Alfonso
Eu sei que, além das aproximadamente vinte leis de trânsito que eu não respeitei, também agi de
maneira totalmente estúpida. Acho que nunca atravessei Atlanta de forma tão rápida e em
horário de maior movimento. Ir em zigue-zague pelo fluxo, pegar o acostamento e faixas
exclusivas, várias vezes para me livrar de pontos congestionados, me espremer entre carros para
atravessar o engarrafamento — nada disso é aconselhável. Acabar morrendo na tentativa de
salvar Anahí não vai ajudar ninguém em nada. Mesmo assim... isso parece não importar. Só
consigo pensar no que eles podem fazer com ela, no que já podem ter feito com ela.
Trinco os dentes para conter a raiva que inunda minha corrente sanguínea. Se eles encostaram a mão nela... Se tocaram sequer num fio de cabelo da sua linda cabeça... Deus me livre, se eles
fizeram qualquer coisa... Só de pensar nas coisas terríveis que homens como esses fazem com mulheres me deixa, ao
mesmo tempo, enojado e furioso. O que me conforta é pensar que eles não estão com ela há muito tempo. Quando eu chegar lá, terão se passado apenas algumas horas. Mas, para Anahí , que
está presa no cativeiro, isso pode parecer uma vida inteira.
E para começo de conversa, é tudo culpa sua por arrastá-la para suas encrencas.
Giro o guidão e acelero ainda mais, como se fosse possível deixar meus erros para trás
dirigindo mais rápido. Não é possível, naturalmente. Não há nada que eu possa fazer para
reverter o dano. Minha única esperança agora é consertar as coisas para o futuro. Fazer tudo para
que ela nunca esteja em perigo novamente. Mesmo que isso signifique me tornar um criminoso.
Isso vai contra tudo que sou agora, tudo em que acredito. Mas posso dizer que neste momento
compreendo melhor os motivos do meu pai. Tudo que ele fez, fez por nós. Mesmo que tenha sido
algo incrivelmente estúpido. Penso que é apenas uma questão de achar algo ou alguém
importante a ponto de se chegar a tais extremos.
Como Anahí .
Novamente, como um pesadelo que não dá para esquecer nem depois que seus olhos estão
abertos, eu a vejo gritando enquanto homens sem rosto a torturam, rasgam sua roupa, tocam seu
corpo com suas mãos imundas. É aí que todas as minhas convicções desaparecem
completamente. Eu não teria problema nenhum em tirar a vida de alguém que a ferisse.
Nenhum. Poderia me arrepender mais tarde, mas se isso significasse mantê-la segura, meu
desgosto não passaria disso.
Meu estômago agita-se de raiva. Meus dentes trincam de ódio. Meu maxilar dói por se
contrair com tamanha força. A fúria, como um animal incontrolável, arranha o interior do meu
peito, louca para escapar e se vingar.
Acelero ainda mais, apressando-me em direção a Anahí .
O restante do curto trajeto é completado numa névoa de pensamentos violentos e ideias
horríveis. Quando passo pela rua que Caio indicou, sinto que vou explodir se não colocar as
mãos em um cara em quem eu possa dar porrada até deixá-lo sem vida sob meus olhos.
Estaciono a moto atrás de um micro-ônibus vermelho, caminho casualmente pela rua até
voltar ao cruzamento, logo depois do local onde está Anahí . Paro no sinal e olho ambos os lados,
observando o máximo de detalhes sem parecer suspeito.
A rua parece bem tranquila. É uma vizinhança de baixa renda. Isso fica muito óbvio pelo
tamanho e pela simplicidade das casas. Duas fileiras razoavelmente bem dispostas de pequenas
moradias de tijolos, quadradas, sem veneziana, se alinham na rua. Os gramados são bonitos, mas
de maneira funcional. Não há cenários sofisticados aqui. Apenas poucas motos em algumas
calçadas, mas não vejo nenhum equipamento externo sofisticado em nenhum quintal.
Conforme caminho ao longo da calçada rachada, que se estende de forma tortuosa entre
árvores que precisam ser podadas, percebo que aquele é o lugar perfeito para alguém se manter
no anonimato. Há alguns carros ao longo da rua, provavelmente de pessoas que trabalham no
turno da noite e estão dormindo agora. Os outros moradores provavelmente estão no trabalho ou
na escola, dando aos criminosos privacidade suficiente para fazer tudo o que bem entenderem.
Não há ninguém por perto para ouvir gritos.
Avisto o Hummer de Caio. Meus olhos examinam a área da direita para a esquerda, à
medida que me aproximo do carro. Quando confirmo que aparentemente não estamos sendo
observados, abro a porta e pulo no interior do veículo.
Imediatamente, Caio me entrega uma faca com uma lâmina de quatro polegadas, perfeita
para cortar gargantas ou apunhalar profundamente. Sem fazer perguntas, eu a pego e deslizo a
arma dentro da bota, enquanto Caio rosqueia um silenciador na ponta de uma pistola Makarov.
— Ironia? — pergunto, referindo-me à arma fabricada na Rússia. Caio sorri. — Afinal, o
que você descobriu?
— Não muito além do que já sabia. Com casas assim, e por ser de dia, fica difícil me
movimentar sem ser notado. Agora, se eu soubesse e viesse preparado, estaria verificando os fios
ou o telefone. Mas do jeito que as coisas estão, tenho sorte de ter meu estoque secreto.
— Ainda bem que você é um cretino paranoico.
— Não é? Se não fosse assim, sua namorada poderia estar numa grande enrascada.
— Você quer dizer numa enrascada MAIOR.
— Bem, acho que as coisas poderiam ter sido piores. Os caras que a pegaram não devem ser
tão ameaçadores. Eu diria que tivemos sorte por efetuarmos a transação simultaneamente. Meu
palpite é que eles se preparam para isso. Não só em relação à negociação, mas também em
relação ao descarte dos corpos. Resumindo, acho que estamos numa boa. O fato de serem Bratva
também não é problema. Ninguém deve ficar sabendo o que vai acontecer naquela casa, até
alguns grandalhões aparecerem para checar porque esses babacas não atendem o telefone.
Uma coisa que ajuda é o fato de este provavelmente ser o tipo de vizinhança onde cada um
cuida da própria vida, com medo de levar um tiro.
— Você esteve aqui a manhã toda. Não acha que é bastante arriscado, considerando que
alguém pode ter anotado a placa do carro?
— Não, eu dava a volta pelo quarteirão quando via alguém parar e colocava uma das placas
roubadas que eu tenho. Elas são magnetizadas, portanto basta deslizá-las diretamente por cima
das placas verdadeiras e ninguém percebe. Se alguém anotar a minha placa e se a polícia, de
alguma forma, for investigar, vai seguir a placa de um velho pedófilo que mora em Canton. —
Ele faz uma pausa e franze a testa, acenando a cabeça. — Para falar a verdade, até que seria
bom se alguém realmente anotasse o número. Acho que o safado bem que precisava de uma
visitinha das autoridades.
— Afinal, qual é o plano?
Só de pensar em entrar em ação, a adrenalina flui pela minha corrente sanguínea. Acho que
eu poderia até erguer um carro!
— Você não está louco para entrar lá, está? — pergunta Caio em tom de provocação.
Penso em Anahí e trinco os dentes.
— Mal posso esperar para entrar lá e quebrar alguns ossos. Se eles tocaram sequer um dedo
nela...
Meu coração dispara no peito enquanto tento tirar da cabeça as imagens de Anahí sendo
torturada.
— Você só tem que ficar calmo, Alfonso. Precisamos estar certos de como iremos agir e fazer
tudo direitinho, ou coisas ruins podem acontecer.
Respiro fundo e aceno a cabeça.
— Eu sei, eu sei. Não estou preocupado com o fato de eles me ferirem. Só quero tirá-la de lá
em segurança. Não dou a mínima para o que acontecer a eles, desde que não voltem a pegá-la.
Quando olho para Caio, ele está balançando a cabeça.
— Nunca mais — diz ele em caráter definitivo. Não é uma coisa simples o que ele está
dizendo. Fitamos um ao outro por alguns segundos tensos, então aceno a cabeça, em sinal de
anuência.
— Nunca mais.
Outra torrente de adrenalina, provavelmente misturada com um leve receio do que pode
acontecer. Não temo aquela gente. Nem o fato de resgatar Anahí em segurança. Eu vou tirá-la
de lá. E vou me certificar de que ela está segura. Não há outra opção.
São as consequências que me deixam receoso. Eu já vi, bem de perto, o que pode acontecer
quando os planos dão errado, quando se negocia com gente assim. Não é nada bonito. É
desagradável! Na realidade, na maioria das vezes, é desagradável por uns 25 anos.
— Então vamos logo com isso. Não acha melhor darmos a volta no quarteirão e você me
deixar saltar? Depois você volta e estaciona em outro lugar. Em seguida vai até a porta da frente
e eu sigo para os fundos. Posso apostar que há uma porta dos fundos.
— Você pode ter alguma surpresa lá. Não se esqueça de que eles provavelmente foram
avisados.
— Mas eles não devem ter a menor ideia de que eu sei onde eles estão.
— Não, mas provavelmente já receberam uma ligação informando que os planos mudaram.
Eles podem estar se preparando para levá-la para outro lugar ou para fazer... algo com ela.
Sinto um nó na garganta com gosto de puro fel.
— Então vamos entrar lá.
Caio liga o Hummer e passa a primeira marcha.
— Levante o banco de trás. Há um compartimento debaixo dele. Você vai encontrar alguns
chapéus, luvas e tinta de rosto. Não vamos entrar na escuridão da noite, mas pelo menos
podemos disfarçar um pouco nossas feições. — Estico o corpo até a parte de trás e tento levantar
o banco, mas ele não sai do lugar. — Há uma pequena alavanca debaixo da almofada.
Tento alcançar a alavanca e a pressiono enquanto levanto o banco. A almofada de trás se
dobra para cima e surge um pequeno compartimento. Conforme ele havia dito, há alguns
chapéus, luvas e tinta, entre todos os tipos de coisas necessárias.
— Meu melhor amigo é guerrilheiro — digo em tom de sarcasmo, pegando o que precisamos.
— Você deveria estar contente com isso.
Coloco o banco no lugar com um clique e me viro para a frente. Caio e eu nos entreolhamos,
e faço um gesto positivo com a cabeça.
— E estou, cara. Estou mais agradecido do que você imagina. — Caio assente. Sei que ele
sabe que estou sendo sincero. Está em sua expressão. É como se compartilhássemos um
sentimento fraternal. Ambos temos passados dos quais estamos tentando escapar, ambos estamos
dispostos a tomar medidas extremas por aqueles que amamos, e ambos provavelmente teremos
mortes prematuras. Isso é o bastante para alguns homens estabelecerem laços. É uma amizade
que vai além das partidas de futebol ou festas de confraternização.
Eu abro a tampa redonda e achatada do frasco da tinta facial. A pasta é preta e parece graxa
de sapato, só que mais oleosa. Então abaixo o espelho, passo rapidamente dois dedos na pomada
e espalho algumas faixas no rosto. Repito a operação, até as minhas características ficarem
irregulares e menos identificáveis diante do espelho.
Coloco o boné na cabeça e puxo-o para baixo, por cima dos olhos, e depois enfio as luvas.
Caio reduz a velocidade até parar na rua atrás da casa.
— Vou assobiar quando chegar na varanda. Mantenha a cabeça baixa e as mãos no bolso.
Não esqueça de vigiar as laterais. Tenha cuidado.
— Valeu, cara. Você também.
— Vou deixar as chaves debaixo do tapete. Tire Anahí daqui o mais rápido que puder.
— Aqui — digo, pegando as chaves da moto no bolso e entregando-as a Caio. — Atrás do
micro-ônibus vermelho, uma rua depois. Nós nos encontramos lá em casa. — Alcanço a
maçaneta da porta. — Vejo você do outro lado. — Caio sorri e ergue o punho. Eu repito o gesto
e bato na sua mão fechada antes de saltar do Hummer.