Fátima não conseguia dormir. Ela tentou ler um capítulo de um livro qualquer, mas desistiu ao perceber que as palavras pareciam não fazer sentido. Rolou diversas vezes pela cama procurando a posição ideal e tentou até mesmo se aconchegar no sofá que ficava num dos cantos do quarto, mas tudo parecia inútil. As palavras que William havia dito ecoavam na sua cabeça repetidas vezes e a impedia de se concentrar em qualquer coisa. O ar condicionado do quarto de hóspedes estava com problema e no instante em que se lembrou disso ela sentiu um enorme arrependimento de não ter colocado o William para dormir fora do quarto. Mas a verdade é que Fátima nunca se imaginou sendo esse tipo de mulher que coloca o marido para dormir no sofá. Talvez porque ela tivera como exemplo o casamento dos pais, que sempre foi baseado no respeito. Seu pai nunca havia dormido fora do quarto e as brigas do casal eram sempre resolvidas com conversas. Somente depois de ter depositado vários travesseiros ao redor da cama e ter trocado a manta por um lençol mais fino, ela finalmente conseguiu dormir.
William não acreditava no que tinha acabado de acontecer. Fátima havia ido dormir em outro quarto e eles haviam brigado por uma série de questões bobas. "Definitivamente isso não está dando certo" foi o que ela dissera. Essa frase não lhe saia da cabeça. O que ela queria dizer com isso? Ele arrumou rapidamente o quarto e logo em seguida tomou um banho. Ao se deitar, sentiu o cheiro dela nos lençóis e doeu-lhe saber que apenas uma parede os separavam.
Pela manhã, William já estava na cozinha quando sentiu o perfume de Fátima invadir local. Ele costumava dizer que ela conseguia ser ainda mais linda pela manhã, e naquele dia não foi diferente. Fátima vestia uma calça de tecido preta, cintura alta e com a barra levemente no estilo "boca de sino". A blusa era branca e de seda, sobre a qual caía um delicado colar. William sentiu uma enorme vontade de tomá-la nos braços ou simplesmente prendê-la contra a mesa usando o peso do seu corpo para excita-la, mas se limitou a um seco bom dia. Com a mesma apatia, Fátima respondeu o cumprimento e após ter enchido uma caneca térmica com café saiu da cozinha. Não demorou muito, ele escutou o som do carro, indicando que ela havia partido.
Fátima sentia vontade de se abrir com alguém, mas a maioria das suas amigas estavam trabalhando naquele horário do dia. Ela não queria preocupar sua mãe com aquele assunto, mas se viu parada na frente da casa dos pais chorando dentro do carro. Fátima se acalmou, passou um pouco de pó no nariz e ao redor dos olhos e entrou na sua antiga casa.
-Fatinha, você aqui esse horário. - Diz Dona Eunice abraçando a filha.
-Oi, mãe. Cadê o papai?
-Seu pai foi num almoço dos antigos colegas do exército. Só homens, como ele disse.
-Hum.
-Mas e você, minha filha, porque está aqui esse horário? Aconteceu alguma coisa?
-Não, mãe, está tudo bem. Eu só precisava...Só precisava pensar um pouco. Aí acabei vindo pra cá.
-Sei, igual aquele domingo que você apareceu aqui sem o William.
Fátima fingia alinhar os bibelôs da mesinha de centro.
-Você quer conversar sobre o que está acontecendo?
-Mãe, não é nada. Eu não quero te preocupar.
-Mas se você vem aqui no meio da manhã com essa cara de choro...Eu já estou preocupada, Fatinha. Você só vai me deixar mais aflita se não me contar.
-Tudo bem. Mas não fala nada para o papai.
-Isso você sabe que eu já não posso prometer.
-Ok. -Diz inspirando lentamente. -Acho que eu vou pedir um tempo para o William.
-Tempo? Como assim, tempo?
-Como assim tempo? Um tempo, ué! Um tempo para eu pensar na nossa relação, nos nossos problemas...
Dona Eunice ficou calada.
-Pode dizer, mãe. Pode dizer: Eu falei para você esperar mais um pouco, para não ir morar junto logo assim de cara. - diz Fátima se jogando no sofá.
-Eu não quero nem de longe falar isso.
-Então porque a senhora ficou assim tão quieta?
-Eu estava pensando em como vocês jovens não sabem resolver seus problemas e acabam dando um tempo em tudo. Não existe isso de dar tempo. A semanas atrás você jurava amor ao William e agora quer um tempo?
-Mãe, essas coisas acontecem. A gente vem discutindo muito.
-Claro que sim. Isso se chama CA-SA-MEN-TO. Pensei que você tinha aprendido com a primeira vez, minha filha.
-E aprendi. Justamente por isso que eu queria pedir um tempo para o William. Eu ainda o amo muito e não queria que nossa relação se perdesse em desrespeito e desarmonia.
-Fátima, me responde: Eu e seu pai, já demos um tempo?
-Mamãe, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eram outros tempos...
-Então você quer dizer que agora é moda esse negócio de tempo?
-Não é isso, mãe.
-Olha,Fá, Deus e você sabem que eu te apoiei naquela separação por que eu via que daquele relacionamento não sairia boa coisa. E que quando você quis morar com o William eu te falei para esperar. Mas eu logo vi que você estava certa. É só olhar para vocês dois e vê o quanto vocês se completam e não precisavam esperar mais nada. Por isso eu te falo: estarei aqui para o que você precisar, mas não acho certo isso de tempo.
-Mamãe, nem tudo é mais um mar de rosas.
-Nenhum casamento é, minha querida. Você e sua irmã podem até achar que o meu casamento com o pai de vocês é perfeito, mas só eu e Amancio sabemos quantas crises já passamos. Se fizéssemos como vocês fazem hoje, com esse negócio de dar um tempo, provavelmente vocês teriam sido criadas em casas de pais separados.
-E como vocês fazem, mamãe?
-Fá, você ama o William? -Pergunta segurando as mãos de Fátima.
-Muito.
-E acha que seu amor é correspondido?
-Sim.
-Então você sabe o que fazer.
Fátima olhou para mãe e concordou com a cabeça. Dona Eunice logo envolveu a filha nos braços, e ficaram assim por um bom momento.
-Bom, vamos almoçar? -Diz soltando Fátima.
-Por favor. Estou só com uma xícara de café no estômago.
-Vamos te alimentar então que logo você terá que ir trabalhar.
Dona Eunice havia preparado um fricassê de frango que Fátima adorava, arroz branco, purê de abóbora e uma saladinha verde. As duas comeram na mesa da cozinha mesmo e quase 1 hora depois Fátima se despediu da mãe para ir ao trabalho.
Assim que entrou ela avistou William parado no meio da redação conversando com um outro colega. Ele estava rindo de alguma coisa e seus olhos estavam quase fechados por isso. Fátima amava vê-lo sorrir. Quando William a avistou chegando o sorriso se desfez e ele pediu licença ao colega. Ele foi ao encontro dela, que já caminhava para sua sala.
-Tudo bem, Fá? Você saiu hoje cedo e não deu notícias, eu fiquei preocupado.
-Uhum, está tudo bem. Eu passei na casa da minha mãe. Desculpa ter te preocupado.
-Ah. Escuta, Fátima, será que podemos sair para conversar depois do jornal?
-Ok.
-Ok.
"Você sabe o que fazer. Você sabe o que fazer..." Fátima repetia isso milhares e milhares de vezes na cabeça. Será que ela sabia mesmo? Ela se sentia dividida, como se sua cabeça lhe mandasse correr e seu coração lhe dissesse para ficar. Ela já tinha ficado uma vez e o final, bom...Não dera lá muito certo.
O trabalho logo foi feito e na hora certo o jornal foi ao ar. Sem erros, sem imprevistos, da forma perfeita que todos torciam para que ele ocorresse sempre. Assim que terminou de fazer as últimas tarefas, William foi ao encontro de Fátima na sala dela.
-E então, vamos? -pergunta ele.
-Vamos.
-Você, hã...Está com fome?
-Um pouco.
-Podemos ir jantar em algum lugar, se você quiser.
-Será que ainda encontramos algum lugar aberto?
-Tem aquele mexicano que você gosta. Eu posso ligar e pedir para eles nos esperarem. Fiz amizade com o cheff. - diz rindo.
-Bom, então pode ser.
Os dois foram no carro de William e quando já estavam quase chegando o celular dele tocou.
-Fá, atende por favor. -diz passando o celular.
-Alô. -diz Fátima. -
-Alô, Fátima?
-Sim, é ela. William está dirigindo no momento.
-Tudo bem. Aqui é o cheff Girrad. Eu estou tão envergonhado...Bom, é que eu falei com seu esposo que iríamos recebê-los ainda hoje. Mas infelizmente, não será possível.
-Ah, claro. Não, não precisa se desculpar, sabemos que está bem tarde mesmo.
-Seria possível, se amanhã pela manhã não tivéssemos um evento aqui no salão. Eu havia me esquecido desse detalhe. Mil perdões. Se vocês quiserem preparo qualquer coisa para vocês e faço com que chegue em sua casa. Infelizmente só não poderemos mais usar o salão.
-Não se preocupe, está tudo bem. Qualquer dia desses apareceremos aí.
-Seria um prazer, como sempre, cozinhar para vocês. Boa noite.
-Boa noite.
-Bom, pelo que me pareceu, nada de comida mexicana, não é?
-Exatamente. Ele pediu desculpas, mas esqueceu que o salão precisará ser arrumado para um evento que acontecerá amanhã pela manhã.
-Tudo bem. Mas, o que faremos agora? Sem a Maria lá em casa não fica nada preparado naquela geladeira.
-Não sei.
-Você topa um sanduíche? Sei de um quiosque bem em frente ao mexicano que nunca fecha.
-É limpo?
-Sim, e bem gostoso.
-Por mim, tudo bem.
William dirigiu mais um pouco e logo estavam no calçadão, a beira da praia. No quiosque haviam alguns jovens bebendo e jogando conversa fora. Os dois sentaram e logo foram atendidos. Fátima pediu um sanduíche natural e um suco de laranja enquanto William pediu um pedaço de torta salgada e uma cerveja. Os dois comeram em silêncio e logo terminaram. Um parecia esperar o outro dizer a palavra mágica para começar aquilo que eles haviam ido fazer: conversar sobre a relação.
-Você quer caminhar um pouco? -Propôs William.
-Claro.
Os dois saíram então do quiosque e seguiram o caminho que o calçadão desenhava. Mesmo sendo de madrugada muitas pessoas faziam a mesma coisa. Era possível ver pessoas correndo, jovens andando de skate, bicicleta, patins e outros apenas admirando o mar. Como havia proposto a saída, William se viu obrigado a começar a conversa.
-Fá, eu te amo.
-Eu também te amo, William. - diz olhando para ele.
-Você acha que a gente se precipitou por termos ido morar juntos?
-Não sei. Talvez. O que você acha?
-Talvez é uma boa opção.
-O que você quis dizer com "estar cansado"?
-Eu disse aquilo da boca para fora. Eu...Eu só estava tentando responder as suas provocações.
-Eu não estava te provocando, William. Eu só estava irritada. Do jeito que você fala, parece que eu desejava aquelas discussões.
-Eu sei, me desculpe. Escolhi mal as palavras.
Os dois estavam sentados em uma mureta que lhes davam uma visão privilegiada do mar. O silêncio voltou a imperar novamente e então foi Fátima quem o interrompeu.
-O que você acha de darmos um tempo?
-Tempo? Fátima, não estamos em um namorico de colegial.
-Eu sei,William. Mas eu não quero ter mais um casamento falido.
-Eu também não quero isso para nós.
-O que faremos então?
-Não sei, mas acho que dar um tempo não é a resposta. Nunca foi!
Foi isso que você quis dizer com: "isso definitivamente não está dando certo"?
-Não. Eu quis dizer que...- Fátima parou de falar repentinamente como se tivesse lembrado de alguma coisa.
-O que, Fá?
-William, eu acabei de perceber que a gente não se entende.
-Bom, acho que isso ficou bem claro com essas nossas discussões intermináveis.
-Não é isso. Quero dizer que o que a gente fala um para o outro nem sempre é entendido como deveria ser. E talvez seja isso que esteja faltando em nosso relacionamento. Mais conversa, mais franqueza.
-Nossas conversas ultimamente não têm terminado bem.
-Pois é.
-Fá, quando eu insisti em que morássemos juntos eu te prometi que faria de você a mulher mais feliz do mundo. Eu não tenho conseguido isso e eu sinto muito. - diz olhando nos olhos dela.
-Eu sinto muito por tudo isso também.
-Nosso amor é mais forte que tudo isso, não é? - diz pegando as mãos dela.
-Muito mais forte. Vamos fazer dar certo!
-Juntos.
-Juntos. - Repete ela.
William envolveu Fátima em seu braços e o encontro dos lábios dos dois foi a coisa mais pura que aquela praia presenciara aquela noite.
-Me desculpa por ter sido uma vaca com você na frente dos nossos colegas.
-Uma vaca? - ri William.
-Coisas da Vania. Ela diz que eu ajo como uma verdadeira vaca quando estou irritada.
-Essa é boa. Bom, como não gostaria de ser um animal de chifres, eu te peço desculpas por ter sido um...
-Cavalo? - sugere ela rindo.
-Cavalo. Me desculpe por ter sido um cavalo e não ter te tratado do jeito que você merece.
-Está tudo bem.
-Promete que nunca mais vai dormir longe de mim?
-Prometo!
-E se nunca fossemos dormir brigados? E se sempre que alguma coisa nos incomodasse fôssemos francos um com o outro? - pergunta William.
-Acho que poderia dar certo.
-É tão bom te ter nos meus braços.
-É muito bom estar no meu lugar novamente. - diz fechando os olhos e encostando a cabeça no peito dele.
*********
Flávia escutava a história com atenção. Fátima nunca tinha lhe contado esses detalhes do início de seu casamento.
-Fá, mas tudo isso é diferente. Você e o William estavam no começo. Eu o João já temos 17 anos de casamento.
-Eu sei minha amiga. Quis te contar isso para você ver que: Se você ainda ama o João, e se ele ainda te ama, o que eu acho que sim...Vocês podem salvar o casamento juntos.
-É o que eu mais quero.
-Você quer que eu durma aqui essa noite com você.
-Não precisa. Eu já estou bem melhor. O William deve estar te esperando em casa.
-Tenho certeza que ele não se importaria...
-Não, sério, eu estou bem.
-Bom, então eu já vou indo. Qualquer coisa você me liga?
-Pode deixar.
-A qualquer hora!
-Obrigada, minha amiga. Te amo.- diz abraçando Fátima.
-Também te amo. Fica bem.
Como as duas moravam no mesmo condomínio não demorou muito e Fátima já estava em casa. Ela encontrou William tomando sorvete na cozinha. Ele estava em pé próximo ao balcão quando ela entrou.
-Ainda acordado?
-O João me ligou e ficamos conversando por um bom tempo. Depois eu resolvi te esperar acordado. Como a Flavinha está?
-Chorando muito. E o João?
-Bom, ele está um pouco perdido. Disse que nunca esperou que ela o mandasse sair de casa.
-Eu acho que isso tudo foi um grande mal entendido. Logo logo eles se acertam.
-Pois é, disse isso para ele.
-Hum. E enquanto me esperava atacou o pobre pote de sorvete, hein?!
-Ele me seduziu. - diz encarando o pote de sorvete.
-Sei. - diz Fátima rindo. - Pois saiba, senhor pote de sorvete que esse homem já tem dona. E ela o ama muito, muito, muito. - diz abraçando William pela cintura e depois beijando-o.
-Uau, qual o motivo dessa declaração?
-Nada. Eu só queria dizer que te amo e que você me faz a mulher mais feliz desse mundo.
-Você sabe que me deixa emocionado quando fala assim, não é? - Diz dando um rápido selinho nos lábios dela. Eu que sou o homem mais feliz do mundo por te ter ai meu lado. E se você quer saber...Você é mais gostosa que qualquer sorvete! - Diz sussurrando no ouvido dela.
-Nossa, fico muito feliz em saber disso. Mas você ainda está com gosto de baunilha.
-Acho que temos que resolver esse problema, não é?
-Ah, temos sim. -diz entrelaçando as mãos na nuca dele.