Anahí
O tom brincalhão de Alfonso torna mais fácil esquecer o que está para acontecer, mas a pancada forte na porta traz a realidade de volta.
— Quem é? — pergunto.
— Caio.
— Vamos direto daqui?
— Sim. Achei que seria mais seguro. No caso de alguém ter me seguido até aqui, não veria Caio nem saberia onde procurá-lo. Ele estacionou numa rua próxima. Dessa forma, eu sei que ninguém irá vê-la nem segui-la até a casa da sua mãe. Eles ainda estarão me vigiando.
— Ou seja, você vai estar sozinho. — O medo me faz estremecer.
— Só durante algum tempo. Miguel e eu temos um plano para amanhã.
— Pode me dizer qual é? Ou prefere que eu não saiba?
Ele me olha com uma expressão estranha. Não sei bem como interpretá-la. Minha mente e meu coração estão confusos.
— Não me incomodo que você saiba, se estiver interessada.
— Claro que estou interessada! Estou preocupada com você!
— Ei, só estou perguntando. Não estou querendo presumir nada.
Isso detona a minha raiva. Como ele poderia pensar que não estou interessada? Tudo bem, admito que algumas dúvidas reapareceram nos últimos dois dias, mas não acho que alguma vez
dei a impressão de que não me preocupo.
Ou dei?
A incerteza momentânea é como um alerta. Não posso deixar tudo isso acontecer com ele achando que não me preocupo. Não poderia viver com isso.
— Alfonso, estou muito interessada. E me preocupo muito com você. Sei que tenho alguns...problemas pra resolver, mas isso tem mais a ver comigo do que com você. Você é... é... — As palavras me faltam no instante em que minha garganta se fecha em um nó de agonia. Faço uma pausa para me recompor antes de prosseguir. — Você é importante pra mim. E sei que é um
cara legal. No fundo, eu sei disso. E confio em você. Muito. Só que às vezes é difícil descrever como me sinto. Mas, por favor, por favor, nunca pense que não me preocupo.
Ele sorri para mim, aproximando-se para roçar os lábios nos meus.
— Tudo bem, tudo bem. Acredito em você. E sei o que está dizendo. Sinto a mesma coisa. — Sua expressão torna-se séria. — Nem sempre é fácil pra mim dizer o que sinto, mas quero que
saiba que eu...
— Tudo bem aí com vocês? — grita Caio do hall, batendo na porta novamente e interrompendo Alfonso.
— Só um minuto — responde Alfonso com raiva. Quando se volta para mim, ele suspira. E não continua de onde parou. O momento se perdeu. Fico desolada. Eu daria qualquer coisa para ouvir como aquela frase terminaria.
— Podemos discutir tudo isso quando você voltar. Vou poder contar como o nosso plano se realizou sem dificuldade e como terminei o dia acabando com a arrogância do meu irmão. E você vai poder me contar como explicou à sua mãe sobre Caio e como ela caiu desmaiada.
Em seguida, ele sorri.
— Que merda!
— O que foi?
— O que é que eu vou dizer a ela?
Alfonso dá de ombros.
— Você vai ter que pensar em algo, porque Caio não vai sair de lá. E você não vai sair do campo de visão dele.
— Acho que posso dizer a ela que estou saindo com ele. — Quando mordo o lábio em sinal de concentração, vejo o músculo no maxilar de Alfonso se contrair. Eu franzo a testa. — O que foi?
— Nada.
— Não, nada não. O que foi?
— Você é criativa. Tenho certeza de que vai pensar em outra coisa pra dizer a ela.
— Que diferença isso faz?
— Se ela pensar que vocês estão juntos, vai esperar ver um pouco de carinho.
— Sim, e daí?
— Daí que eu odiaria ter que dar um pontapé na bunda do Caio. E depois na sua.
Posso ver que a última frase foi dita em um tom brincalhão. Não posso deixar de sorrir.
— Um pontapé? Pensei que você quisesse dar umas palmadas nela. — Normalmente não sou tão descarada, mas na atual conjuntura, sinto que as coisas devem ser ditas. Vejo o olhar de desejo irromper em seus olhos escuros e lascivos. Isso acende o calor na parte de baixo da minha barriga.
— Qualquer coisa que eu faça com ela, prometo beijá-la e fazê-la sentir-se melhor depois. Que tal?
Seus dedos estão deslizando lentamente pelos meus braços, de cima para baixo. É um toque inocente, porém mais do que suficiente para me fazer desejar que suas mãos estivessem na
minha pele nua, em outro lugar.
— Promessas, promessas — murmuro para desafiá-lo.
— Acho que vou ter que te mostrar quando você voltar. E se por acaso estiver usando calcinha, use uma que odeia. Será a última vez que irá vê-la inteira. Considere-se avisada.
Um arrepio de antecipação percorre minha coluna. Quando Alfonso perde o controle, sempre terminamos deitados, exaustos, em uma poça de suor, em algum lugar. E eu não queria que fosse de nenhum outro jeito.
— Aviso devidamente registrado.
Caio bate mais uma vez na porta. Alfonso dá uma piscadela antes de se virar e atravessar a sala para abri-la.
— Cacete, você é mesmo irritante.
O sorriso de Caio é cheio de malícia.
— Eu estava aqui, crente que ia ver alguma coisa boa, mas você a deixou se vestir. — O soco de Alfonso no seu braço não parece de brincadeira. Ainda sorrindo, Caio olha para mim. — Está pronta?
Jogo a bolsa por cima do ombro.
— Acho que sim.
Paro diante de Alfonso.
— Caio pode colocar você a par dos detalhes, já que fomos interrompidos de maneira tão grosseira — diz ele de forma significativa, olhando para o amigo.
— Apenas tenha cuidado. Prometa que não vai correr nenhum risco desnecessário.
— Prometo.
Em vez do pequeno selinho que eu imaginei que ele me daria na frente do amigo, Alfonso me puxa e me beija. Um beijo de verdade. Estou constrangida e sem fôlego quando ele me solta.
— Não se esqueça — diz ele baixinho, seus olhos percorrendo meu rosto, como se ele quisesse memorizá-lo.
— Não vou.
Não sei a que ele está se referindo — não esquecer o que ele me disse ou não esquecer as suas promessas. Ou não esquecê-lo. Mas não importa. A mensagem carrega um tom de adeus, o
que me faz sentir que isso é o fim. Não consigo impedir meu queixo de tremer quando Caio me conduz para o lado de fora.
Caio fica em silêncio enquanto descemos as escadas — todos os zilhões de degraus — e saímos por uma porta lateral. O ar da noite está mais fresco do que o normal. É como um tapa na cara
quando atinge as lágrimas no meu rosto. Eu nem sabia que tinha chorado.
Talvez por isso Caio esteja tão calado. Ele acha que estou a ponto de surtar.
Eu bem que poderia surtar. Às vezes tenho vontade de fazer isso.
Quando subimos a rua, Caio estica o braço para pegar a bolsa do meu ombro. Dou um breve sorriso e deixo que ele a carregue.
— Ele vai ficar bem — diz Caio baixinho, seu sotaque aparentemente mais acentuado na escuridão.
— Você não tem como saber.
— Na verdade, tenho. Ele é um cara esperto e tem um bom plano. Porém, mais do que isso,ele iria até o inferno e voltaria para ter certeza de que você está segura. E quando ele fica puto
assim, se transforma num pit bull. Não há como segurá-lo.
As palavras dele são doces e amargas ao mesmo tempo. Fico emocionada ao ouvi-lo dizer que sou tão importante assim na vida do amigo. Alfonso deve ter dito ou feito alguma coisa para
fazê-lo pensar assim. A menos, é claro, que ele seja babaca o bastante para mentir, só para me fazer sentir melhor. Mesmo assim, isso só me deixa triste e arrependida diante da possibilidade de que nunca conseguirei dizer a Alfonso que sou apaixonada por ele.
Por que você não fez isso há cinco minutos? Quando teve a oportunidade? Ah, espere. Eu sei a resposta. Você não fez isso porque é uma idiota completa e orgulhosa, foi por isso.
Sinto o peito apertado só de pensar na oportunidade perdida. Reduzo o passo até parar, no meio da rua. O impulso de voltar e me lançar nos braços de Alfonso é quase esmagador.
— Caio, eu preciso voltar. Há algo que eu preciso dizer a ele antes de ele sair.
A ansiedade corre nas minhas veias como heroína.
Ah, meu Deus, ah, meu Deus, ah, meu Deus, o que foi que eu fiz?
Pânico, pânico absoluto está trazendo um brilho de suor à minha testa, apesar do frio.
— É tarde demais — diz Caio em tom sério. Eu observo seu rosto bonito e sóbrio e, no instante em que vou abrir a boca para argumentar, uma moto passa rapidamente por nós. — Ele já foi.
Sinto lágrimas brotarem nos meus olhos.
— Mas há algo que tenho que dizer a ele, algo que preciso que ele saiba antes de partir.
Caio põe a mão no meu ombro e inclina-se para olhar no fundo dos meus olhos.
— Ele sabe.
— Não, não sabe. Ele não teria como saber. Eu tenho agido de forma tão neurótica ultimamente, não há como ele saber.
Caio sorri.
— A maioria das mulheres é assim, mas isso é irrelevante. Confie em mim, ele sabe. Ele não estaria, de jeito nenhum, fazendo tudo isso por uma garota que não o ama.
Se Caio sabe, talvez Alfonso também saiba. Talvez ele fosse confessar seu amor por mim antes de Caio nos interromper. Ah, se tivéssemos tido alguns minutinhos a mais. Durante um segundo, tenho vontade de dar um soco em Caio, bem no meio de sua boca
bonita.
— Desgraçado! — reclamo, batendo o pé. — A culpa é sua! Se você não tivesse chegado e batido na porta naquela hora...
Caio ri. Ri?! Que cara de pau!
— Desculpe se os meus esforços para ajudar a salvar a sua vida são inoportunos.
Sinto meus lábios se contraírem, e a raiva explode em mim. A tranquilidade dele só faz piorar as coisas.
— Não mude de assunto. Não está ajudando em nada — digo com os dentes cerrados.
Ainda sorrindo, Caio começa a caminhar rua acima.
— Tudo bem. Pode colocar a culpa em mim por você ter medo de dizer a ele como se sente. Mas nós dois sabemos que a culpa não é minha.
Que cara mais presunçoso. Tão terrivelmente, arrogantemente presunçoso.
E tão cheio de razão.
Ninguém tem culpa, além de mim.
Eu fico parada, zangada, inflexível, olhando Caio se afastar. Quanto mais ele anda, mais a minha irritação irracional diminui. Então me apresso para alcançá-lo.
— Ande mais devagar, seu estrangeiro maluco! — murmuro.
À minha frente, Caio inclina a cabeça para trás e sussurra para o ar:
— Ande mais rápido, sua neurótica.
Não consigo deixar de sorrir.
Caio tem um HT3, o Hummer com uma caçamba na parte de trás. O carro é preto com vidros bem escuros.
— Minha Nossa, você roubou isso de algum traficante?
— Preste atenção. Essa máquina pode salvar a sua vida antes que tudo esteja acabado. Ela é totalmente equipada taticamente.
— Quer dizer que você realmente a roubou de um traficante?
Caio revira os olhos e balança a cabeça.
— Mulher tem cada uma... — murmura ele.
— Espero que você não diga coisas assim na frente da sua namorada.
— Namorada? — Pela expressão no rosto dele, qualquer um acharia que eu insinuei que ele andava transando com animais. — Este é o tipo de problema que eu não quero pra mim. Toda
aquela chatice sentimental só atrapalha uma transa gostosa e a possibilidade de ter alguém com quem dar umas boas gargalhadas.
Naturalmente, eu traço uma paralela.
— É assim que Alfonso pensa também?
Caio olha para mim. A prudência está clara em seus olhos.
— Talvez um pouco.
— Mesmo se fosse, você não me diria, não é?
— Olhe, Anahí, admito que Alfonso e eu somos bem parecidos. Em todo esse tempo que o conheço, ele nunca quis levar ninguém a sério. Pelo que me consta. Até agora.
— Então você está dizendo que ele quer me levar a sério? — Por que será que eu não consigo acreditar em uma palavra do que ele diz?
— Não, não é isso.
— Foi o que pareceu.
— Não sei o que estou tentando dizer. — Ele faz uma pausa e ouço seu suspiro frustrado. — Vou colocar as coisas de outra maneira: eu nunca o vi agir dessa forma com uma mulher. Isso
significa que ele quer levar a relação a sério? Não sei. Acho que sim, mas isso é só uma opinião. Homem não fica falando sobre essas coisas de mulherzinha, entende?
— Não, acho que não. — Fico um pouco desapontada. Eu esperava tanto que ele tentasse me convencer ou tivesse alguma prova que sustentasse sua teoria. Mas ele não tem. Alfonso é
simplesmente um mistério, tanto para ele quanto para todo mundo.
Hora de mudar de assunto antes que eu deixe este medo deprimente me puxar para o fundo do poço. Antes que eu possa pensar em algo para dizer, Caio se antecipa e pergunta:
— Afinal, onde a sua mãe mora?
— Na realidade, ela mora bem perto de Carrollton, onde eu estudo. Fica aproximadamente a uma hora daqui.
— Muito bem. Seguindo para o oeste.
Conforme ele dirige seu veículo enorme em direção à autoestrada interestadual, penso em algo mais para falar.
— Bem, dentre as muitas coisas que você interrompeu com suas pancadas insistentes na porta,uma delas foi o plano. Alfonso estava prestes a me colocar a par do que ia fazer. Você se importa
de me dizer? — pergunto, e Caio me olha desconfiado e hesita. — O que foi? A quem eu poderia contar? À minha mãe? Como se ela fosse se preocupar, mesmo se eu fizesse isso. O que eu não faria. Só estou preocupada. Só isso. Após outra longa pausa, Caio se rende.
— Alfonso vai fazer umas cópias do vídeo e guardá-las com pessoas diferentes. Também vai comprar alguns livros-razão, parecidos com os livros que os caras estão exigindo, para levá-los
com ele. Assim que confirmar que a garota está viva e ilesa, vai mostrar o vídeo a eles. E explicar que se eles não entregarem a garota e garantirem a sua segurança e a do pai dele, tanto
o vídeo quanto os livros serão entregues às autoridades.
— Minha Nossa! Parece perigoso.
Caio dá de ombros. — Ele está com a faca e o queijo na mão agora.
— Não. Eles ainda estão com Mia.
— Certo, ele está praticamente com a faca e o queijo na mão agora. Se eles não a entregarem, Alfonso dará os livros, que estarão com Miguel , a quem ele só irá acionar se as coisas
fugirem do controle.
— Quer dizer que ele espera escapar com os livros, o vídeo e Mia?
— Sim.
— E a pior perspectiva seria...?
— Que ele tenha que dar os livros a eles, como demonstração de confiança, para resgatar a garota. Mas ele ainda terá o vídeo. E toda ajuda que Greg conseguiu juntamente com Miguel .
— Greg? É o pai de Alfonso?
— Sim. Ele é um homem bom.
Eu fico em silêncio. Ainda não decidi se acho o pai de Alfonso um homem bom ou não. No momento, estou mais inclinada a achar que não. Em primeiro lugar, é por causa dele que estamos todos nessa confusão. Tenho certeza de que ele tem algumas qualidades; mas, no momento, não consigo vê-las.
— Você o conhece há muito tempo?
— Sim, há muito tempo.
— É difícil de acreditar. Você não pode ser tão velho.
— Sou gostoso demais pra ficar velho — afirma ele com um sorriso convencido e uma piscadela. Eu reviro os olhos, impaciente, e ele ri. — Não é nada disso, é que eu comecei muito,muito cedo.
— Começou o quê?
Ele dá de ombros, mas desta vez acho que faz isso porque realmente não quer responder, não por indiferença.
— Durante alguns anos, fui contratado para fazer toda espécie de... bicos. Mas também sei pilotar aviões e helicópteros, e foi assim que conheci Greg. E depois Alfonso.
Aceno a cabeça lentamente.
— Bicos, hein? Quer dizer que você está em um negócio... semelhante?
— Não exatamente. O trabalho que eu fazia era perigoso e repulsivo de um modo diferente.Por isso eu saí.
É quase assustador tentar descobrir com que tipo de pessoa estou neste carro, porque ele é extremamente vago em relação às suas atividades atuais. Ou as do passado. E quando me lembro
do modo como Alfonso falava dele, não consigo deixar de me perguntar se estou ao lado de um criminoso ou algo assim. Só porque ele não está na cadeia não quer dizer que não tenha culpa no cartório; significa apenas que nunca foi pego.
De repente, fico muito menos curiosa em relação a... tudo! Parece que não há nada além de escuridão e decepção para todo lugar que eu olho. Pela primeira vez, em talvez toda minha vida,
o quarto de hóspedes da casa da minha mãe parece um pequeno pedaço do paraíso