— Posso ajudá-la?
Eu me forcei a sorrir para a secretária do escritório principal, esperando não parecer tão desonesta quanto eu me sentia.
— Tenho uma receita que tomo diariamente na escola, e minha amiga...
Minha voz ficou presa na palavra, e me perguntei se depois de hoje eu chamaria Ane de minha amiga novamente.
—... minha amiga me informou que tenho que registrá-la com a enfermeira. Você sabe se isso está correto? — Eu não conseguia acreditar que estava parada aqui, pretendendo fazer algo ilegal. Ultimamente, eu estava exibindo muitos comportamentos não-característicos. Primeiro eu tinha seguido Christopher para uma arcada de má reputação tarde da noite. Agora eu estava a beira de bisbilhotar seu arquivo estudantil. Qual era o meu problema? Não, qual era o problema do Christopher, que quando se tratava dele, eu não conseguia parar de exercer maus julgamentos.
— Ah, sim, — a secretaria disse solenemente. — Todos os remédios precisam ser registrados. A enfermaria é aqui por trás, terceira porta à esquerda, do outro lado dos registros estudantis. — Ela gesticulou para o corredor atrás dela. — Se a enfermeira não estiver lá, você pode se sentar na cama portátil dentro do escritório dela. Ela deve voltar a qualquer minuto.
Fabriquei outro sorriso. Realmente não esperava que fosse tão fácil.
Dirigindo-me para o corredor, eu parei diversas vezes para checar sobre meu ombro. Ninguém veio atrás de mim.
O telefone no escritório principal estava tocando, mas soava como um mundo distante do corredor turvo onde eu estava. Eu estava totalmente sozinha, livre para fazer o que desejava.
Parei com tudo na terceira porta à esquerda. Inspirei e bati, mas estava óbvio pela janela escura que a sala estava vazia. Empurrei a porta. Ela se moveu com relutância, abrindo com um rangido para uma sala compacta com azulejo branco desgastado. Fiquei de pé na entrada por um momento, quase desejando que a enfermeira aparecesse para que eu não tivesse escolha a não ser registrar minhas pílulas de ferro e ir embora. Um rápido olhar para o outro lado do corredor revelou uma porta com uma janela escrita REGISTROS ESTUDANTIS. Ela também estava escura.
Eu foquei minha atenção em um pensamento importunador no fundo da minha mente. Christopher alegava que não tinha ido para escola no ano passado. Eu estava bem certa de que ele estava mentindo, mas se não estivesse, ele ao menos teria um registro estudantil? Ele teria um endereço residencial pelo menos, eu deduzi. E uma ficha médica, e as notas do último semestre. Ainda assim. Uma possível suspensão parecia um preço grande para pagar para espiar a ficha médica de Christopher.
Inclinei um ombro contra a parede e chequei meu relógio. Ane me dissera para esperar pelo seu sinal. Ela disse que seria óbvio.
Ótimo.
O telefone no escritório principal tocou novamente, e a secretária atendeu.
Mastigando meu lábio, roubei uma segunda espiada na porta rotulada REGISTROS ESTUDANTIS. Havia uma boa chance dela estar trancada. Arquivos estudantis provavelmente com considerados de alta segurança. Não importava que tipo de distração Ane criasse, se a porta estivesse trancada, eu não entraria.
Mudei a minha mochila para o ombro oposto. Outro minuto passou. Eu disse a mim mesma que talvez devesse ir embora...
Por outro lado, e se Ane estivesse certa? E se Christopher tivesse um passado criminal? Como sua parceira de biologia, contato regular com ele podia me colocar em perigo. Eu tinha uma responsabilidade de me proteger... não tinha?
Se a porta estivesse destrancada e os arquivos estivessem em ordem alfabética, eu não teria problema algum em localizar o arquivo de Christopher rapidamente. Acrescente outros poucos segundos para folhear seu arquivo por algum sinal de perigo, e eu provavelmente poderia entrar e sair da sala em menos e um minuto. O que era tão breve que poderia parecer que eu não tinha entrado de modo algum.
As coisas tinham ficado estranhamente silenciosas no escritório principal. De repente Ane circulou a esquina. Ela se esgueirou pela parede na minha direção, andando agachada, arrastando suas mãos pela parede, roubando olhares clandestinos por sobre o seu ombro. Era o tipo de andar que espiões elaboravam em filmes antigos.
— Tudo está sob controle, — ela sussurrou.
— O que aconteceu com a secretária?
— Ela teve que sair do escritório por um minuto.
— Teve que? Você não a incapacitou, foi?
— Não dessa vez.
Graças a Deus pelas pequenas misericórdias.
— Liguei do orelhão lá fora para dar alarme de bomba. — Ane disse. — A secretária ligou para a polícia, então correu para achar o diretor.
— Ane!
Ela bateu em seu pulso.
— A hora está passando. Não queremos estar aqui quando os tiras chegarem.
Claro que não.
Ane e eu medimos a porta para os registros estudantis.
— Mexa-se, — Ane disse, batendo-me com seu quadril.
Ela abaixou sua manga sobre seu pulso e o bateu na janela.
Nada aconteceu.
— Isso foi só pra praticar, — disse. Ela recuou para dar outro soco e eu agarrei seu braço.
— Pode estar destrancada, — eu virei a maçaneta e a porta se abriu.
— Isso não foi tão divertido, — disse Ane.
Uma questão de opinião.
— Entra você, — Ane instruiu. — Vou ficar de vigilância. Se tudo correr bem, nos encontraremos em uma hora. Encontre-me no restaurante mexicano na esquina da Drake com a Beech. — Ela andou agachada pelo corredor.
Eu fiquei sozinha de pé parcialmente dentro e parcialmente fora da sala estreita alinhada à parede com armários. Antes que a minha consciência me convencesse, entrei e fechei a porta atrás de mim, pressionando as minhas costas contra ela.
Com um fôlego profundo, escorreguei a minha mochila e me apressei, arrastando meu dedo pela frente dos armários. Eu achei a gaveta marcada CAR-CUV. Com um puxão, a gaveta se abriu com uma pancada. As etiquetas nos arquivos estavam escritas a mão, e me perguntei se Coldwater High era a última escola no país não computadorizada.
Meus olhos passaram pelo nome “Cipriano.”
Puxei o arquivo da gaveta entupida com violência. Eu o segurei em minhas mãos por um momento, tentando me convencer que não havia nada de muito errado com o que eu estava prestes a fazer. E daí que havia informações confidenciais dentro? Como parceira de biologia do Christopher, eu tinha o direito de saber dessas coisas.
Do lado de fora, vozes encheram o corredor.
Eu remexi no arquivo aberto e imediatamente recuei. Não fazia sentido algum.
As vozes avançaram.
Enfiei o arquivo ao acaso dentro da gaveta e dei um empurrão, fazendo-a agitar-se de volta no armário. Enquanto eu me virava, eu congelei. Do outro lado da janela, o diretor estava parado a meio caminho, seu olhar fechando-se sobre mim.
O que quer que ele estivera dizendo para o grupo, que consistia de todos os maiores membros do conselho da escola, dissipou-se.
— Me dêem licença por um instante, — eu o ouvi dizer. O grupo continuou acotovelando-se para frente. Ele não.
Ele abriu a porta.
— Essa área é fora dos limites para estudantes.
Eu coloquei uma cara indefesa.
— Eu sinto tanto. Estou tentando achar a enfermaria. A secretária disse que era a terceira porta a direita, mas acho que contei errado... — Eu joguei minhas mãos para cima. — Estou perdida.
Antes que ele pudesse responder, puxei com violência o zíper da minha mochila.
— Eu deveria registrá-las. Pílulas de ferro, — expliquei. — Sou anêmica.
Ele me estudou por um momento, sua testa enrugando. Eu achei que conseguia vê-lo pesando suas opções: ficar por aqui e lidar comigo, ou lidar com a ameaça de bomba. Ele sacudiu seu queixo porta afora.
— Preciso que você saia do prédio imediatamente.
Ele sustentou a porta aberta e eu me abaixei por debaixo do seu braço, meu sorriso sofrendo um colapso.
Uma hora mais tarde deslizei numa cabine de canto no restaurante mexicano na esquina do Drake com a Beech. Um cacto de cerâmica e um coiote empalhado estavam na parede acima de mim. Um homem usando um sombrero mais largo do que ele era alto passou vagueando. Dedilhando cordas em seu vidão, ele me fez uma serenata enquanto o hostess colocava cardápios na mesa. Franzi a testa para o símbolo no copo da frente. Borderline. Eu não tinha comido aqui antes, mas ainda assim algo no nome me soava vagamente familiar.
Ane surgiu atrás de mim e caiu no assento oposto. Nosso garçom seguia de perto.
— Quatro chimis, creme de leite extra, uma porção de nachos, e uma porção de feijões pretos, — Ane disse a ele sem consultar o cardápio.
— Um burrito vermelho, — eu disse.
— Contas separadas? — ele perguntou.
— Eu não vou pagar por ela, — Ane e eu dissemos ao mesmo tempo
Após o nosso garçom ir embora, eu disse:
— Quatro chimis. Estou ansiosa em ouvir a conexão com uma fruta.
— Nem começa. Estou morrendo de fome. Não comi desde o almoço. — Ela pausou. — Se não contar as jujubas, o que eu não conto.
Ane é voluptuosa, com complexo escandinávio, e de um jeito heterodoxo, incrivelmente sexy. Houvera dias onde a nossa amizade era a única coisa no caminho da minha inveja. Perto da Ane, a única coisa que eu tenho a meu favor são as minhas pernas. E talvez meu metabolismo. Mas definitivamente não o meu cabelo.
— É melhor que ele traga os nachos logo, — disse Ane. — Vou ter um treco se não consumir alguma comida salgada nos próximos quarenta e cinco segundos. E você sabe muito bem o que eu quero fazer com essa dieta.
— Eles fazem salsa com tomate, — eu apontei. — É vermelho. E abacates são frutas. Eu acho.
Seu rosto se iluminou.
— E vamos pedir daiquiris de morango sem álcool.
Ane estava certa. Essa dieta era fácil.
— Já volto, — ela disse, deslizando para fora da cabine. — Aquele período do mês. Depois disso, eu quero o furo.
Enquanto esperava por ela, me encontrei concentrada no assistente de garçom há algumas mesas. Ele estava trabalhando arduamente esfregando um pano sobre o topo de uma mesa. Havia algo estranhamente familiar no jeito com que ele se movia, no jeito que sua camisa caia sobre o arco de suas costas bem definidas. Quase como se ele suspeitasse que estava sendo observado, ele se endireitou e se virou, seus olhos fixos nos meus no exato momento em que descobri o que era tão familiar nesse assistente de garçom em particular.
Christopher.
Eu não conseguia acreditar nisso. Pensei em dar um tapa na minha testa quando me lembrei que ele tinha me contado que trabalhava na Borderline.
Enxugando suas mãos em seu avental, ele andou até minha mesa, aparentemente gostando do meu desconforto enquanto eu procurava ao redor por alguma maneira de escapar, descobrindo que eu não tinha lugar algum para ir a não ser para mais dentro da cabine.
— Ora, ora, — ele disse. — Cinco dias por semana não é o bastante de mim? Tinha que me ceder uma noite também?
— Eu peço desculpas pela infeliz coincidência.
Ele deslizou no assento da Ane. Quando ele abaixou seus braços, eles eram tão longos que cruzavam na minha metade da mesa. Ele alcançou o meu copo, girando-o em suas mãos.
— Todos os assentos aqui estão tomados, — eu disse. Quando ele não respondeu, peguei meu copo de volta e tomei um gole d’água, engolindo acidentalmente um cubo de gelo. Queimou o caminho todo. — Você não deveria estar trabalhando, ao invés de fraternizando com os clientes? — eu engasguei.
Ele sorriu.
— O que você vai fazer domingo a noite?
Eu bufei. Por acidente.
— Você está me chamando para sair?
— Você está ficando metida. Eu gosto disso, Anjo.
— Eu não ligo para o que você gosta. Não vou sair com você. Não em um encontro. Não sozinha. — Eu queria me chutar por ter sentido um tremor quente ao especular o que uma noite sozinha com Christopher poderia trazer. Era mais provável que ele nem quisesse ter dito isso. Era mais provável que ele estivesse me sondando por razões conhecidas só por ele próprio. — Espera aí, você acabou de me chamar de Anjo? — perguntei.
— E se eu chamei?
— Eu não gosto.
Ele sorriu.
— Continua sendo Anjo.
Ele se inclinou sobre a mesa, levantou sua mão para o meu rosto, e roçou seu dedão pelo canto da minha boca. Eu me afastei, tarde demais.
Ele esfregou gloss labial entre seu dedão e seu indicador.
— Você ficaria melhor sem isso.
Tentei lembrar do que estávamos falando, mas não tão arduamente quanto tentei parecer impassível ao seu toque. Joguei meu cabelo para trás sobre o meu ombro, pegando o fio da nossa conversa anterior.
— De qualquer jeito, não posso sair na véspera de dias de aula.
— Que pena. Tem uma festa na costa. Achei que pudéssemos ir. — Ele realmente soou sincero.
Eu não conseguia entendê-lo. Não mesmo. O tremor quente de antes ainda prolongava-se no meu sangue, e tomei um longo gole do meu canudo, tentando esfriar meus sentimentos com uma dose de água gelada. Tempo sozinha com Christopher seria intrigante, e perigoso. Eu não tinha certeza de como exatamente, mas eu estava confiando nos meus instintos nessa.
Fingi um bocejo.
— Bem, como eu disse, no dia seguinte tem aula. — Na esperança de convencer a mim mesma mais do que ele, acrescentei: — Se essa festa é algo na qual você está interessado, posso quase garantir que eu não estarei.
Pronto, eu pensei. Caso encerrado.
E então, sem nenhum aviso qualquer, eu disse: — Por que você está me chamando, de qualquer jeito?
Até esse momento, fiquei dizendo a mim mesma que não ligava para o que Christopher pensava de mim. Mas agora, eu sabia que era uma mentira. Mesmo que isso provavelmente voltasse para me assombrar, eu estava curiosa o bastante sobre Christopher para ir a quase qualquer lugar com ele.
— Eu quero ficar com você a sós, — Christopher disse. Bem dessa maneira, minhas defesas atacaram.
— Escuta, Christopher, não quero ser rude, mas...
— Claro que quer.
— Bom, você começou! — Adorável. Muito maduro. — Não posso ir na festa. Fim de papo.
— Por que você na véspera de um dia de aula ou por que tem medo de ficar sozinha comigo?
— Ambos. — A confissão simplesmente escorregou de mim.
— Você tem medo de todos os caras... ou só de mim?
Eu girei meus olhos, como se para dizer que não ia responder uma pergunta tão insana.
— Eu te deixo desconfortável? — Sua boca permaneceu uma linha neutra, mas eu detectei um sorriso de especulação preso atrás dela.
Sim, na verdade, ele tinha esse efeito em mim. Ele também tinha a tendência de apagar todos os pensamentos lógicos da minha mente.
— Me desculpe, — eu disse. — Sobre o que estávamos falando?
— Você.
— Eu?
— A sua vida pessoal.
Eu ri, incerta de que outra resposta dar.
— Se isso for sobre mim... e o sexo oposto... Ane já fez esse discurso. Não preciso ouvi-lo duas vezes.
— E o que a velha e sábia Ane disse?
Eu estava brincando com as minhas mãos, e as deslizei para fora de visão.
— Não consigo imaginar o por que de você estar tão interessado.
Ele balançou suavemente sua cabeça.
— Interessado? Estamos falando de você. Estou fascinado. — Ele sorriu, e foi um sorriso fantástico. O efeito foi uma pulsação avassaladora – a minha pulsação avassaladora.
— Acho que você deveria voltar ao trabalho, — eu disse.
— Se é que isso conta, eu gosto da ideia de que não haja um cara na escola que corresponda às suas expectativas.
— Eu esqueci que você é a autoridade das minhas supostas expectativas, — eu fiz troça.
Ele me estudou de um jeito que me fez parecer transparente.
— Você não é cautelosa, Dulce. Não é tímida, tampouco. Só precisa de uma razão muito boa para sair do seu caminho para conhecer alguém.
— Eu não quero mais falar de mim.
— Você acha que desvendou tudo.
— Não é verdade, — eu disse. — Por exemplo, bem, assim, eu não sei muito sobre... você.
— Você não está pronta para me conhecer.
Não havia nada de leve no jeito como ele disse isso. De fato, sua expressão era afiada como uma navalha.
— Eu olhei no seu arquivo estudantil.
Minhas palavras pairaram no ar por um instante antes que os olhos de Christopher se alinhassem com os meus.
— Estou bastante certo de que isso é ilegal, — ele disse calmamente.
— Seu arquivo estava vazio. Nada. Nem mesmo uma ficha médica.
Ele não fingiu parecer surpreso. Relaxou de volta em seu assento, os olhos brilhando obsidianamente.
— E você está me contando isso porque tem medo que eu cause um surto? Sarampo, ou caxumba?
— Estou te contando isso porque quero que você saiba que eu sei que algo sobre você não é certo. Você não enganou a todos. Vou descobrir o que você está aprontando. Vou te expor.
— Estou ansioso por isso.
Eu corei, captando a insinuação tarde demais. Por sobre a cabeça do Christopher, consegui ver a Ane tecendo seu caminho pelas mesas.
Eu disse:
— Ane está vindo. Você tem que ir.
Ele ficou no lugar, olhando-me, considerando.
— Por que está me olhando desse jeito? — eu desafiei.
Ele inclinou-se para frente, preparando-se para levantar.
— Porque você não é nem um pouco como eu esperava.
— Você também, — eu reagi. — É muito pior.
luaahuckermann_4326: hummm sera? kkkkkkkk