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Alfonso
Deixar Anahí ir com Caio foi muito mais difícil do que eu pensava. E agora, na moto, de volta à boate, não paro de me lembrar de sua expressão, que vi pelo espelho retrovisor ao passar por ela na rua. Muito chateada. Ela parecia muito, muito triste.
Lembro a mim mesmo que Caio é digno de confiança, tanto quanto é habilitado. Duvidar do
meu julgamento a esta altura seria tão contraprodutivo quanto estúpido. Não há nada que eu possa fazer em relação a isso. É tarde demais para grandes mudanças, principalmente algumas que poderiam colocar Anahí em perigo. Meu instinto mandou que eu a deixasse com Caio. Agora tenho que confiar nele. Ponto final.
Ao entrar na garagem e ver a porta do apartamento aberta, me dou conta de que tenho outros problemas além de me preocupar com o papel de Caio em tudo isso.
Miguel . estaciono a moto e, quando entro, vejo-o no banheiro, fazendo a barba. Depois de enxaguar o rosto, ele encontra meus olhos no espelho. Fico contente de ver seu cavanhaque intacto; não quero que ele fique mais parecido comigo do que o necessário. Isso poderia se tornar algo
complexo. Além disso, eu simplesmente não gosto do cara. Ele está mais babaca do que antes, quando éramos mais jovens.
— Pode ficar à vontade — digo de modo sarcástico.
— Não se preocupe. Já estou.
Eu nem quero perguntar o que ele quer dizer com isso. Só vai me deixar enfurecido, e durante
as próximas 12 horas, mais ou menos, tenho de me concentrar. E não é no meu irmão.
— Se estiver precisando dormir um pouco ou fazer mais alguma higiene pessoal, posso te dar as chaves do apartamento na cidade, e você pode levar o carro pra lá.
— Tentando se livrar de mim tão rápido?
— Para falar a verdade, sim. Estou sim.
— Isso não é muito fraternal da sua parte.
— Olha cara, você vai ter que deixar essa arrogância de lado. Não tenho tempo pra sua
babaquice. Apenas siga o plano e me deixa em paz.
— Bem, o plano inclui o vídeo, que escondi em um lugar seguro. Quanto ao carro, eu posso
aceitar a oferta. Não tenho um desde que fiquei no exílio, há sete anos.
Novamente a amargura. Quero revirar os olhos em sinal de irritação, mas trinco os dentes e
resisto ao impulso. É óbvio que um de nós terá de agir de forma adulta e controlada. E com
certeza não parece que vai ser o Miguel .
Eu entro no quarto, abro a gaveta de cima da cômoda e pego o jogo extra de chaves.
— Leve o BMW. A chave dourada é do apartamento.
Dou-lhe o endereço. Ele ergue as sobrancelhas e acena a cabeça, agradecendo, mas mantém o sarcasmo ao mínimo. Fico contente com isso. Talvez eu tenha conseguido me fazer compreender.
— Legal.
— Talvez para um advogado, mas eu prefiro este lugar.
Ele me encara, como se tentasse ver se estou mentindo.
— Mal posso acreditar que você conseguiu.
— Conseguiu o quê?
— Ir para a faculdade. E de fato se formar e tornar-se advogado.
Analiso minuciosamente as suas palavras em busca de um significado oculto, em busca de
escárnio ou malícia, mas não encontro nada. Ele apenas parece... surpreso.
— Não significa que eu tenha gostado. Foi sempre desejo seu, não meu. Mas foi o que tive que fazer para ajudar nosso pai. Ou pelo menos pensei que fosse.
Tenho que me esforçar para ocultar a amargura em meu tom de voz. Ainda é doloroso saber o quanto eles esconderam de mim e me lembrar de todos os sacrifícios que fiz por achar que meu pai precisava da minha ajuda.
— Acho que nenhum de nós acabou exatamente como esperava.
— Acho que não. Só espero que, depois de tudo o que fizemos e do modo como as coisas
acabaram, a gente tenha se beneficiado em alguns aspectos. Talvez tenha sido bom para nós dois.
Acho que eu precisava de você um pouco.
Miguel dá de ombros.
— Acho que eu precisava de você também. Só não tanto assim.
O sorriso dele parece sincero e é mais fácil retribuí-lo do que eu imaginava, levando-se em
conta a forma como as coisas começaram entre nós.
Talvez haja esperança, afinal.
Dou uma olhada nos poucos pertences de Miguel jogados sobre a cama.
— Vou te dar um minuto para juntar suas coisas. Preciso tirar um negócio do carro.
Isso é mentira. Na realidade, eu tenho que tirar os livros do cofre e não quero que ele veja
onde guardo coisas importantes. Ainda não confio totalmente no meu irmão, portanto considero a mentira prudente e necessária.
Ele assente, e eu volto à garagem, fechando a porta atrás de mim.
Em seguida, vou até o trilho de ganchos e chapas perfuradas na parede, em frente ao carro.
Há uma pequena alavanca e uma dobradiça escondida na segunda chapa. Ela se abre
silenciosamente para revelar um cofre embutido na parede. Digito a combinação. O clique
indica que ele abriu.
As únicas coisas dentro do cofre, além dos livros-razão, são uma pasta expansível cheia de
documentos relacionados à boate e uma pequena pilha de notas de 100 dólares. Odeio não dispor de dinheiro vivo.
Retiro os livros-razão e fecho o cofre. Em seguida, volto a colocar a chapa perfurada por
cima, escondendo perfeitamente sua existência. Depois pego a jaqueta no banco traseiro do BMW e volto ao apartamento. Miguel está colocando os óculos escuros no instante em que eu entro.
— Sério mesmo? Vai usar isso à noite?
— Todos esses anos vendo o sol refletido na água tornaram meus olhos sensíveis à luz. O
brilho dos sinais luminosos à noite me incomoda. Além do mais, eu fico bem irado assim.
Seu sorriso no canto do rosto me lembra a criança confiante e despreocupada da nossa
infância.
— Só precisa de uma calça de couro e um sotaque austríaco para assustar algumas crianças,
no estilo Exterminador do Futuro.
— Neste caso, vou pegar emprestado a sua moto no Halloween.
Sorrio, mas não digo nada. Pelo que ele fala, dá a impressão de que está planejando ficar, e
eu não sei ao certo como me sinto em relação a isso.
— Uma noite assustadora de cada vez, cara — digo ligeiramente. — Vamos nos livrar desta
primeiro. Você pode voltar lá pelas oito?
— Sim.
— Você se importaria de dar uma passada em uma loja de artigos de escritório no caminho
de volta e comprar alguns destes?
Eu ergo os livros-razão. Ele franze a testa e estende a mão para pegar um. Folheando as
páginas, ele diz calmamente:
— Quer dizer que isso é o que causou tanto problema?
— Não. Foram as escolhas do nosso pai que causaram tantos problemas — digo, impassível.
Miguel levanta os olhos para mim. Seu olhar é duro, inflexível, mas ele não diz nada, apenas me entrega o livro-razão.
— Vou trazê-los, pode deixar.
— A gente se vê mais tarde.
E, com isso, ele se vira e vai embora.