– TEM CERTEZA de que não quer uma fatia de bolo de chocolate? Ou talvez sorvete? Posso sair e ir comprar morangos frescos para acompanhar? Anahí precisou reunir todas as suas forças para desviar o olhar do jardim dos pais para além da janela. Durante todo o tempo em que estivera fazendo a sua terapia de ex-refém , como o irmão a designara quando ele conseguira parar de chorar, ela sonhara com a própria cama. Ainda assim, três dias depois que entrara naquele gigantesco jipe militar e saíra do inferno congelado, não tivera essa chance. No início, foi mais fácil ficar ali. Os contatos e a influência do pai haviam assegurado que as reuniões com a equipe de investigação do caso, para os seus relatos de vítima sobre o que acontecera, e também as consultas com o psicólogo da Marinha fossem conduzidas através de visitas a domicílio. A atitude seca do almirante levara Christopher, tomado de culpa por ela ter sido sequestrada devido a pesquisas que ele iniciara, a reduzir suas visitas exaustivas ao mínimo. E a recém-descoberta veia maternal da mãe – e de sua chef – significava que Anahí estava sendo paparicada como jamais havia sido em sua vida antes. Margaret até chamara a equipe de beleza de seu salão habitual e uma massagista naquela manhã para que a filha tivesse um necessário atendimento especial.
– Não é necessário. Estou bem assim, obrigada – disse à mãe com ar preocupado. Nunca percebera que ela tinha todo aquele instinto maternal, mas, ao longo dos dias anteriores, era algo que viera à tona com toda a força.– Ainda estou satisfeita com o que comi no almoço.
– O almoço foi há quatro horas. Você não está se alimentando direito.
– Só fiquei fora por cinco dias, mãe. Não foi tempo o bastante para perder peso e precisar me alimentar constantemente. Anahí usou de um tom de gracejo para tranquilizar a mãe. Deu um tapinha na cintura do jeans para mostrar que não ficara folgada. O sorriso que abriu dissipou-se quando viu que a mãe contraiu o rosto e soube que não foi por ficar horrorizada com a sua perfeita forma física.
– Por favor – suplicou ela, levantando-se do sofá diante da janela para ir abraçar a mãe pelos ombros.– Não chore, está bem? A cada vez que você chora, acabo chorando também.Sabe que não consigo me conter.E, desse jeito,vamos acabar sem uma gota de líquido no corpo.
– Tive muito medo – admitiu Margaret.– Jamais tive tanto medo na vida.Segurou a mão dela com força por um momento antes de dar um passo atrás e se recompor, enxugando delicadamente os olhos. Anahí afundou de volta no sofá e a olhou com espanto.
– Você teve medo?– Mas a mãe parecera tão calma quando a recebera em casa na volta do Alasca. Era verdade que passara a agir de modo um tanto estranho com todos os cuidados e atenções. Mas ela não se dera conta de que fora por medo. – O que você acha? – replicou Margaret. – A minha filha, sequestrada por um lunático. Levada à força para o meio do gelo, sabe-se lá onde. Não sabíamos quem havia raptado você nem o motivo. E quando ficamos sabendo, foi ainda pior. Ela fez uma pausa para respirar fundo e, então, prosseguiu: – Fiquei aterrorizada. Seu pai também ficou, embora tentasse não demonstrar. Ligou para cada contato que tinha. Recorreu a todos os recursos possíveis e imagináveis. Escolheu a equipe de fuzileiros a dedo, exigiu o melhor para resgatar você. Mesmo assim, não tínhamos ideia de que... Com as palavras morrendo-lhe na garganta, fungou, mas ergueu a mão para dizer que estava recobrando o controle. Assim, permaneceu sentada. Na verdade, estava surpresa demais em saber que o pai se preocupara a ponto de sequer conseguir se levantar.– Michael e eu ficamos à espera aqui, é claro. Mas seu pai se recusou a ficar. Insistiu em ir ao Alasca para ir buscar você. Até esbravejou com Daniel Lane.
– Ele esbravejou com o contra-almirante? Com a mente rodopiando e sem saber como lidar com aquilo, Anahí deu um tapinha distraidamente na almofada a seu lado.
Para sua perplexidade, a mãe viu aquilo como um convite e sentou-se a seu lado. – Como falei – prosseguiu Margaret, dando-lhe uma pancadinha no joelho –, jamais tive tanto medo na vida.
– Mas já deve ter tido. Quero dizer, o meu pai serviu a vida inteira, dedicando-se à carreira militar.Lutou em duas guerras. Isso deve ter deixado você com medo, sem dúvida. Ora, só em pensar em Alfonso voltando àquele maldito complexo para concluir a missão já ficara com palpitações...
– Mas esse era o trabalho dele. – Margaret sacudiu a mão adornada de joias no ar, como se achasse o comentário tolo. Anahí esperou até sentir-se diminuída, estúpida, como acontecera tantas vezes no passado quando sua curiosidade costumara ser ignorada. Mas a mãe não estava encerrando o diálogo. Apenas respondendo.
– É assim tão fácil? Pelo fato de ser o trabalho dele, você não sentia medo?
– Querida, ele foi treinado para lutar. Treinado em estratégia. Sabia usar armas e todos aqueles equipamentos de ar assustador e tinha um pelotão inteiro de homens, igualmente treinados e dedicados, lutando do seu lado. Como falei, era o trabalho dele. E sempre foi muito bom no que fazia.
– Mas o trabalho o colocava em perigo constante. Inimigos atiravam nele, tentavam matá-lo. Isso não preocupava você?
– Você assistiu ao noticiário ontem? Sacudindo a cabeça numa negativa, Anahí franziu a testa. O que aquilo tinha a ver com o restante.
– Não lembro em que cidade foi. Peguei apenas o final do noticiário. Mas era a hora do tráfego e alguém ficou furioso. Ele parou o carro no meio do congestionamento, empunhou uma arma e começou a atirar. Matou três pessoas antes de ser detido. Anahí conteve a respiração, horrorizada.
– Pobres dessas pessoas.
– Exatamente. Estavam apenas tentando chegar em casa normalmente, levando suas vidas seguras diárias. E alguém tentou matá-las. – Um misto de raiva, desgosto e compaixão contraiu o rosto de Margaret. – Ao menos um soldado é treinado e preparado. Ninguém sabe quando sua hora chegará, querida. Pode ser numa missão, ou no mercado da esquina. Assim, ficar sentado torcendo as mãos e se preocupando é um desperdício de tempo e energia, não acha? Anahí meneou a cabeça, e o terror que se espalhara por seu íntimo quando se dera conta de que estava apaixonada por Alfonso começou a se dissipar. Mas, ao lado desse, havia um medo bem maior. Respirando fundo, perguntou: – Mas e quanto ao restante? O fato de que ele dedicou a maior parte da vida ao serviço militar. De que esconde milhares de segredos de você. Como isso não a incomoda? A mãe pareceu atônita por um instante, como se nunca tivesse ponderado essas perguntas. Então, deu de ombros.
– Bem, isso também sempre fez parte do trabalho dele, certo? Eu estava ciente quando me casei com ele. Assim sendo, por que essas coisas me incomodariam? Quanto aos segredos...
Margaret lançou um olhar à porta e, então, riu e ergueu ambas as mãos, como se dissesse “Ora” ?
– Querida, tenho uma porção dos meus próprios segredos. Segredos que seu pai nunca descobrirá. Anahí arregalou os olhos chocada.
– Está brincando!
– Meus segredos podem não estar de acordo com as linhas da inteligência militar, mas são interessantes o bastante. Como a verdadeira cor do meu cabelo, por exemplo. Ou o meu peso de verdade e a coleção de cintas e modeladores Spanx. Seu pai pensa que como metade de uma toranja a cada manhã, mas nem imagina que saboreio vários bombons depois que ele sai.– Margaret levou o indicador aos lábios, enquanto pensava no que mais estava escondendo do marido.– Há dois cartões de crédito que seu pai não sabe que tenho. Para as minhas compras de artigos femininos supérfluos, é claro. Ele não faz ideia de que adoro programas de auditório na TV durante o dia, ou que, quando sai, como doces na cama.
– E você esconde tudo isso dele?– Anahí estava aturdida, não tanto pelo fato de a mãe ter segredos, mas por ter tantas coisas divertidas a esconder.
– É claro. Tudo isso faz parte dos meus esforços para me manter feliz enquanto apresento a imagem de dama de classe que é tão importante para apoiar a carreira do seu pai. E não se esqueça, essas informações são confidenciais, minha filha, e as contei apenas a você. Anahí riu a valer, até que as lágrimas escorreram por seu rosto. A mãe, observando-a com um sorriso alegre, afastou-lhe uma mecha de cabelo para detrás da orelha, afagando-lhe a face com a ponta dos dedos quando o fez. Sorrindo, Anahí teve certeza de que esses foram os momentos de maior proximidade e mais felizes que já tivera com a mãe.
– Por que nunca me contou nada disso antes?
– Você nunca quis ouvir antes, querida. Sempre esteve ocupada demais se rebelando e fazendo as coisas a seu próprio jeito.– Margaret deu-lhe um tapinha no joelho e levantou.– E você tem o hábito de se ater à raiva.Muito tempo depois que uma batalha termina, você ainda fica nas trincheiras, pronta para disparar novamente. O que torna a comunicação difícil. Bem, ali estava. Anahí deixou os ombros caírem diante do peso da verdade. Seus pais não eram perfeitos. Nem tampouco estava tão abalada com a tribulação do sequestro a ponto de achar que eram ótimos. Eram voltados para os próprios interesses, teimosos, preconceituosos e ambiciosos. Mas ela se deu conta de que também era assim.
– Mãe, está tudo bem se eu ficar aqui mais esta noite?
– Vou adorar se você ficar – exclamou Margaret, mas, então, seu sorriso diminuiu um pouco.– Mas teremos companhia para o jantar.Fique à vontade para se reunir a nós, ou, se ainda estiver se sentindo melancólica, faça a refeição no seu quarto.
– Vou me reunir a vocês – decidiu Anahí surpreendendo a ambas. Bem, talvez uma refeição em que ela não estivesse se atendo à raiva fosse interessante.
– Vou avisar a cozinheira – exclamou Margaret com os olhos novamente alegres.
Saiu com um breve aceno. Anahí ouviu-a no corredor e, então, a voz mais grossa do pai. Ele voltara para casa depois do dia na base naval. Exceto pela insistência dele em estar ali durante as conversas com a equipe de investigação do caso – o que ela achara que era para ter certeza de que a filha não o constrangeria, mas agora se perguntara se fora para dar apoio –, ela quase não o vira desde o retorno da Encosta Norte do Alasca. Nem disso se lembrava muito bem. Depois de dez minutos de um silêncio angustiante no jipe, tentando não chorar, ela adormecera e só acordara num porta-aviões que estivera prestes a seguir viagem rumo à base naval de Coronado. Deveria ir conversar com o pai? Tentar descobrir se havia uma ponte entre ambos como a que acabara de descobrir com a mãe? Perguntar se tinha notícias de Alfonso e se a equipe de fuzileiros navais já voltara ou não da missão? Verificar se não havia falado durante o sono no catre do porta-aviões na viagem para casa? Deveria. Se queria um diálogo aberto e comunicação entre ambos, caberia a ela dar o primeiro passo. E talvez a mãe tivesse razão. Talvez ela costumasse se ater mesmo à raiva, criando barreiras desnecessárias. Por outro lado, e se tudo que o pai quisesse fosse lhe passar mais um sermão? Ou criticá-la pelas escolhas na carreira? Ou qualquer outra das várias coisas negativas da lista? As coisas sempre tinham sido tensas entre ambos. O pai sempre fora o intolerante e ela, a pobre filha injustiçada e incompreendida. Era rígido e ela, forte. Era o errado, e ela, a certa. Tudo sempre nesses moldes. Agora, Anahí não sabia mais. Não tinha mais certeza.
– Quem quer roscas de canela? Salva de ter que convencer a si mesma a tentar uma aproximação com o pai, Anahí olhou com um ar agradecido na direção da porta onde o irmão segurava um saco de aroma delicioso de uma confeitaria.
– Michael – cumprimentou-o, levantando-se para lhe dar um abraço apertado.– Está aqui outra vez?Pensei que tivesse um show esta noite.
– Nada disso. Tirei uma folga. Afinal, não é todo ano que a minha irmã quase me mata de susto.
– Esse parece ser o tema de hoje. – Ela pegou o saco de roscas mesmo sem estar com fome. Desse jeito, acabaria engordando cinco quilos antes de sequer ter tido a chance de voltar para casa.
– Você está bem? – perguntou o irmão, puxando uma cadeira para perto e sentando-se.– O que andou amedrontando você? Lembranças recentes? Pesadelos? Finais bruscos? Anahí curvou os lábios. Pegou um pedacinho de uma rosca, mas não o comeu.
– Nossa mãe disse que ficou com medo por minha causa. Quando me levaram, ela falou que vocês todos ficaram com medo. Quero dizer, eu sei que você ficaria. Mas nem sequer me ocorreu que nossos pais ficariam.
– Ela ficou bastante assustada – confirmou Michael.– E, sim, tenho que dizer que o nosso pai ficou também. Ele teve um acesso de fúria, atirou algumas coisas longe e me ordenou que ficasse aqui e tomasse conta da nossa mãe enquanto ele lidasse com a confusão toda. Anahí curvou os lábios.
– Confusão?
– Sim. Mas, pela primeira vez, não se referiu a você – garantiu Michael, provocando-a com uma piscadela.
– Estava falando sobre o Instituto de Ciência.O dr. Certinho estava agindo como um cretino em relação ao sequestro, querendo livrar a própria pele antes de levar o caso às autoridades. Não queria que as notícias vazassem antes que tivesse conversado com os investidores. Livrando a própria pele, sem dúvida.
– Esse Christopher é mesmo uma figura – disse sardônica.Mas não estava surpresa. Ele mantivera contato com o terrorista durante quase um ano e nem sequer desconfiara que o sujeito era um assassino lunático. Se isso se tornasse de conhecimento público, sua imagem ficaria arranhada. E a imprensa marrom poderia ter criado um escândalo e feito o instituto perder sua verba. Ainda assim, o homem havia dito que eram perfeitos um para o outro. Talvez tivesse tido mais pressa para salvá-la se houvessem dormido juntos. Como se estivesse lendo seus pensamentos, Michael se inclinou para lhe apertar o ombro de leve num gesto solidário.
– Que bom que você não namorou com ele, não é? Quero dizer, que panaca. Ela emitiu um som em concordância, tornando a olhar pela janela. Havia achado que o único obstáculo em relação a Christopher fora o fato de não excitá-la de modo algum. Mas, ao que parecia, nem mesmo todas as habilidades de comunicação do mundo tornavam um homem um herói.
– Você vai ficar para o jantar? – perguntou.
– E você, vai?
– Claro. Nossa mãe me disse que teremos companhia. Mas você pode se sentar ao meu lado à mesa e me entreter. E distrair. Porque todas as reflexões de agora estavam realmente interferindo em sua resolução em aceitar que as coisas haviam terminado entre ela e Alfonso. Era evidente que, com ou sem resolução, não fazia diferença. Era ele que não queria mais nada com ela.