Anahí
Uns vinte minutos antes de chegarmos à casa da minha mãe, eu invento algum tipo de razão
plausível para aparecer na casa dela, no meio da noite. E com um cara estranho.
Faz tanto tempo desde a última vez que liguei para ela que preciso de três tentativas para
acertar o número. Ele está registrado no meu telefone, mas o meu telefone está no apartamento de Alfonso. Estou usando um dos baratinhos que Alfonso exige que eu jogue no lixo a cada dois dias,mais ou menos.
A voz sonolenta do meu padrasto Ly le atende a chamada. Dou um suspiro de alívio. Eu não
sabia nenhuma outra combinação de números para tentar, portanto estaria ferrada se esta não
tivesse dado certo.
— Ly le, é Anahí . Desculpe ligar a esta hora. Posso falar com a mamãe?
Ouço um suspiro exasperado e alguns sons abafados quando ele cobre o bocal do aparelho
com a mão. Alguns segundos depois, minha mãe atende.
— Anahí , você sabe que horas são, mocinha?
É bem típico da minha mãe estar mais preocupada com bons modos do que com o fato de sua filha estar ligando do nada em uma hora inconveniente.
— Mãe, houve um vazamento de gás na minha casa. Posso passar a noite com você?
Ouço vários ruídos antes de ela responder, nenhum dos quais dá impressão de alegria.
— Por que não fica com o seu pai? Você não tem uma chave?
— Papai quebrou a perna. Está com dificuldade de se mover. Ligar para ele no meio da noite
poderia fazer com que ele se machucasse. Da mesma forma se eu aparecesse na casa dele.
Tudo que estou dizendo é verdade, exceto o vazamento de gás.
— E estou acompanhada. Ele é... bem, é um amigo. Espero que não seja nenhum problema.
É estranho não ter conseguido sequer mentir, dizendo que Caio representa algo mais para
mim, além de ser apenas um amigo. Parece que até a minha língua está presa a Alfonso, o que é
tremendamente ridículo. Mas conhecendo minha mãe, ela vai entender as coisas de outra forma,
de qualquer jeito. Ela verá, ouvirá e perceberá o que quer, e fará todos os julgamentos baseados
no que está em sua cabeça. Ela sempre foi assim.
— Se você pensa que vai dormir no mesmo quarto que esse “amigo”, pode esquecer, Anahí .
Posso quase ver seus lábios se contraírem numa expressão moralista.
— Eu nem ia pedir isso, mãe. Só precisamos de um lugar seguro. Para esta noite. — Caio
me dá um cutucão, olhando significativamente para mim. — No máximo alguns dias.
— Alguns dias? — Ah, sim, agora ela está indignada. Causar qualquer transtorno à minha mãe é simplesmente proibido.
— Não vamos interferir nos seus planos. Você não vai nem se dar conta da nossa presença.
— Duvido — resmunga ela. — Tudo bem. Quando você vai chegar?
— Daqui a uns 15 minutos.
— Tudo bem.
Com um clique, a ligação é cortada. Eu suspiro e desligo. Em seguida olho para Caio e ele
sorri.
— Parece ser um amor de pessoa.
— Ah, ela é.
Que cara perceptivo.
Menos de vinte minutos depois, Caio está carregando minha bolsa e me seguindo pela longa e sinuosa entrada iluminada da casa da minha mãe. Paro no degrau e respiro fundo, olhando para Caio, à minha esquerda. Ele está examinando a casa, observando a parte externa feita de tijolos decorativos, a quantidade interminável de janelas e a elegante argola de latão, presa à enorme porta de madeira.
— Isso vai ser interessante.
Sorrio.
— Você não faz ideia.
Então eu bato à porta.
Em poucos segundos, ela se abre e minha mãe aparece num sofisticado roupão de seda. Seu
impecável (sim, até no meio da noite) cabelo preto, seus olhos azuis hostis e seus braços finos, cruzados sobre o peito, expressam desaprovação. Ela está praticamente com a mesma aparência da última vez que a vi, há alguns anos. Está praticamente com o mesmo ar de censura. E quase aparentando a mesma idade. Não há dúvida de que gasta milhares de dólares em tratamentos.
Um dia, vou alcançá-la, e teremos a mesma idade. Eu me pergunto se fabricam algum creme noturno enriquecido com formol, penso, como uma idiota, enquanto observo sua pele lisa e esticada.
— Oi, mãe. Sinto muito por acordar você.
Ela dá alguns passos para trás e permite a nossa entrada no hall.
— Não sente o bastante, pelo que vejo.
Resisto ao impulso de revirar os olhos em sinal de irritação. Minha mãe sempre foi o tipo de
pessoa que não consegue deixar passar nada. Ela põe uma coisa na cabeça ou cisma com uma
coisa e fica batendo na mesma tecla.
— É, acho que não — digo concordando. — Não precisa ficar acordada. Este é Caio. Vou
levá-lo a um dos quartos de hóspedes. Vou ficar em outro. Você nem vai perceber que estamos
aqui.
Ela resmunga e fecha a porta atrás de nós.
— Você conhece as regras — avisa ela, olhando intencionalmente para Caio.
— Eu sei, mas eu já falei que ele é só um amigo, mãe.
— O que eu sei é que isso é o que você disse.
Dessa vez eu realmente reviro os olhos.
— Bem, nos vemos de manhã. Boa noite.
Eu pego a mão de Caio e puxo-o para fora dali.
*
Mesmo estando exausta, acabo tendo dificuldade para dormir. Só consigo pensar nas coisas que eu não disse. No que deixei de fazer ou curtir por medo, por não confiar em mim mesma. Não tinha nada a ver com Alfonso e com o fato de não confiar nele, porque ele é um bad boy. Certo, ele é um bad boy. Em alguns aspectos. Mas este não é o problema. Ser um bad boy não faz dele uma pessoa má ou um companheiro desagradável. Mas por causa do meu preconceito eu não pude ver isso. Não confiei no meu julgamento. Depois de ter tomado tantas decisões erradas e deixado meus sentimentos me cegarem, finalmente achei alguém digno de amar e fiquei
estagnada. E não havia momento pior para isso ter acontecido.
Agora me sinto engasgada com todas as coisas não ditas, todo o arrependimento por ter tido
medo. Por não ter agido. Nem falado. Nem agarrado a oportunidade. Se, por algum milagre de Deus, eu tiver outra chance antes que tudo isso acabe, não serei tão covarde da próxima vez.