Percebendo que enveredava por uma linha de pensamento perigoso, Anahi esforçou-se para recobrar a calma, para manter os pensamentos e a respiração sob controle e, então, soltou-se do abraço devagar.
– Obrigada – disse, enrugando o nariz num acesso de constrangimento. – Peço desculpas por ter me desmanchado em lágrimas. Sei que fuzileiros são treinados para lidar com emergências. Alfonso estreitou os olhos, como se soubesse que ela mencionou seu trabalho para colocar uma barreira entre ambos. Não a censurou por isso, no entanto. Talvez ele gostasse da barreira... Anahi enxugou os olhos e esfregou o rosto úmido.
– Imagino que não tenha uma escova de cabelo, ou algo que eu possa usar para lavar o rosto, não é? Ou, bem, uma cabeleireira e uma manicure escondidas numa dessas suas mochilas.
– Ali – disse ele apontando para o catre à esquerda. Duas mochilas o encimavam, de tamanhos diferentes. – Roupas, artigos básicos de toalete. Logo adiante há um banheiro improvisado. Não há como tomar banho, mas pode se trocar. Anahi acompanhou-lhe os gestos e, tornando a olhá-lo, umedeceu os lábios. Ficar nua, com apenas uma simples divisória de lona entre ambos? Seu corpo tremeu diante da ideia e ansiou por lhe implorar que ficasse nu com ela. Mas isso não aconteceria, avisou a seu corpo. Alfonso estava além do seu alcance. Era totalmente errado para ela, e não era tola a ponto de cometer o mesmo erro duas vezes.
– Obrigada. – Pegando a primeira mochila, examinou o conteúdo e ficou surpresa em não encontrar apenas uma escova de cabelos e uma de dentes, mas presilhas para o cabelo, leggings de lã grossa, roupa de baixo térmica e um suéter. Quis lhe perguntar como pensara em tudo, mas ocorreu-lhe que, quanto menos dissesse para chamar atenção para o fato de que estava prestes a ficar nua, melhor.
– Vou preparar o jantar enquanto você se troca. Anahi estreitou os olhos. Ele não parecia estar dando a mínima importância ao fato de que ela se despiria. Não parecia excitado, interessado. Nada. Ótimo. Não era como se ansiasse para que ele quisesse vê-la nua. Havia encerrado aquela parte entre ambos e em definitivo. E fora por uma boa razão. Quando se deu conta de que estava precisando se conter para não dizer “E daí?” e mostrar a língua, suspirou. Era evidente que a tribulação a estava afetando demais. Pode ter sido pela irritação, ou mais provavelmente pelo nervosismo e o receio de ceder ao anseio de seu corpo e chamá-lo, mas o fato foi que trocou de roupa em tempo recorde. Teria preferido nem sequer tocar as roupas amarfanhadas de cinco dias de uso uma vez que as tirou, mas não era como se a tenda dispusesse de serviço de camareira. Assim, enrolou-as e, notando alguns sacos plásticos amarrados a uma corda, atirou as roupas dentro de um deles. Pronto. Lixo. Ela usou a água do cantil para escovar os dentes e lavar o rosto e, em seguida, permitiu-se o luxo de passar a escova longamente por entre os cachos embaraçados.
Tão logo os prendeu numa trança e se sentiu limpa, arrumada e aquecida novamente, afastou a cortina e voltou a se reunir a Alfonso. Por que, afinal, tinha de se ater a certos princípios? Ele parecia tão sexy e irresistível em sua calça camuflada para a neve, com a barra enfiada para dentro das botas militares e uma camiseta branca de manga longa. Tentou não esquecer que a corrente de prata que ele usava com uma placa de identificação fazia parte de quem era. Tornava-o um soldado. Alguém fora dos limites dela, quis gritar para si mesma. Mas seu corpo não se importava. Tudo o que conseguia fazer era reagir com a inevitável e poderosa atração.
– Está com fome? – Ele lhe lançou um olhar amistoso, mas distante por cima do ombro. Ficou evidente que não estava tendo problema algum em esquecer os dois dias de sexo incrível e constante que haviam partilhado meses antes. Ou isso, ou não os achara incríveis o bastante para que agora a visse como alguém além de uma refém que fora incumbido de manter a salvo. E seu beijo... Anahi se obrigou a não suspirar e derreter ao recordar as sensações despertadas pelos lábios sensuais dele nos seus depois de tanto beijo. Sim, seu beijo fora apenas uma maneira de tranquilizá-la em meio a toda a tensão. De impedir que ficasse histérica. Ou talvez apenas para dar sorte, como ela mesma apontara, embora ele tivesse dito que sentira sua falta. Antes que pudesse refletir mais a respeito, seu estômago – a única parte de sua anatomia que não ansiava pelo toque mágico de Alfonso – se manifestou. – Sim, está com fome – disse ele com um sorriso largo, colocando na mesa dois pratos de comida que fumegavam de maneira tentadora. Anahi colocou a mochila de volta no catre onde a pegara e sentou-se numa das cadeiras.
– Ração militar? – adivinhou com uma careta.
– Meu pai costumava insistir para que jantássemos isso uma vez por mês. Era para que déssemos valor ao que os soldados têm de enfrentar para proteger nossas vidas.
– E deram?
– Assim obrigados, não – lembrou Anahi, enrugando o nariz. – Mas isso ajudou a selar a minha decisão de jamais entrar para a vida militar. O sorriso amplo de Alfonso aqueceu-a mais do que todos os aquecedores portáteis na tenda juntos teriam sido capazes. Essa sensação – além da fome – acompanhou as primeiras colheradas. Então, deu-se conta subitamente do gosto em sua boca. Vasculhou a caixa aberta de comida que ele colocara na mesa entre ambos até encontrar o sal. Precisou de dois sachês para conseguir terminar a refeição. Lançou um olhar a Alfonso, que saboreava sua comida como se estivesse coberta por uma camada de chocolate.
– Você não gosta realmente desta... – Ela hesitou em chamar aquilo de comida – Coisa, não é? Ele deu de ombros, continuando a ingerir o cozido pardacento.
– Não é assim tão ruim. Cresci com fome durante a maior parte do tempo. Assim, tenho a tendência de me concentrar mais em encher a barriga do que no sabor. Anahi quis perguntar por que ele passara fome. A respeito de sua criação. Se a maneira como fora criado influenciara em sua decisão de seguir a carreira militar. Se ingressara para assegurar três refeições diárias, ou algo semelhante. Enrugou o nariz ao olhar mais uma vez para a ração de soldado em seu prato. Ele tinha irmãos? Uma família? Ainda passariam dificuldades, ou as coisas haviam engrenado? Milhares de perguntas povoaram sua mente, mas não pôde fazer nenhuma. Parecia um assunto pessoal demais, sobre o qual não tinha o direito de especular. Ficara contente com o direito de percorrer o corpo musculoso dele com lábios e mãos ávidos e até em dançar nua à sua frente, mas fazer perguntas pessoais? Havia sido um completo tabu e continuava sendo. O que era absurdo. E também o era o fato de que, enquanto afirmara que quisera manter a comunicação com Alfonso no passado, nunca se perguntara a respeito de nenhuma dessas coisas. Havia se concentrado apenas nas partes da vida dela que achara que a afetavam de algum modo. Enfim, quando descobrira até que ponto a afetavam, não quisera mais conversa. Mexeu com a colher no cozido de aspecto esponjoso, tentando reprimir a vontade de chorar. Outra vez. Deus do Céu, estava com os nervos em frangalhos.
– Se terminar toda a sua comida, tenho chocolate para a sobremesa – anunciou Alfonso num tom quase cantarolado. Ela o encarou de imediato.
– Chocolate?
– Sim. Barras de chocolate, chocolate em pó, calda de chocolate.
– Está brincando? – disse Anahi reverente.
– Falo sério. Ela olhou ao redor da tenda, perguntando-se onde ele o escondera. Não vira chocolate algum na caixa de opções insossas de jantar. Então, motivada como nunca, comeu o restante da ração cozida o mais depressa possível para não ter que lhe sentir o gosto.
– Pronto. – Três minutos depois, estendeu o prato limpo. – Hora de chocolate.
– Já terminou? – Com um ar surpreso nos olhos verdes, Alfonso soltou uma gargalhada. Mas pegou o prato vazio, colocou-o num saco e apanhou uma caixa debaixo de um dos catres.
– É todo seu. Anahi notou que as mãos tremiam – algo que se repetira demais ao longo daquela semana. Mas dessa vez era entusiasmo que a dominava enquanto abria a caixa.
– Hum – gemeu deliciada quando viu o conteúdo. Ali havia pelo menos duas dúzias de barras de chocolate, três embalagens de uma calda conhecida e um grande pote com duas divisões, uma repleta de pó marrom e outra de branco. Leite e chocolate em pó, basta acrescentar água? Já apanhara uma barra de chocolate quanto se deu conta de que ali havia guloseimas destinadas a durar. Um longo tempo. Mordeu o lábio inferior.
– Devo racionar isto? – perguntou num tom sério. Alfonso fez uma pausa no ato de guardar o próprio prato já vazio e fitou-a nos olhos. Lançou, então, um olhar ao rádio e foi verificar os monitores das câmeras antes de se virar para tornar a estudá-la.
– Apenas de maneira a não acabar tendo uma indigestão. Ela continuou hesitando.– Vamos esperar até recebermos uma mensagem avisando que o complexo está seguro e que a equipe neutralizou todos lá dentro – disse Alfonso numa voz tão casual que ela levou um minuto para perceber que a informava sobre o objetivo da missão. – Assim que avisarem que está tudo bem, alguém entrará em contato conosco para dar as coordenadas do local onde seremos retirados. O tempo que isso vai levar dependerá apenas do tipo de resistência que a equipe está encontrando no acampamento do bando.
– Aquele sujeito era maluco – disse Anahi, fechando a tampa da caixa depois de pegar uma única barra de chocolate dali. – Ele falou em começar uma guerra, sobre a lealdade de suas tropas. Havia gente demais no bando para que eu conseguisse contar todos.
– Números não importam. O que conta é a estratégia. E os fuzileiros são os melhores em termos de estratégia.
– Já ouvi dizer – disse ela com um sorriso. – Este é o seu trabalho habitual? Dar apoio moral a reféns? Alfonso curvou os lábios. Atravessou, então, a tenda parando diante dela.
– O que está fazendo?