— Isso não acabou — rosno entre os dentes. Miguel acena a cabeça uma vez, seu sorriso afetado ainda firme no rosto. Por uma fração de segundo, sinto um impulso de bater nele até
acabar com aquela presunção. Mas a vontade desaparece quase no mesmo instante em que surge.
— Encontraremos tempo depois. Não vejo a hora.
Posso perceber pelo seu olhar faminto que ele não vê a hora mesmo. Não sei com o que ele poderia estar zangado, mas realmente não me importo também. Preciso dele por uma razão e mais nada. Depois, ele pode voltar para onde quiser, e nunca mais terei de vê-lo novamente.
— Bem, se você acha que vou entrar nessa sem saber o que você tem, está completamente enganado. Isso vai ser do meu jeito. Ponto final.
O riso de Miguel é um breve rosnado.
— Não dou a mínima em salvar suas amigas. Nem sua namoradinha. Faz sete anos que espero para destruir as pessoas que mataram a mamãe e roubaram a minha vida. Posso esperar mais alguns dias. Tenho meus próprios planos.
— Não estou nem aí pro que você vai fazer, desde que não interfira na minha vida ou coloque em perigo alguém importante pra mim.
A expressão de Miguel se modifica.
— Não está nem aí, é? Você não se importa com o fato de alguém ter explodido a nossa mãe?Com o fato de alguém ter incriminado o nosso pai? Não se importa que ele tenha passado anos na prisão para nos proteger? Não está nem aí para o fato de alguém ter roubado as nossas vidas,transformando-as em lixo, e tê-las incendiado? — Miguel ri de modo sarcástico. — Ah, está certo.
Você não se importaria. Você foi o beneficiário de todo o sofrimento da nossa família, não foi,seu filho da puta?
— Do que você está falando? Como assim eu me beneficiei? Você quer dizer que me beneficiei fingindo ser meu irmão perfeito, vivendo sua vida perfeita e tendo que tolerar os canalhas com quem alguém como ele se associaria? Você quer dizer que eu me beneficiei passando anos sofrendo a perda de cada membro da minha família? Refere-se à visita ao meu único parente vivo, em uma sala cercada de policiais, com uma vidraça entre nós, duas vezes por mês durante sete anos, e trabalhando dia e noite para arranjar um meio de tirá-lo de lá? É isso o que você quer dizer?
Miguel dá um passo na minha direção. Vejo Caio dar um sobressalto, como se estivesse pronto para se colocar entre nós mais uma vez; aliás, o tempo todo ele se manteve por perto. Mas Miguel para.
— Isso parece muito melhor do que passar os últimos sete anos fugindo. Tendo que me esconder. Eu larguei tudo pra trás, quem eu era, o que eu queria, tudo o que tinha, para acatar os desejos do meu pai. Para mantê-lo seguro. Para manter você seguro. Eu vim furtivamente à cidade algumas vezes por ano e vi meu irmão vivendo a minha vida. Livre. Feliz. Vivo. Enquanto eu tinha que permanecer morto. Contrabandeando armas. Preso em um navio. Cada dia, durante meses. Eu trocaria de vida com você sem pestanejar.
— Pode ficar com a sua vida! Eu nunca a quis. Tudo o que fiz, fiz por ele. Não pense que você é o único que sofreu, Miguel .
Nós nos encaramos. Estamos diante de um impasse. Eu nunca admitiria, mas agora posso ver por que ele tinha ficado zangado. Ambos sofremos, ambos pagamos por erros que não cometemos. Mas talvez o fim esteja próximo. Talvez, finalmente, seja a hora de nos libertarmos do passado. Finalmente.
— Sei que vocês têm muito o que conversar, mas isso vai ter de esperar. Nós só temos algumas horas para montarmos um plano em conjunto. O que me dizem de deixarmos essa
história de lado e começarmos a trabalhar?
Eu olho para Caio. Sua expressão ainda tem o aspecto agradável de sempre. Às vezes, é difícil acreditar que ele é implacável. Mas é. Ele apenas esconde isso muito bem. Isso provavelmente o torna ainda mais perigoso.
— Tem razão. Não temos tempo pra isso. — Olho para o relógio na parede. — A boate vai fechar logo. Vou ter que trazer Anahí e colocá-la a par do que está acontecendo.
— Você acha mesmo que é a coisa certa a fazer? — pergunta Miguel bruscamente.
— Sim, pra falar a verdade, acho. Ela precisa saber. Ela tem o direito de saber. A vida dela está em perigo por minha causa. Por nossa causa. Ah, sem dúvida, acho que é a coisa certa.Quanto mais cooperativa ela for, melhor.
Miguel revira os olhos e balança a cabeça. Obviamente, ele discorda. Porém, mais uma vez, eu não estou nem aí. Ele não precisa concordar comigo; ele somente tem que me dar o que preciso para que eu possa manter Anahí segura. Definitivamente. Depois, não dou a mínima para o que ele vá fazer.