que o sentimento de humilhação me tomasse naquele momento. Eu queria aproveitar cada segundo, pois era possível que aquilo nunca mais se repetisse. Desejava extrair daquela experiência tudo que pudesse e, mais tarde, me arrependeria e choraria.
- Você está bem? - Sussurrou ameaçando parar.
- Estou. - Minha voz saiu embargada.
Ele passou a aumentar o ritmo de suas investidas, ficando mais compenetrado no prazer mórbido que ambos passamos a sentir. Tudo nele mexia com meus sentidos. Seu cheiro, voz, calor... Mesmo sendo a coisa mais estúpida que já fiz até aquele momento, me vi querendo ficar presa a ele. Era como trocar o sofrimento constante que era minha vida por um sofrimento onde eu era uma vítima voluntária, ligada carnalmente à pessoa que tornou minha existência ainda mais cruel. Atada a esse pensamento, abracei Christopher, algo que nunca imaginei que faria. Até ele se surpreendeu, mas nada falou.
O insulto sexual logo chegou ao seu ápice e fechei meus olhos, deixando que Christopher levasse o resto de mim que sua alma impiedosa ainda não havia roubado. Então, tarde e cedo demais, ele se foi sem dizer uma só palavra. Com a alma ardendo, me recompus e juntei minhas coisas. Ao pegar o celular, vi que tinham 9 chamadas não atendidas de Christian. Imediatamente retornei a ligação e ele atendeu, aflito.
- Dulce? Você está bem? Onde está?
- Estou bem, Christian. - Respondi como se tivesse acabado de acordar.
- Afaste-se de Christopher! Afaste-se! - Gritou preocupado e estranhei.
- Por quê? O que aconteceu?
- Quando Mike veio aqui em casa buscar o trabalho de história que fiz pra ele, o ouvi falando com alguém no celular. O Uckermann apostou com o pessoal do time que ia vencer as eleições, mas como perdeu... - Fez uma pequena pausa com medo de continuar. - Bem, ele foi te encontrar disposto a cumprir a parte dele do acordo. - Suspirou. - Vocês... transaram? - Meu silêncio tirou suas dúvidas. - O mais repugnante é que ele tinha que levar o preservativo e uma peça íntima sua para provar que consumou o ato. Dulce, precisa contar para os seus pais. Alguém tem que tomar uma providência porque...
Desliguei o telefone.
Eu sabia que havia um motivo para Christopher ter me procurado, mas não imaginei que fosse algo tão... Não era uma brincadeira onde o cara popular ficava com a mais feinha do colégio. Eles queriam que Christopher sofresse e se envergonhasse. O time o estava punindo por sua presunção, ou seja, eu não era uma aposta... EU ERA O CASTIGO.
Parada no meio da biblioteca, desejei muito chorar e me descabelar. Tinha que colocar toda a dor pra fora, só que não consegui. Ficou tudo preso dentro de mim. Por fora, não esbocei nenhuma emoção, mas por dentro havia tremores e gritos, soluços e pranto. Meu espírito sofria uma agonia semelhante à de um parto. E, ali mesmo, ainda com sangue entre as pernas, Candy nasceu.
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