PEGUEI O telefone dez vezes para cancelar o encontro. Quer dizer, almoço de negócios.
Dez vezes.
Mas quando ouvi a recepcionista,com seus saltinhos estalando no final do
corredor, ainda não tinha dado o telefonema que iria dar fim àquela loucura. Agora não
havia como recuar.
– Courtney? – Dulce bateu de leve na porta aberta, seu cabelo ruivo preso para cima
como o de uma professora de outras eras.
Havia algo de muito apropriado naquele penteado retrô e na xícara de chá de porcelana
de Dulce, a qual ela carregava pelo escritório durante todo o expediente. Mas as aparências
enganavam, porque ela era a mesma colega que escolhera fazer sua despedida de solteira
na Naughty by Night. Eu queria agradecê-la – ou culpá-la – por ter me transformando em
atração principal no clube de cavalheiros locais.
– Sim? – Fiquei de pé, pronta para fugir do meu escritório, a fim de escapar daquele
almoço, mesmo tendo eliminado qualquer prova incriminatória da minha aventura no
Backstage. Ou mesmo da minha dança.
– Ian queria que lhe entregasse isto. – Ela me deu uma pasta gorda que pertencia
ao chefe. O arquivo tinha o nome de uma conhecida empresa do Vale do Silício na aba.
– Uma conta nova sobre a qual devo pesquisar? – Peguei a pasta e a coloquei sobre
minha mesa, ao mesmo tempo percebendo que estava extremamente decepcionada pela
recepcionista não estar ali para anunciar a chegada de Alfonso.
– Tem mais. – Dulce sorriu e meneou as sobrancelhas. – Ele me pediu para lhe dizer que
realmente gostaria que você cogitasse assumir a liderança dessa conta.
– Eu? – Meus batimentos cardíacos vacilaram um pouco. – Ele sabe que sou uma pessoa
de bastidores.
Ian estivera na minha entrevista com a empresa. Ele sabia melhor do que a
maioria das pessoas o quanto minhas habilidades para falar em público podiam ser
terríveis. Ainda assim, ter contato com clientes poderia aumentar meu salário, se um dia
me sentisse pronta para enfrentá-los.
– Talvez ele tenha percebido que você não é mais tão tímida quanto costumava ser. –
Dulce endireitou o camafeu do colar vintage que usava. – E, a propósito,Alfonso Herrera está
aguardando por você lá na recepção.
Um grito alarmado nada nobre me escapou.
– Por que você não disse logo? – sibilei para ela, agarrando minha bolsa e verificando
meus dentes em um espelho enfiado em uma estante.
– É divertido surpreender você – admitiu ela, me acompanhando enquanto eu acelerava
pelo corredor.
– Assim você pode me ver tropeçar e talvez até gaguejar? – Todo mundo no escritório
já havia presenciado a falha no meu discurso em algum momento. Mas tinha de admitir:
todos eram muito tranquilos em relação a isso. E, exceto por algum estagiário temporário
sem noção, todo mundo era muito paciente comigo quando me enrolava com as palavras.
Era humilhante ter gente tentando concluir minhas frases.
– Não. – De trás de mim, Dulce enfiou a etiqueta da minha camisa para dentro da gola. –
Porque você é muito mais animada do que a maioria das pessoas da equipe.
– Eis um jeito novo de enxergar a situação – resmunguei, mesmo percebendo o que ela
queria dizer. Havia algumas pessoas na contabilidade que você poderia jurar serem
desprovidas de um coração.
– Vá pegá-lo, Anahí – sussurrou Dulce ao meu ouvido assim que abri a porta para a
recepção. – E não se preocupe se você não voltar depois do almoço. Sempre posso dar-lhe
cobertura.
As palavras soaram em meus ouvidos quando captei a primeira visão de Alfonso. Uma
visão maravihosa, de tirar o fôlego. Ainda não podia acreditar que havia tido uma chance
com ele na outra noite. E realmente não conseguia acreditar que o ignorei e fui para casa.
Precisava parar de deixar as velhas inseguranças arruinarem minha vida.
– Oi – falei, sem jeito, parando no meio do saguão.
Animada? Eu não conseguia pensar em uma única palavra para dizer ao sujeito. Ele
usava calça jeans e uma camiseta vermelha desbotada, mas seus sapatos eram de matar.
Mocassins velhos de couro, uma mistura de gigolô italiano com caubói americano. Ele
estava muito gostoso.
– Você está pronta? – Alfonso sorriu, e me perguntei o que ele tinha em mente para o
almoço.
Provavelmente nada parecido com a diversão que eu estava imaginando agora. Além
disso, estava vestida com uma saia cáqui entediante na altura dos joelhos e uma camiseta
branca comprada no departamento de roupas masculinas. Eu sempre achava que, com a
bijuteria certa, a camisa masculina poderia se afirmar como uma coisa na moda. Embora
a afirmação que eu estivesse fazendo agora provavelmente fosse algo como Desisto!,
acho que me esforcei demais para não me vestir para a sedução, já que isso era tudo que
eu tinha em mente.
E independentemente das fantasias que tivera com Alfonso, o relacionamento com clientes
estava fora dos limites.
– Espero que sim. – Enfiei meu tablet na bolsa e mais algumas anotações que havia
preparado para ajudá-lo com segurança on-line. – Isto é, sim.
Tardiamente, lembrei-me de ser mais firme. Direta. Se queria me sair bem falando em
público, precisava me articular melhor.
– Ótimo. – Ele olhou para meus pés e me lembrei de que estava usando tênis de lona. –
São perfeitos para o que tenho em mente.
Fiquei aliviada, já que tinha toda a intenção de trazer um par de saltos altos para o
trabalho hoje, especificamente para este almoço. Mas minha mãe havia telefonado pouco
antes de eu sair, me perturbando com sua enxurrada mensal de perguntas sobre o que eu
planejava fazer com a minha vida. Ela ainda não me oferecia reconhecimento em público,
afinal eu continuava a envergonhá-la em seu mundinho perfeito, mas ela não desistira de
sua busca para me moldar, a fim de eu virar um ser humano melhor. Ela ainda me
inscrevia em aulas de dicção, às quais eu não comparecia, e em oficinas destinadas a me
ajudar a aprender como me vestir com mais discernimento.
Hum. Não, obrigada, mãe.
– É mesmo? – Passei pela porta do escritório rumo ao calor do meio-dia. Havia algumas
nuvens ameaçadoras, mas por enquanto o dia estava apenas úmido e quente. – Vamos
comer em um desses trailers de rua? Tem um cara grego no próximo quarteirão que
vende gyros… – fiquei muito arrebatada pelas minhas lembranças culinárias para
descrever o sabor – incríveis.
– Não. – Alfonso me guiou em meio a um punhado de empresários vestindo terno que
andavam lado a lado, todos falando em seus celulares. – Meu carro está desse lado aqui.
A mão de Alfonso em meu cóccix foi fugaz, porém sexy. Minha pele se arrepiou naquele
ponto, mesmo depois que ele se afastou.
– Agora estou curiosa. – A respeito de Alfonso, percebi. Imediatamente fiquei tensa. –
Quer dizer, sobre para onde estamos indo.
– Você gosta de surpresas?
– Na verdade, sim. – Vi um Jaguar preto rebaixado na rua e suspus ser o carro dele. –
Você pode achar que uma menina tímida e quieta como eu não seja fã de surpresas, mas
quando nasci meus pais já eram mais velhos e nunca faziam nada sem grandes
planejamentos.
Alfonso pôs a mão em minhas costas de novo e me guiou por uma esquina, até uma rua
lateral. Acabou que o Jaguar não era dele. Captei o menor indício do perfume dele e desejei
poder chegar mais pertinho.
– Tímida? – perguntou ele, inclinando a cabeça para olhar meu rosto. – Eu nunca teria
considerado você tímida.
Ai, meu Deus. Algo no tom de voz de Alfonso me fez pensar que ele sabia meu segredo.
Ele sabia que eu era a dançarina no Backstage. Meu coração acelerou descontroladamente
e meus pés se embaralharam um pouco.
Alfonso segurou meu braço, exibindo um sorriso divertido.
– Meu carro está aqui. – Ele apontou para um enorme utilitário branco.
– Nunca achei que você fosse do tipo que teria um utilitário. – Fiquei feliz por
redirecionar a conversa, já que não tinha ideia do que dizer sobre sua afirmação de que eu
não era tímida. Todo mundo me considerava tímida… bem, pelo menos as pessoas que
não me conheciam.
– Então acho que já estamos surpreendendo um ao outro – observou ele sutilmente,
abrindo a porta do passageiro para mim e me ajudando a subir na cabina.
Ele deu a volta para o lado do motorista e entrou. Afivelamos os cintos e saímos
calmamente em meio ao tráfego de horário de almoço, mesmo com tudo estando uma
loucura.
– Então você gosta de dirigir um tanque? – Usei o retrovisor lateral para me certificar
de que ele não estava esmagando os carros menores na pista ao lado, quando seguiu para
a direita. – Eu ficaria uma pilha de nervos nessa coisa.
Eu estava uma pilha de nervos, de qualquer forma, ali a sós com Alfonso em um espaço
fechado. Uma vida inteira de comentários mordazes da minha mãe voltou para me
assombrar enquanto me perguntava se minha roupa estava combinando e se conseguiria
enfrentar o almoço sem tropeçar nas palavras. Para me distrair dos pensamentos
negativos, tentei me concentrar no veículo e me perguntei se ele estava dirigindo a
caminhonete na outra noite, no Backstage. Parecia muito espaçosa. Poderíamos ter
realmente… nos divertido.
Precisei me abanar para evitar o superaquecimento enquanto imaginava as mãos dele
em cima de mim.
– É um veículo de trabalho – assegurou ele, seguindo para a parte oeste na Sunset
Boulevard. – Trabalhar para mim significa pegar no pesado. Às vezes preciso transportar
material por aí.
Ou convidar dançarinas exóticas para seu banco de trás? Olhei furtivamente para as
coxas dele e me imaginei montando nelas.
– Você é um agente de talentos. – Abaixei o vidro do lado passageiro e deixei um pouco
da brisa entrar para ajudar a me refrescar. Era divertido estar num carro tão alto. E nunca
me cansava do oceano. Eu morava perto dele, mas não via o suficiente. – Como você pega
no pesado enquanto conversa com agentes de elenco e envia fotos?
Aquilo o fez rir, e gostei do som, enquanto deixávamos o centro de Los Angeles para
trás. Ele parecia demasiadamente sério para um sujeito nascido na realeza de Hollywood.
Eu sabia que o dinheiro não trazia felicidade, mas, na maioria das vezes, ajudava.
– Você, de todas as pessoas, deve entender que tenho aspirações maiores do que gerir
minha lista de clientes. – Passamos por um turista que tietava um casal de estrelas de
reality show em uma faixa de pedestres, os braços cheios de sacolas de compras. – Então
trabalho muito mais horas no dia além do que meus negócios exigem. Mas este carro se
provou útil até mesmo para a agência de talentos. Há um ator famoso que assinou
comigo, e ele não vai a lugar nenhum sem seu cachorro são bernardo. Buddy nunca caberia
em um carro esportivo.
– Tenho muita curiosidade sobre o desenvolvimento da sua empresa de cinema. –
Estudei o perfil dele para ver se tinha me aventurado em um assunto proibido. – Adoraria
saber mais sobre isso, se você não se importar.
– Depende. Você está pedindo para si ou como representante da Sphere?
– Definitivamente para mim. Mas eu não queria…
– Tudo bem. – Ele abriu o teto solar e olhei para cima; vi as palmeiras e o céu cheio de
nuvens. – Aprendi a ser cauteloso, mas que mal faria comentar com alguém que já
conhece o plano?
Os quilômetros voavam conforme ele me contava sobre algumas noções básicas do
ramo. Sabia uma coisa ou outra sobre empresas start-up, mas nada sobre o nascimento
de um estúdio de cinema, então aprendi muito. Logo se tornou óbvio que Alfonso sabia o que
estava fazendo. Também me ocorreu que seu pai era um tolo por permitir que um sujeito
bem informado sobre o ramo como Alfonso escapasse.
Quando o utilitário tomou uma estrada íngreme e sinuosa em Pacific Palisades, quase
tinha me esquecido do nosso almoço. Ops, reunião.
– Onde estamos? – Olhei as redondezas com mais atenção e tive certeza de que nunca
havia estado ali. Parecia um lugar improvável para um restaurante.
– No local de nosso piquenique.
– V-v-vamos fazer um piquenique? – Hesitei nas palavras porque um piquenique fazia
aquilo se parecer muito mais com um encontro de namorados do que com uma reunião. E
de repente senti mais pressão. Cuidado.
– Percebi ontem que fiquei ralando por meses para recuperar alguma credibilidade
profissional, mas não importa o quanto eu trabalhe, meu pai ainda vai estar esperando que
eu cometa um erro. – Ele parou em um estacionamento perto de um campo gramado com
um cartaz que dizia “Will Rogers State Park”. – Achei que era melhor encontrar tempo
para desfrutar dessa jornada, porque tenho certeza de que não estou nem perto do ponto
da minha vida em que poderei escapar da sombra do velho.
Ele desligou o motor e deu a volta para abrir a minha porta. Eu estava começando a
ficar tensa, o ambiente descontraído do passeio dissipando sob a pressão de… ajudar Alfonso
Herrera a aproveitar sua jornada. Mas ele parecia inconsciente da minha mudança de humor
quando se dirigiu para a parte traseira do veículo e abriu o porta-malas.
– Pronta? – perguntou ele, me entregando um cobertor azul enquanto pegava uma
imensa bolsa térmica. – Espero que não chova.
– Uau. – Eu não conseguia pensar em mais nada a dizer porque meu cérebro estava
ocupado calculando o tempo e o esforço que ele deve ter depositado no planejamento
daquilo tudo. Arrumar as coisas de um piquenique me pareceu incrivelmente romântico,
embora soubesse que essa não era a intenção dele.
No entanto… e se fosse?
Voltei a me preocupar se ele sabia que era eu no palco do Backstage. Afinal, eu era
capaz de acreditar que Natalie Night o havia encantado. Mas eu? Anahí? Diabo, eu era
uma contadora, e até mesmo eu não era capaz de fazer aquela conta dar certo.
– O quê? – Ele olhou para mim quando passamos por um campo de polo vazio, em
direção a algumas mesas de piquenique desertas. – Você é contra piqueniques? Tem fobia
de formigas, talvez?
– Não. – Segui-o até a mesa de piquenique à sombra de uma árvore imensa, onde
paramos. – Só estou surpresa por estarmos fazendo um piquenique em uma reunião de
negócios.
– Primeiro de tudo, você disse que gostava de surpresas. – Ele pegou o cobertor das
minhas mãos e o estendeu à sombra, com cuidado para evitar as raízes das árvores. – Em
segundo lugar, só joguei a parte sobre trabalho para me certificar de que você viria.
Seus olhos encontraram os meus, e a voz dele baixou para aquele tom de intimidade
tranquila.
– Oh. – Aparentemente, ele tinha planejado tudo. Meu coração batia tão rápido que me
senti um pouco tonta. Dizia a mim mesma para falar devagar. Realmente devagar. Porque
fiquei tão desnorteada, que estava com o corpo tombando. – Por quê? Isto é, por que é
importante eu estar aqui?
Aquela era a chance de ele denunciar minha dupla identidade. Ele poderia acabar com a
tensão agora e me confrontar sobre a duplicidade. Parte de mim achava que seria melhor
simplesmente admiti-la. Eu sempre poderia me subjugar a ele e pedir para não contar ao
meu chefe.
Na verdade, me subjugar a ele não parecia nada mal.
– Quero saber mais sobre você, Anahí Portilla. – A expressão de Alfonso não
revelava nada.
Ainda assim, minha pele formigava em todos os pontos, como se ele tivesse acabado de
me tocar.
– De um jeito pessoal? – Passei os braços em volta do corpo, apesar do calor do dia,
porque estava arrepiada em todos os lugares.
– Acho que você sabe a resposta para isso. – Ele apontou para o cobertor. – Sente-se.
Escolhi um canto mais perto do tronco da árvore e tentei não hiperventilar. Por alguns
minutos, vi-o abrindo a bolsa de piquenique em silêncio. Pegou uma garrafa de um
champanhe excelente e duas taças de cristal. Fui encarregada de servir a bebida enquanto
ele pegava queijos, frutas e algumas minibaguetes. Ele também havia trazido salmão
conservado no gelo e alguns chocolates.
Enquanto me atrapalhava com a embalagem de alumínio e colocava um guardanapo de
linho ao redor da cortiça para tirar a rolha, assisti a Alfonso trabalhar na apresentação da
refeição. Gostei de ele ter me deixado processar toda a coisa do “Quero te conhecer no
âmbito pessoal” no meu próprio ritmo.
– Você está colocando o Claude Troigros no chinelo. – Eu o observava cortar um
morango em fatias para decorar o prato de frutas.
– Resolvi usar todos os recursos existentes para seduzir os sentidos. – Ele estendeu
uma fatia de morango para mim. – Gostaria de uma mordida?
Meu coração parou. Perguntei-me vagamente quanto tempo ainda conseguiria respirar
sem esse órgão vital funcionando, mas depois ele voltou a engrenar. Agora batia num
ritmo que parecia três vezes mais rápido. Aquilo realmente estava acontecendo. Eu poderia
perder meu emprego por isso.
Mas estava muito longe do escritório agora.
Envergonhada, abri os lábios e me inclinei para a frente. Os olhos de Alfonso mergulharam
em direção à minha boca enquanto ele me alimentava, os nós dos dedos roçando em meu
queixo, e então a mão caindo.
– Delícia. – Ele nem sequer tinha provado o morango. Simplesmente estava concentrado
em meus lábios.
Eu estava completamente perturbada. Totalmente excitada, mas desconcertada também.
– Você não precisava t-t-ter tido todo este trabalho – falei a ele, desacostumada àquele
tipo de atenção masculina.
– Não? – Ele pegou a garrafa de champanhe das minhas mãos e finalizou o trabalho do
qual tinha me esquecido. A cortiça estalou suavemente quando saiu. – Acho que você está
errada. Da última vez que a convidei para sair, levei um bolo.
Ele serviu o champanhe tão calmamente, que ninguém que estivesse nos observando
teria imaginado que ele havia acabado de jogar uma granada no meu mundo.