Levo um enorme susto quando entro pela porta da frente e vejo uma cama de hospital, no meio da sala. Meu coração leva um baque, fazendo um ruído surdo que só eu posso ouvir.
Quando vejo o meu pai sentado em sua velha poltrona verde favorita, com a perna engessada,apoiada em um travesseiro, me sinto um pouquinho aliviada, embora ainda confusa. O gesso não cobre a metade inferior da sua perna, como eu esperava. Ele vai até o quadril.Meu pai quebrou o fêmur. E ninguém me disse nada.Puta que pariu!
Solto as malas no chão e vou diretamente ao encontro dele, com as mãos nos quadris, armada de uma indignação totalmente justificável.
— Quer dizer que você não podia ter me ligado pra contar? Só foi me deixar descobrir dias
depois, e pela Rachel? Logo por ela, entre todas as pessoas?
Pela expressão em seus olhos castanhos, posso ver que ele está começando a assumir aquele
jeito característico de acalmar os ânimos. Fora esse desejo de evitar confrontos que acabou
levando minha mãe a ir embora, em busca de pastos mais verdes e fortes. E mais ricos. E mais bem-sucedidos. Basicamente, qualquer outro pasto diferente do seu próprio roçado. Aquela vaca!
Às vezes, isso é tudo que posso fazer para não odiá-la.
— Bem, punk — começa ele, usando o meu apelido carinhoso de infância, aquele que sempre me transforma numa pessoa dócil, fácil de manipular. — Você sabe que eu nunca esconderia algo de você, a menos que eu soubesse que seria para o seu bem. Já basta estar ocupada com este novo emprego e com o seu último ano de faculdade, além de morar com sua prima. Eu não queria te dar mais problemas. Tente ver as coisas do meu ponto de vista — conclui, de maneira suave.
É impossível ficar zangada quando ele faz isso. Entretanto, tenho que admitir que esse tipo de
atitude pode ser muito frustrante.Eu me ajoelho aos seus pés.
— Pai, você devia ter me avisado.
— Any, não há nada que você pudesse ter feito. Exceto ficar preocupada. E agora está faltando
ao trabalho. Por minha causa.
— Isso não é problema. Rachel falou sobre os cordeiros. Vou acomodá-los e logo estarei de
volta ao trabalho.
Ele fecha os olhos e reclina a cabeça para trás, rolando-a de um lado para o outro no apoio da
poltrona, irritado. Por alguns segundos, não diz nada, pondo um fim, de vez, nesta parte da
conversa.Esse é outro hábito frustrante do meu pai. Ele simplesmente para. Para de falar, para de discutir. Simplesmente... para.Percebo mais fios de cabelos brancos nas suas têmporas em comparação com a última vez
que o vi. E acho que os vincos que emolduram sua boca estão mais profundos. Hoje, ele parece ter bem mais do que os seus 46 anos. A vida difícil, carregada de desilusões, causou-lhe grandes danos. E agora as consequências estão visíveis.
— O que posso fazer para ajudar, pai? Você podia aproveitar que estou aqui e me pôr pra
trabalhar. Como vão os livros de contabilidade?
Mesmo sem olhar para mim, ele responde:
— Os livros estão ótimos. Jolene me ajuda com eles quando você não está.
Eu trinco os dentes. Jolene acha que é contadora. Só que não é. Nem em sonho. Posso apostar que há muita coisa para ser colocada em ordem. Sinto que um suspiro se aproxima, então mudo de assunto.
— E quanto à casa? Há algo que precise ser feito por aqui?
Finalmente, ele ergue a cabeça e olha para mim. Há um toque de humor na sua expressão.
— Sou um homem adulto, Any. Sei como me virar sem minha filha por perto para cuidar de
mim.
Reviro os olhos, impaciente.
— Eu sei, pai. Não é disso que estou falando e você sabe muito bem.
Então ele se inclina para a frente e segura uma mecha de cabelo, junto da minha orelha,puxando os fios, do mesmo modo como costumava puxar meu rabo de cavalo quando eu era pequena.
— Eu sei o que você quis dizer. Mas também sei que você acha que tem obrigação de cuidar
de mim, principalmente depois que sua mãe se foi. Mas você não tem que fazer isso, filha. Eu
ficaria arrasado se a visse sacrificar a própria vida para voltar para cá. Vá viver uma vida
melhor, em outro lugar. Isso é o que me faria feliz.
— Mas, pai, eu não...
— Eu a conheço, Anahí Puente Portilla. Eu a criei. Sei o que você está planejando e o que pensa. E estou pedindo que não faça isso. Somente me deixe viver assim. Existem coisas diferentes no mundo para você. Coisas melhores.
— Pai, eu adoro estas ovelhas e esta fazenda. Sabe disso.
— Não estou dizendo que não gosta. E tudo vai continuar do jeito que está para você visitar
quando quiser. E um dia, quando eu não estiver mais aqui, isto será tudo seu, para fazer o que
bem entender. Mas por enquanto, é meu. Meu problema, minha vida, minha preocupação. Não
sua. Você tem que se preocupar em se formar e arranjar um bom emprego para ter dez vezes
mais o que seu pai conseguiu. Depois disso, talvez eu considere a hipótese de deixá-la voltar para cá. Que tal?
Eu sei o que ele está fazendo, o que está insinuando. E entendo. Entendo a culpa. Mas quando aceno com a cabeça e sorrio concordando, é apenas pelo interesse dele. O que ele não sabe é que eu nunca o deixarei,como ela fez. Nunca. Nunca vou escolher uma vida confortável, de riqueza, em detrimento das pessoas que amo. Nunca.
— Agora, já que você está aqui, queria pedir um favor. Bem, dois, na verdade.
— Pode falar.
— Tenho todo os ingredientes para um feijão chuckwagon. Você pode preparar o jantar?
— É o seu feijão favorito. Claro.
— Boa menina.
Então ele sorri para mim por alguns segundos e volta a atenção para o programa que estava
assistindo na televisão.
— Pai?
— Sim? — pergunta, novamente me olhando, com as sobrancelhas arqueadas.
— Qual era o segundo favor?
Ele franze o cenho por um segundo, e logo seu rosto se ilumina.
— Ah! É mesmo. A Rachel e o Tad querem que você apareça por lá esta noite, para a sua
festa de despedida atrasada.
Começo a balançar a cabeça negativamente.
— Não vou deixá-lo sozinho para ir a uma...
— Vai sim. Vai ter jogo esta noite. Eu gostaria de assisti-lo em paz, enquanto você dá umas
boas risadas com seus amigos. É muito para um velho lesionado pedir à sua filha?
Solto uma bufada de raiva.
— Como se eu fosse dizer não depois de você falar dessa maneira.
Novamente, sei o que ele está fazendo. E por quê. Mas vou aceitar, apenas porque sei o quanto ele adora futebol americano e deve mesmo estar querendo assistir ao jogo sozinho, e não comigo por perto. Eu ficaria preocupada, conferindo sua pressão sanguínea a todo momento, enquanto estaria tenso e gritando diante da televisão.Seu sorriso é satisfeito, quando ele volta a se concentrar na TV, pela segunda vez. Então o
deixo sozinho e vou preparar o jantar.