Fanfic: Contos Alternativos: a menina que podia falar
Capítulo 1
Tentou abrir os olhos e não conseguiu. Uma voz cantarolava uma canção que nunca ouvira antes. Não sabia onde estava nem como tinha parado ali. Lembrava-se de pouca coisa. Deu ordem a seu corpo para se levantar, mas este ignorou suas ordens e mal se mexeu. Aos poucos, suas forças se esvaíam e começou a adormecer novamente. Ouvia o som da música diminuir em seus ouvidos e entrar em sua mente enquanto mergulhava no abismo de seu subconsciente.
X X X
A estrela brilhava sobre a superfície do planeta o tempo todo, forte e cintilante como o Sol de Verão em latitudes temperadas do planeta Terra. Sem descanso, sem pausas, sem qualquer mudança climática, a estrela estava sempre lá, vigiando tudo o que todos os habitantes do planeta faziam. Não havia onde se esconder ou fugir do seu alcance. A estrela ali naquele planeta era um Deus onipresente, onisciente e implacável.
Como todo deus, a estrela possuía seus adoradores, que não buscavam dela uma dádiva ou um favor, mas tão somente o seu perdão, a sua aceitação e o desviar da sua ira. Havia uma única religião no planeta, a dos adoradores da estrela, e seu líder era a autoridade máxima do planeta.
O kohen, como era chamado, era a autoridade máxima e a única pessoa capaz de ouvir e de transmitir os mandamentos do deus estrela ao povo. Era um homem de meia idade, careca e de pele morena. Tinha um rosto severo e acusador, parecendo estar sempre querendo mandar alguém para a morte. Ele e seus seguidores usavam um manto negro, que cobria quase todo o corpo, deixando somente os pés, mãos e a cabeça de fora. Era severo e fazia cumprir as doutrinas religiosas a risca. Sempre que alguém era julgado infiel ao Deus Estrela, era levado até ele para que este ditasse a punição da pessoa. Ele determinava a sentença como achasse melhor, sem consultar a ninguém, nem mesmo a seus súditos seguidores. As vezes, como punição, o sacerdote mandava a alguns para a terra dos decaídos, para que estes fossem transformados ou mortos por lá.
Todos temiam esta parte de terra, pois o kohen lhes ensinara que era onde moravam os decaídos, homens que desobedeceram ao Deus Estrela e que foram transformadas em terríveis criaturas por ele.
Os habitantes do planeta moravam, em sua grande maioria, perto dos campos e dos rios, onde era possível cultivar a terra e colher alimentos. Havia, porém, um grande rio de águas selvagens que cortava a parte de terra do planeta em duas porções. Uma menor, onde vivia a população em geral, e outra bem maior e quase desconhecida, que era a terra dos decaídos.
Alguns poucos corajosos e curiosos do planeta que ousaram atravessar o grande rio e ir até o local por conta própria, voltaram aterrorizados com o que viram. Disseram que havia pedaços de corpos espalhados por vários lugares e outros afirmavam ter visto no que os punidos foram transformados, "Criaturas peludas e com quatro patas", era como eles as descreveram, com gestos. Por isso, ninguém mais queria ir para lá. Preferiam viver suas vidas onde conheciam e seguiam todas as doutrinas dos Adoradores.
Neste planeta vivia uma única criança, uma menina. Muito sonhadora e alegre, a menina era a única nascida e crescida no planeta e era, com certeza, a pessoa mais jovem de todos os seus habitantes.
A menina era muito curiosa e muito entusiasmada e acreditava em coisas que ninguém mais acreditava. Ela sonhava com pessoas diferentes vivendo coisas diferentes e acreditava que poderia haver outros lugares por aí que eles nem poderiam imaginar.
A menina alegre e bondosa era fascinada com este tipo de pensamento, mas ninguém mais no planeta parecia se interessar por isso. Ninguém parecia curioso em procurar por respostas e apenas viviam suas vidas como se não houvesse mais nada para fazer além de viver o hoje e o agora. Não havia ordens ou regras a seguir no planeta. Na verdade, apenas uma, "adorar o Deus Estrela". Fora isso, os seus habitantes poderiam viver como quisessem e bem entendessem, sem qualquer preocupação com o certo ou o errado.
A menina era muito astuta e esperta, com QI de fazer inveja a qualquer gênio do planeta Terra, o que lhe permitia entender o que nenhuma outra pessoa do planeta entendia. Ela achava que a estrela não passava de uma grande massa de fogo que iluminava o planeta e que ela não podia ver para além dela por causa da sua intensa e infinita luz. E também pela limitação do alcance dos seus olhos, é claro. Mas não parecia disposta a desistir mesmo assim e sempre passava horas ao tempo, tentando ver para além. Por vezes, jurava que tinha visto algo mais brilhar no céu.
A menina queria poder descobrir até onde o brilho da estrela os alcançaria, mas não tinha coragem de atravessar o grande rio e nem condições de navegar pelo grande oceano que os cercava.
Ela, porém, nunca havia falado nada do que pensava para ninguém, nem mesmo para sua mãe. Primeiro, porque sabia que não acreditariam nela e, provavelmente, seria acusada de heresia. Segundo, porque ninguém falava no planeta, nem mesmo ela. Todos se comunicavam através de gestos, sinais e desenhos.
Curiosamente, os habitantes deste planeta não tinham cordas vocais, exceto a menina, e ninguém por lá saberia ou se importaria em explicar o porquê. Mesmo possuindo as tais cordas, ela nunca falou nada além de alguns "da-dás" enquanto era ainda um bebê, o que assustou muita gente na época. A menina achava estranho o fato de ela conseguir emitir alguns sons que outros não conseguiam mas, no fim das contas, não sabia o que falar. Sua mãe a ensinou a esconder isso dos outros, para não chamar mais atenção do que já chamava, afinal, ela era a única criança de todo o planeta, a mais esperta e gostava muito de estar com as pessoas.
Como a estrela nunca ia embora, não existia a contagem dos dias ou dos anos para eles, e a idade da menina, assim como a de seus mais de três mil habitantes, era incerta. Mas, pelo seu tamanho e aparência, poderia-se dizer que ela teria em torno de 12 ou 13 anos, se fosse uma menina da Terra.
Tinha cabelos pretos, até os ombros e belas bochechas avermelhadas. Seus olhos curiosos eram verdes como esmeraldas e sua pele, clara por natureza, era bronzeada pelo brilho da estrela, que acompanhava a ela e a todos, onde quer que fossem.
Mesmo não acreditando no Deus Estrela, seguia a risca os rituais religiosos do planeta, que aprendera com sua mãe, pois sabia que morreria se não o fizesse. O principal deles era que, quando vissem uma nuvem cobrir a estrela, deveriam ajoelhar-se e baixar a cabeça em reverência e rezar para que ela ressurgisse e não os abandonasse. Só podiam levantar novamente a cabeça quando a nuvem passasse e a estrela reaparecesse. A menina, é claro, odiava todos os rituais e achava tudo aquilo muito chato. Para sua sorte, nuvens eram coisas raras no planeta, que era sempre bem úmido e com temperaturas amenas, apesar da estrela constante no céu.
O planeta era rudimentar e sem qualquer tecnologia aparente. Todos viviam basicamente do cultivo da terra, plantando o que comiam e pegando água nos rios. O único tipo de mercado que havia eram as feiras, nas quais os habitantes trocavam alimentos e objetos que possuíam. Não havia grande variedade do que comer, mas suas frutas e frutos eram muito saborosos. A menina era especialmente apaixonada por uma vermelha, que parecia um morango, porém, do tamanho de um abacate. Quando encontrava alguma madura na plantação onde ela e sua mãe colhiam os seus mantimentos, corria para pegá-las e, muitas vezes, já começava a comê-las ali mesmo. Sua alegria ficava estampada em meio ao rosto todo enlambuzado e vermelho.
Sua mãe adorava vê-la feliz daquele jeito, mas alguns dos habitantes que colhiam com elas na mesma plantação achavam as atitudes da menina estranha, pois não conseguiam entender qual era a grande coisa em comer uma fruta qualquer ou em ficar olhando para o céu. O pai da menina morrera antes mesmo de ela nascer e sua mãe a criou sozinha no planeta. As duas eram muito próximas e se ajudavam em tudo. A menina adorava o jeito doce com o qual a sua mãe arrumava o lugar onde moravam, sempre com muito cuidado e carinho. Ficava hipnotizada por seus serenos olhos castanhos e seus dentes brancos, que ficavam a mostra quando sua mãe sorria para ela. A menina invejava os cabelos da mãe, castanhos e finos, enquanto os dela eram negros e volumosos como os de seu pai.
Ninguém no planeta entendia aquela relação entre mãe e filha, pois não havia outras mães no planeta. A menina, por sua vez, era jovem demais para entender a vida dos outros habitantes e seus relacionamentos. Via-os muitas vezes aos beijos e agarrões no campo e na feira e achava tudo aquilo nojento, na verdade. Sua mãe a protegia, tampando seus olhos e a tirando de perto quando isto acontecia, pois não queria que a filha visse aquelas coisas. Sequer sabia o porquê, mas sentia que a menina não estava preparada para aquilo e apenas a protegia. Sempre estavam juntas e, da maneira delas, sabiam se comunicar e dizer o que queriam e o que sentiam. Mas a menina aprendera aos poucos que, mesmo sua mãe, não entenderia, nem concordaria com algumas coisas que ela pensava, então preferia não lhe contar suas idéias e teorias.
Um dia, a menina voltava para casa com sua mãe e outros habitantes que colhiam com elas quando viu de longe um brilho misterioso bater em seu rosto. Ela se distanciou da mãe e foi ver o que era. Ficou surpresa quando chegou ao local, pois havia um objeto no chão, diferente de tudo o que ela já tinha visto em sua vida. Era algo parecido com uma luneta bem pequena, cromada e com detalhes em preto. A menina achou o objeto fascinante, mas teve medo de alguém o ver com ele e resolveu pegá-lo para ela, deduzindo tendenciosamente que não haveria dono. Todos no planeta, com exceção dos seguidores do kohen, se vestiam com panos enrolados várias vezes ao corpo e a menina tratou de esconder o objeto dentro da roupa, sem que ninguém percebesse. Nem mesmo sua mãe.
Ela o levou para casa e o guardou em uma pequena caixa, juntamente com outras coisas estranhas que já havia achado em ocasiões distintas, mas que não sabia ao certo o que eram. Começou a encontrá-los havia pouco tempo e já havia parado de se perguntar de onde eles surgiam, decidindo apenas aproveitá-los e estudá-los, afinal, eram a única coisa interessante que lhe acontecera em toda a sua vida.
Mais tarde, quando a mãe já estava dormindo, tirou o objeto da caixa e começou a examiná-lo. Olhou-o com atenção nos seus detalhes e viu que o objeto possuía vidros dos dois lados e que estes tinham tamanhos diferentes. Colocou primeiro o olho dentro do vidro maior para ver o que tinha dentro do objeto e ficou assustada quando conseguiu enxergar algo que parecia ser sua cama em versão miniatura. Olhou de novo e viu que conseguia ver todo o seu pequeno quarto ainda menor dentro daquele objeto. Depois olhou pela lente menor, mas o que via eram grandes borrões de imagem, pois os objetos estavam muito próximos a ela. Examinou novamente o aparelho, comprimindo e esticando seus anéis, e sua genialidade a fez entender logo como ele funcionava e o porquê de não conseguir enxergar bem pela lente pequena. Correu para fora da casa, onde teria mais espaço, e começou a apontá-lo para os lados. Logo viu que podia enxergar novamente as coisas, só que agora maiores do que elas eram na verdade. Ainda mais curiosa, resolveu subir um morro que havia próximo a sua casa e tentou olhar para lugares ainda mais distantes mas, novamente só via borrões. Deu mais uma olhada no mecanismo, colocou-o de novo no olho e logo entendeu que poderia ajustar seu foco, permitindo que enxergasse a distâncias diferentes a medida que alterasse a posição das lentes.
Fascinada, a menina percebeu que agora podia ver objetos a distâncias que seriam impossíveis a olho nu. Apontou o dispositivo para diversas direções e se deliciava com seus novos olhos biônicos que lhe davam aquela super visão. Empolgada, subiu ainda mais o morro, até o seu topo, se afastando ainda mais de sua casa, para ver o que mais poderia ver com seu novo “brinquedo”.
Do alto do morro, mirou uma vila bem distante e tentou ver o que seus moradores faziam, mas logo descobriu que, quanto mais distante, mais difícil era fixar a visão, pois qualquer mínimo movimento causava verdadeiros terremotos no lugar para onde ela olhava. Resolveu então apoiar o objeto no chão para evitar as tremulações e passou a ver bem, bem mais distante. Depois de muito tempo olhando e procurando lugares conhecidos, conseguiu por fim identificar seu local mais distante, um vilarejo, que ficava a uma longa caminhada de onde ela estava.
Começou então a imaginar que, se agora, com o dispositivo, podia ver coisas na solo que antes não conseguiria, talvez pudesse ver também no céu coisas que a limitação dos seus olhos nunca a permitiu ver. Apontou sua luneta para o céu e começou a procurar. Continuou procurando e procurando, até que seu olho direito, o qual utilizava para enxergar dentro do dispositivo, começou a ficar vermelho, por causa do brilho da estrela. Mas isso não a desanimava e continuou a procurar, pois tinha certeza de que acharia aquilo que buscava, mesmo sem saber ao certo o que era. Seu coração palpitava, antecipando aos momentos em que ela achava que vira alguma coisa, mas, na verdade, não era nada. Suas mãos suavam e suas forças se esgotavam pelo tempo sem comer ou beber nada, exposta ao brilho escaldante da estrela. A dúvida começou então a rondar seus pensamentos e a menina ensaiou os primeiros sinais de desânimo. Aos poucos, sua visão foi ficando cada vez mais embaraçada e até mesmo o brilho da estrela parecia estar ficando mais fraco, como se se extinguisse junto com suas forças. De repente, sua visão, que deveria estar piorando com o cansaço, se fez capaz de ver com maior clareza e uma forma começou a se desenhar naquele pedaço do céu para onde ela olhava, próxima ao horizonte. Seus olhos estavam cansados demais para crer no que via e a menina teve que limpá-los na sua roupa e olhar novamente na direção do objeto. Sentiu uma terrível ardência ao esfregá-los, pois já estavam demasiados vermelhos, como se estivessem em carne viva. Ajustou um pouco mais a luneta para regular o foco e ver com o máximo de clareza possível diante de tamanha exaustão e dor. Não havia mais dúvidas, estava lá. A menina estava tão cansada e tão emocionada com o que vira que acabou não aguentando. Aos poucos, foi vendo tudo ficar ainda mais escuro e embaraçado diante de deus olhos, até que, por fim, desmaiou.
Autor(a): rodrigofaro
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