Anahí
É a coisa mais grotesca e surreal estar diante do homem que eu conhecia como Alfonso e, de repente, ver Miguel aparecer. O cabelo despenteado ainda tem tudo a ver com Alfonso. A roupa informal ainda tem tudo a ver com Alfonso.Alguns dos gestos presunçosos têm tudo a ver com
Alfonso. Mas o discurso e a súbita transformação para o estilo futuro advogado,inteligente e bemsucedidopertencem ao Miguel . E isso é desconcertante.Mas não tão desconcertante quanto a sua confissão involuntária.Falo baixinho, tentando permanecer calma:
— Então o que você está dizendo é que ia me envolver numa encrenca que poderia até me levar a ser assassinada, sem ao menos me contar nada? Sem sequer me alertar para que eu tomasse cuidado?
Eu me levanto. Não posso me conter. A raiva está pulsando pelo meu corpo como o jato de uma mangueira de incêndio, e não consigo ficar sentada. Se ficar, sou capaz de explodir.
— Sem nem me dar uma opção?
Pelo menos Alfonso tem a decência de parecer constrangido. Envergonhado.Arrependido.
— Eu sei que é isso o que parece, mas posso garantir que eu jamais a colocaria em perigo. Só queria que você verificasse os cálculos, desse uma olhada no código tributário. Desse o seu parecer. Eu ia dizer que eles eram para outro negócio que eu estava pensando em abrir. Eu sabia
que poderia contar com você para manter segredo se eu estivesse certo e existissem sérias violações. Se eu os levasse a um contador público, ele poderia se sentir compelido a tentar descobrir o nome da empresa e denunciá-la. Algo louco assim.
Embora isto faça tudo parecer bem menos terrível, ainda estou enfrentando dificuldade para superar a minha raiva. No fundo, entretanto, sei que é mais por causa da mentira do que por qualquer outra coisa. Estranhamente, todo o resto parece algo com o qual posso lidar, ainda que com um pouco de licor, um sedativo e algum tempo para pensar. Mesmo assim, eu poderia administrar.
Mas essa coisa de mentira... Eu sempre odiei homem mentiroso. Detesto ser enganada, mais do que qualquer coisa. Para mim, esse sempre foi o único pecado realmente imperdoável.Será que Alfonso pode ser a primeira exceção? Ou isto abalou para sempre o que há entre nós?
— Anahí, por favor, entenda que eu nunca, nunca...
Levanto a mão para impedir que ele prossiga.
— Pare. Por favor, não diga mais nada. Acho que já ouvi o bastante por um dia. Talvez pelo resto da minha vida. Só vou saber quando tiver tempo para pensar.
Ele parece derrotado. Não realmente preocupado, como se sentisse medo de eu contar a alguém, mas somente derrotado. Como se tivesse jogado os dados e perdido tudo. Sufoco a ponta de culpa que sinto por desprezar seu esforço em contar a verdade. Não posso me permitir sentir qualquer gesto de ternura em relação a ele neste momento. Tenho de ser prática e racional. Fria.
Sem emoções.Finjo procurar algo na bolsa. Não consigo encará-lo. Vou desmoronar. Sei que vou.
— Obrigada por consertar o meu carro e trazê-lo até aqui. Eu vou pagar o conserto. — Então começo a caminhar em direção à porta. Correr só me fará parecer uma covarde, embora seja isto o que eu realmente gostaria de fazer:correr. Bem rápido e para bem longe.Alfonso permanece em silêncio. Eu caminho de cabeça baixa até chegar diante da porta e ele ficar à minha esquerda. Então paro, achando que deveria dizer mais alguma coisa, mas não
tenho a menor ideia do que falar.Abro a porta e saio. Não olho para trás, mas posso sentir os olhos de Alfonso me seguindo até eu desaparecer na esquina.Nunca fui do tipo de faltar muitas aulas. Uma aula aqui outra ali, talvez, mas nada muito considerável. Até agora.amanhã de terça-feira não traz a paz que pensei que traria. Na realidade, entre dormir muito
pouco — novamente — e a magnitude dos meus pensamentos turbulentos, sinto-me quase doente fisicamente. Meu estômago revira quando vejo as flores que Miguel me deixou.
— Alfonso — digo em voz alta, corrigindo-me pela milésima vez.
Como fiz a maior parte do dia de ontem e quase a noite inteira, revivo a humilhação que passei com Alfonso quando pensava que fosse Miguel . As coisas que eu disse, o modo como agi, tudo o que fizemos. Ou quase fizemos. A forma como me torturei tentando descobrir quem tinha entrado no meu quarto naquela noite.Eu fico balançada entre a raiva e a vergonha.
Como pôde fazer isso comigo? Como pôde fazer isso com todo mundo?
Vou até a cozinha fazer um café. Ao passar pelo telefone, vejo a tela acesa. Eu tinha colocado o aparelho no silencioso e o deixara ali ontem à noite, porque não queria me ver tentada a atendê-lo. O nome que aparece na tela é o de Alfonso.Será que algum dia ele usará o telefone de Miguel quando me ligar novamente?O rancor percorre minha mente. É tão denso que quase posso sentir seu gosto. Ignoro a chamada, exatamente como fiz com as outras que ele fez, e continuo meu caminho em direção à cozinha.Enquanto bebo o café na sala, tento pensar em outras coisas, mas todas levam de volta à questão mais importante na minha vida: Alfonso.Como ele se tornou um tema tão central? Em que momento fiquei tão profundamente envolvida? Como isso aconteceu sem o meu conhecimento?A resposta? Não foi sem o meu conhecimento. Eu sabia que iria me apaixonar por ele. Menti para mim mesma, tentei me enganar apenas o bastante para atenuar o baque no momento, mas eu sabia que as coisas terminariam deste jeito. É a história da minha vida.Outra onda de raiva. E de rancor.Em seguida, saudade. E solidão.Raiva novamente. De Alfonso, por me deixar ficar tão envolvida. Por me atrair para si, como uma aranha para sua teia.Sua teia de mentiras!Pelo menos não há lágrimas. Estou agradecida por isso. Lágrimas deixam a pessoa exaurida.A raiva é algo mais explosivo, como combustível de foguete. Talvez eu não chore porque estou com a faca e o queijo na mão. Porque sei que basta eu pegar o telefone, retornar uma das muitas
mensagens que ele deixou, para estar com ele novamente. Pelo menos por algum tempo.Em uma teia de mentiras diferente. Em um relacionamento sem futuro.
O que acham que Any vai fazer?
Continua....