Fanfics Brasil - 20h12 Se eu ficar - Finalizada {Adaptação Ponny}

Fanfic: Se eu ficar - Finalizada {Adaptação Ponny} | Tema: Rebelde, Ponny.


Capítulo: 20h12

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Observo-os desaparecerem no corredor. Queria segui-los, mas estou com os pés grudados no linóleo do piso, incapaz de mover as minhas pernas fantasmas. Só depois que os dois desaparecem virando a parede do corredor é que me levanto e os sigo, mas eles já entraram no elevador.


A esta altura, já descobri que não tenho nenhum poder sobrenatural. Não posso atravessar as paredes nem mergulhar pelas escadarias. Só posso fazer as coisas que eu faria na vida real, salvo pelo fato de que o que eu faço no meu mundo é invisível para qualquer outra pessoa.


Pelo menos é o que parece porque ninguém me olha quando abro as portas nem quando aperto o botão do elevador. Posso tocar as coisas e até mexer nas maçanetas das portas, mas não posso sentir nada nem ninguém. É como se eu estivesse vendo tudo de um aquário, o que não faz sentido para mim, mas nada do que aconteceu hoje faz muito sentido.


Suponho que Mai e Alfonso tenham ido para a sala de espera para se unirem aos meus familiares na vigília, mas quando chego, vejo que nem eles, nem minha família estão lá. Há um amontoado de casacos e suéteres nas cadeiras e reconheço a jaqueta laranja fluorescente da minha prima Heather. Ela mora no interior e gosta de fazer trilha, e alega que as cores neon são necessárias como medida de segurança, para evitar que os caçadores bêbados a confundam com um urso.


Olho de novo para o relógio pendurado na parede. Deve estar perto da hora do jantar.


Caminho pelos corredores até chegar à lanchonete, que tem o mesmo cheiro de fritura e de legumes cozidos que qualquer outra lanchonete tem. Deixando de lado o cheiro enjoativo, vejo que a lanchonete está cheia. As mesas estão abarrotadas de médicos, enfermeiras e de residentes que parecem bem aflitos em seus aventais brancos e estetoscópios, estes últimos tão brilhantes que se parecem com brinquedos. Todos comem pizza e purê de batatas congeladas. Demoro um tempo para localizar a minha família que está espremida ao redor de uma mesa. Vovó conversa com Heather. Vovô está completamente absorto em seu sanduíche de peru.


Tia Kate e tia Diane estão num canto, sussurrando uma com a outra.


— Alguns cortes e ferimentos. Mas ele já foi liberado do hospital — diz tia Kate, e por um momento, imagino que ela esteja falando de Teddy e fico tão entusiasmada que quase choro. Mas então ouço ela dizer que não havia álcool no sangue dele, que o nosso carro saiu da pista e entrou na frente do caminhão desse tal cara chamado sr. Dunlap, que disse que não teve tempo de parar e então percebo que não é sobre Teddy que elas estão falando, mas sim sobre o outro motorista.


— A polícia disse que provavelmente tenha sido a neve ou algum cervo que entrou na pista e fez o carro deles entrar na contramão — prossegue a tia Kate. — E parece que esse tipo de acidente é bastante comum. Com uma das partes nada de muito sério acontece e a outra sofre ferimentos catastróficos — conclui ela.


Não sei se eu diria que “nada de muito sério” aconteceu com o sr. Dunlap, não importa qual seja a gravidade dos seu ferimentos. Penso em como deve ter sido para ele acordar numa terça-feira de manhã, pegar o caminhão para ir trabalhar em algum moinho ou talvez para abastecer o estoque de algum supermercado ou ainda simplesmente para ir a uma lanchonete pedir ovos fritos para o café da manhã. O sr. Dunlap, que provavelmente era uma pessoa feliz ou talvez tivesse uma vida muito difícil, um homem casado, com filhos ou um solteirão. Mas seja lá qual fosse a sua situação ou quem ele fosse naquela manhã, o sr. Dunlap não era mais a mesma pessoa. Sua vida também mudou radicalmente. Se o que a minha tia disse for verdade, e se ele de fato não foi o culpado pela batida, então o sr. Dunlap foi o que Mai chamaria de “um pobre coitado” que estava no lugar errado e na hora errada. E por causa da má sorte do sr. Dunlap e do seu caminhão, que estava na direção leste da Route 27 naquela manhã, duas crianças estão sem os seus pais agora e pelo menos uma delas encontra-se em estado grave.


Como é que se pode conviver com isso? Por um momento, tenho a ilusão de que vou melhorar e sair daqui e que irei até a casa do sr. Dunlap, para aliviar-lhe o peso dos ombros, para assegurar-lhe de que ele não foi o culpado. Talvez nós possamos até nos tornar amigos. 


É claro que provavelmente as coisas não funcionariam assim. Seria uma ocasião estranha e triste. Além disso, para começo de conversa, ainda não tenho a menor ideia do que vou decidir, nem como poderei determinar se fico ou não. Até que eu consiga descobrir o que fazer, tenho de deixar as coisas nas mãos do destino, ou dos médicos, ou de quem quer que o faça quando a pessoa que deve decidir está confusa demais até para escolher entre o elevador ou as escadas.


E preciso do Alfonso. Vasculho a lanchonete com o olhar pela última vez, à procura dele e de Mai, mas eles não estão aqui, então volto para as escadas e subo em direção à UTI. 


Eu os encontro escondidos na ala de traumatologia, a muitos andares de distância da UTI.


Estão tentando agir com naturalidade enquanto testam as diversas portas das divisões que armazenam os suprimentos. Quando finalmente conseguem destrancar uma delas, entram.


Tateiam em meio à escuridão à procura de um interruptor de luz. Odeio ter de cortar o barato deles, mas o interruptor fica bem no corredor, onde os dois estavam.


— Não sei não se essas coisas funcionam fora dos filmes — Mai diz para Alfonso enquanto corre as mãos pela parede.


— Toda ficção é baseada na realidade — afirma ele.


— Você não se parece muito com um médico — opina Mai.


— Pretendo me passar por um atendente de plantão. Ou talvez por um zelador.


— E por que um zelador entraria na UTI? — indaga Mai. Ela é o tipo de pessoa extremamente apegada aos detalhes.


— Alguma lâmpada quebrada, talvez. Não sei. Mas é assim que vamos conseguir.


— Ainda não consigo entender por que você simplesmente não vai e conversa com a família dela — pontua Mai, pragmática como sempre. — Tenho certeza de que os avós dela explicariam para os médicos e eles conseguiriam fazer você entrar lá para vê-la.


Alfonso balança a cabeça.


— Sabe, quando a enfermeira ameaçou chamar o segurança, o primeiro pensamento que me veio foi o de chamar os pais da Anne pra resolver isso. — Alfonso faz uma pausa e respira fundo algumas vezes. — Toda hora esse pensamento me vem à cabeça, e sempre vem como se fosse a primeira vez — explica ele com a voz rouca.


— Eu sei — diz Mai bem baixinho.


— De qualquer modo — continuou Alfonso, retomando a sua procura pelo interruptor de luz —, não posso recorrer aos avós dela. Não posso colocar ainda mais peso sobre as costas deles. Já estão carregando demais. Isso é uma coisa que tenho de resolver sozinho.


Na real, tenho certeza de que meus avós se sentiriam felizes por ajudar o Alfonso. Eles se encontraram algumas vezes, e gostaram muito dele. No Natal, a vovó sempre se preocupa em preparar um doce feito com calda de chocolate e xarope de ácer porque uma vez Alfonso mencionou que gostava muito desse doce.


Mas sei que, às vezes, Alfonso precisa fazer as coisas de um jeito dramático. Ele adora tomar grandes atitudes, como economizar a gorjeta das entregas de pizzas de duas semanas só para me levar para assistir ao concerto de Yo-Yo Ma (em vez de simplesmente me convidar para um encontro casual), e como decorar o peitoril da minha janela com flores todos os dias durante uma semana inteira, quando eu peguei catapora.


Agora, vejo que ele está concentrado na nova tarefa que tem pela frente. Não sei ao certo o que tem em mente, mas seja lá qual for o plano, sinto-me grata, pois foi isso que o tirou do choque emocional em que o vi naquele corredor, do lado de fora da UTI. Já vi o Alfonso nesse estado outras vezes, quando estava escrevendo alguma música nova ou tentando me convencer a fazer alguma coisa que eu não queria — como acampar com ele — e nada, nada mesmo, nem um meteorito atingindo a Terra, nem mesmo uma namorada na UTI seria capaz de dissuadi-lo.


E além do mais, é justamente o fato de a namorada estar na UTI que se faz necessária a artimanha de Alfonso. E pelo que sei, esse é o truque mais antigo que existe, inspirado naquele filme O fugitivo, ao qual mamãe e eu assistimos recentemente na TNT. Tenho lá as minhas dúvidas se isso vai dar certo. E Mai também.


— Você não acha que aquela enfermeira pode reconhecer você? — pergunta ela. — Você berrou com ela.


— Ela não vai me reconhecer se não me vir. Agora vejo por que você e a Anne são tão parecidas. Vocês parecem duas Cassandras.


Alfonso nunca conheceu a sra. Perroni, então ele não sabe que ao insinuar que Mai seja pessimista, está comprando uma briga. Mai olha para ele com cara feia, mas depois vejo que ela entrega os pontos.


— Talvez esse seu plano maluco pudesse até funcionar se conseguíssemos ver o que estamos fazendo.


Ela remexe a bolsa e tira o celular que a mãe lhe deu e obriga que ela o carregue para onde for, desde os dez anos — rastreador de crianças, como Mai chama o aparelho —, e da tela acende um pequeno quadradinho de luz em meio à escuridão.


— Ah, agora vejo a garota brilhante de quem Anne gosta tanto de se gabar — diz Alfonso. Ele também liga o seu celular e agora o espaço fica mais iluminado, embora por uma luz bem fraca.


Infelizmente, a luz mostra que os dois estão num cubículo cheio de vassouras, um balde e dois esfregões, mas não há nada parecido com o que Alfonso estava esperando. Se eu pudesse, os avisaria de que o hospital tem vestiários onde médicos e enfermeiras guardam as roupas que usam quando vêm da rua e onde eles podem se trocar, vestindo aqueles jalecos e uniformes. A única vestimenta genérica e própria de um hospital que está disponível são aquelas camisolas transparentes e constrangedoras que eles mandam os pacientes vestirem.


Talvez Alfonso pudesse vestir uma dessas e cruzar os corredores numa cadeira de rodas, sem que ninguém percebesse, mas um disfarce como esse jamais o ajudaria a entrar na UTI.


— Merda! — exclama ele.


— Vamos continuar tentando — diz Mai, que de repente assume um papel semelhante ao de uma animadora de torcida. — Esse hospital tem mais ou menos uns dez andares. Tenho certeza de que deve haver por aqui outros armários destrancados.


Alfonso sentou-se no chão.


— Não. Você tem razão. Isso é ridículo. Precisamos bolar uma coisa melhor.


— Você pode fingir uma overdose ou alguma coisa do tipo, aí eles vão te mandar pra UTI


— sugere Mai.


— Estamos em Portland. O cara que chegar aqui com overdose e for levado para a sala de emergência é um cara de sorte — afirma Alfonso. — Não, pensei em algo que distraia as pessoas, sabe? Tipo soar o alarme de incêndio e aí todos os enfermeiros sairiam correndo.


— Acha mesmo que extintores de incêndio e enfermeiros em pânico vão fazer bem pra Anne? — questiona Mai.


— Bem, não precisa ser exatamente isso, mas alguma coisa que desviasse a atenção deles por um segundo para eu conseguir entrar de fininho.


— Logo vão descobrir e te expulsam de lá.


— Não ligo — rebate Alfonso. — Tudo o que preciso é de um segundo.


— Por quê? Digo, o que você vai conseguir fazer em um segundo?


Alfonso faz uma pausa. Seus olhos, que normalmente são uma mistura de cinza, castanho e verde, de repente escurecem.


— Mostrar a ela que estou aqui. Que ainda há alguém aqui.


Depois disso, Mai não faz mais nenhuma pergunta. Os dois ficam sentados, em silêncio, cada um perdido em seus próprios pensamentos, o que me faz lembrar de como Alfonso e eu podemos ficar juntos, em silêncio, lado a lado, ainda que estejamos fazendo coisas diferentes.


Agora percebo que Alfonso e Mai são amigos, amigos de verdade. Não importa o que aconteça agora. Pelo menos isso, eu consegui.


Depois de cinco minutos, Alfonso bate na própria testa.


— Claro! — exclama ele.


— O quê?


— Hora de ativar o Bat sinal.


— Ãh?


— Venha. Vou te mostrar.


Quando comecei a tocar violoncelo, papai ainda tocava bateria na sua banda, mas o ritmo começou a diminuir alguns anos depois que Teddy nasceu. Porém, desde o começo, pude ver que havia algo de diferente em tocar o meu tipo de música, algo além da surpresa dos meus pais ao constatarem o meu gosto pela música clássica. Minha música era solitária. O que quero dizer é que o papai podia martelar a bateria dele por algumas horas, sozinho, ou escrever as suas canções também sozinho, à mesa da cozinha, produzindo notas estridentes no seu violão gasto, mas ele sempre dizia que as músicas só ficavam prontas mesmo depois que eram tocadas. E era isso que tornava todo o processo tão interessante.


Eu tocava, na maior parte do tempo era sozinha, comigo mesma no meu quarto. Mesmo quando eu ensaiava com os universitários que me deram aula, exceto durante as lições, geralmente eu tocava solos. E quando participava de um concerto ou de um recital, era sozinha, no palco com o meu violoncelo e a plateia. E, diferentemente dos shows do papai em que os fãs entusiasmados se jogavam no placo e depois eram arremessados em meio à multidão, havia sempre uma barreira entre a mim e a plateia. Depois de um tempo, tocar assim se tornou algo solitário. E meio chato também.


Então, durante a primavera do ano em que eu estava cursando a oitava série, decidi parar.


Planejei abandonar aos poucos, começando a diminuir o ritmo das minhas práticas obsessivas e deixando de participar de recitais. Imaginei que se parasse de tocar aos poucos, quando eu chegasse ao Ensino Médio, no outono seguinte, poderia começar tudo do zero, sem aquele rótulo de “violoncelista”. E a partir de então, talvez eu pudesse escolher um outro instrumento, violão ou baixo, ou quem sabe até a bateria. Além disso, como mamãe estava ocupada demais com Teddy para notar a duração dos meus treinos e papai, abarrotado com seus planos de aula e provas, imaginei que ninguém nem sequer perceberia que eu tinha parado de tocar até que tudo já estivesse resolvido. Pelo menos foram essas as minhas conclusões. Mas a verdade é que eu não conseguia parar de tocar o violoncelo, assim como não conseguia deixar de respirar.


Acho que eu poderia ter parado de verdade, não fosse por Mai. Um dia, à tarde, eu a convidei para ir ao centro da cidade comigo, depois da escola.


— Mas nem estamos no fim de semana. Você não tem que treinar? — perguntou ela enquanto abria o armário.


— Posso pular o treino de hoje — respondi, fingindo que estava procurando o meu livro de Ciências.


— Será que sequestraram a minha amiga de verdade e a que está aqui na minha frente é outra Anne? Primeiro, parou com os recitais. E agora está matando os treinos. O que está acontecendo?


— Não sei — respondi, tamborilando os dedos na tranca do armário. — Estou pensando em tentar tocar outro instrumento. Bateria, quem sabe. A do meu pai está lá no porão, pegando poeira.


— Ah, fala sério! Você tocando bateria. Muito interessante — disse Mai com um risinho.


— É sério.


Mai olhou para mim, boquiaberta, como se eu tivesse acabado de contar que queria comer lesmas fritas na manteiga no jantar.


— Você não pode parar de tocar violoncelo — disse ela depois de um momento de silêncio assombroso.


— Por que não?


Com uma expressão aparentemente triste, ela tentou explicar:


— Não sei dizer, mas é como se o seu violoncelo fosse uma parte de você. Não consigo imaginar você tocando outro instrumento.


— Ah, besteira. Não consigo nem tocar na banda da escola. E quem é que toca violoncelo?


Um bando de gente velha. É um instrumento ridículo pra uma garota tocar, estúpido. E além disso, quero ter mais tempo livre, fazer alguma coisa para me divertir mais...


— Que tipo de coisa? — desafiou-me Mai.


— Ah, sabe... Ir ao shopping, por exemplo... Sair com você...


— Ah, sem essa! — retrucou Mai. — Você odeia shopping. E sempre sai comigo. Mas tudo bem, pode matar o treino de hoje. Quero te mostrar uma coisa. — Mai me levou até a casa dela, colocou o CD Nirvana MTV unplugged e pôs para tocar para mim a música Something in the way.


— Escute — disse ela. — Dois guitarristas, um baterista e uma violoncelista. O nome dela é Lori Goldston e aposto que quando era jovem ela treinava duas horas por dia igualzinho a alguém que eu conheço, porque se você quer tocar na filarmônica ou com o Nirvana, é isso que você tem de fazer. E acho que ninguém nunca ousou chamá-la de estúpida.


Levei o CD para casa e escutei várias vezes na semana seguinte, refletindo sobre o que Mai havia dito. Peguei o meu violoncelo algumas vezes e toquei, acompanhando. Era um tipo de música diferente, que eu nunca tinha ouvido antes, desafiadora e estranhamente revigorante.


Decidi que tocaria Something in the way para Mai na semana seguinte, quando ela viesse jantar aqui em casa.


Mas antes que eu tivesse a oportunidade, durante o jantar, Mai, com a maior naturalidade, disse para os meus pais que achava que eu deveria participar da colônia de férias. 


— O quê? Está tentando me converter pra sua colônia Torah? — questionei.


— Não, mas para uma colônia de férias musical. — Ela mostrou um folder do Franklin Valley Conservatory, um programa de verão da Colúmbia Britânica. — É um programa para músicos sérios. Você precisa mandar uma gravação sua tocando para entrar, sei porque liguei lá. E as inscrições vão até primeiro de maio, então ainda dá tempo — acrescentou Mai.


Em seguida, ela virou e me encarou de frente, como se estivesse me desafiando a ficar com raiva dela por ter se intrometido nos meus planos.


Não fiquei brava, nem com raiva. Meu coração batia acelerado, como se a Mai tivesse acabado de anunciar que a minha família tinha ganhado na loteria e estivesse prestes a revelar o montante. Olhei bem para ela, seu olhar nervoso traía o sorriso estampado em seu rosto, que dizia: “Está com vontade de me matar, não é?”, e fiquei surpresa, cheia de gratidão por ser amiga de alguém que tantas vezes parecia me compreender melhor do que eu mesma. Papai perguntou se eu queria ir, e quando retruquei por causa do dinheiro, ele disse que não haveria problema. Se eu queria ir? Claro que queria. Mais do que qualquer outra coisa.


Três meses depois, quando papai me deixou em um canto solitário da Victoria Island, fiquei em dúvida. O lugar se parecia com uma daquelas colônias típicas de verão, com cabanas de madeira em meio à floresta e uma fileira de caiaques espalhados pela praia. Havia mais ou menos umas cinquenta crianças que, a julgar pela maneira como se abraçavam e riam umas para as outras, se conheciam há muitos anos. E quanto a mim, eu não conhecia ninguém. Nas primeiras seis horas, ninguém conversou comigo, exceto a assistente de diretoria do acampamento, que me acomodou numa cabana, me mostrou um beliche e apontou para o restaurante onde, naquela noite, me ofereceram um prato de alguma coisa que parecia ser bolo de carne.


Fiquei fitando meu prato com certa tristeza, depois olhei para a noite sombria e cinzenta. Já estava com saudade dos meus pais, da Mai e especialmente do Teddy. Ele estava naquela fase legal, querendo experimentar coisas novas, perguntando a toda hora: “O que é isso?” e falando coisas engraçadas. Um dia antes de eu partir, ele olhou para mim e disse que estava “comendo de sede” e quase morri de dar risada. Com saudades da minha casa, suspirei e revirei o amontoado de carne que estava no meu prato.


— Não se preocupe, não vai chover todo dia. Amanhã é outro dia.


Ergui os olhos. Lá estava um garoto travesso que não devia ter mais do que dez anos. Tinha cabelo loiro, um corte tipo escovinha e uma constelação de sardas no nariz.


— Eu sei, embora estivesse fazendo sol hoje de manhã lá onde moro. Sou do Noroeste. A minha preocupação é com o bolo de carne.


Ele sorriu.


— Ah, isso não muda. Mas o sanduíche com pasta de amendoim é muito bom — disse ele, gesticulando em direção a uma mesa onde havia meia dúzia de crianças preparando sanduíches. — Peter. Trombone. Ontário — disse ele.


E pelo que pude descobrir depois, esta era a saudação padrão da colônia Franklin.


— Ah, olá! Sou Anne. Violoncelo. Oregon, acho.


Peter me contou que tinha treze anos e que aquele era o segundo verão dele na colônia.


Quase todos começaram quando tinham doze anos e é por isso que todo mundo se conhecia.


Entre os cinquenta estudantes, metade deles era do jazz, a outra metade da música clássica, então o grupo era pequeno. Havia apenas mais dois violoncelistas, sendo um deles um cara ruivo, alto e magricelo que se chamava Simon e para quem Peter acenou.


— Você vai participar do campeonato de violoncelo? — perguntou-me Simon logo que Peter me apresentou. Anne. Violoncelo. Oregon.


Simon era Simon. Violoncelo. Leicester, que era uma cidade na Inglaterra, o que significava que Simon fazia parte de um grupo internacional.


— Acho que não. Nem sei o que é esse campeonato — respondi.


— Bom, você sabe como nos organizamos em orquestra para a apresentação da sinfonia final? — perguntou Peter.


Balancei a cabeça querendo dizer que sim, embora eu tivesse uma vaga ideia. O papai tinha passado a primavera lendo informações sobre a colônia, mas a única coisa que importava para mim é que eu ficaria com outros musicistas. Não prestei muita atenção aos detalhes.


— É a sinfonia de encerramento do verão. Pessoas de diferentes lugares vêm para nos assistir. É um evento grande. E nós, os músicos mais novos, tocamos meio como se fôssemos “os mascotes do showzinho de abertura” — explicou Simon. — Mas um dos músicos da colônia é escolhido para tocar com a orquestra profissional e apresenta um solo. Ano passado fiquei muito perto de ganhar, mas perdi para um flautista. Esta é a minha segunda e última chance antes de me formar. Já faz um tempo que ninguém que toca instrumento de cordas ganha e a Tracy, que é uma das integrantes do nosso pequeno trio, não vai tentar. Ela toca mais por hobby. Ela é boa, mas não é séria, não toca pra valer. Ouvi dizer que você leva o negócio a sério.


Sério que eu levo a sério esse negócio de tocar? Acho que se eu fosse assim não teria quase desistido.


— Quem foi que te falou isso? — perguntei.


— Os professores escutam todas as gravações que os inscritos enviam e o boato começou a circular. Parece que a sua gravação era muito boa. Não é muito comum eles aceitarem alguém do segundo ano, então eu estava esperando por alguém bom para competir, para melhorar o meu nível.


— Ei, ei! Peraí! Dê uma chance para a garota — disse Peter. — Ela acabou de experimentar o bolo de carne.


Simon torceu o nariz.


— Desculpe, mas, se é sobre escolhas de audição que você quer falar, podemos conversar — disse ele e, em seguida, saiu andando em direção ao quiosque de sorvete. 


— Perdoe o Simon. Já faz uns anos que não aparece uma violoncelista de qualidade aqui, então ele está animado com a possibilidade de sangue novo. Mas só pelo desafio. Ele é gay, mas é difícil pra ele admitir, porque é inglês.


— Ah, tá. Mas o que foi que ele disse? Tipo, parece que ele quer disputar a competição comigo.


— Claro que ele quer e é essa a graça do negócio. É por isso que estamos aqui em uma colônia de férias no meio de uma floresta tropical — disse ele, gesticulando em direção à paisagem. — Por isso e por causa da comida maravilhosa que eles têm aqui. — Peter olhou para mim. — Não é por isso que você está aqui?


Dei de ombros.


— Sei lá. Nunca toquei com tantas pessoas. Pelo menos não tão sérias.


Peter coçou a orelha.


— Sério? Você disse que é de Oregon. Já participou do Projeto de Violoncelo de Portland?


— Do quê?


— É uma cooperativa vanguardista de violoncelo. Eles fazem um trabalho bem legal.


— Não moro em Portland — murmurei, sentindo-me constrangida por nunca ter ouvido falar de nenhum projeto de violoncelo.


— Mas então, com quem é que você toca?


— Com outras pessoas. Na maioria das vezes com universitários.


— Não toca numa orquestra? Nenhum conjunto de música de câmara? Um quarteto de cordas?


Balanço a cabeça, negando e lembrando de uma certa vez em que uma das minhas professoras me convidou para tocar num quarteto. Recusei o convite porque tocar com ela era uma coisa; tocar com um grupo de pessoas totalmente estranhas, era outra. Sempre acreditei que o violoncelo era um instrumento solitário, mas agora começava a me questionar que talvez fosse eu a solitária.


— Hum. E como é que você consegue ser boa? — indagou Peter. — Não quero bancar o sem-noção, mas não é assim que a gente fica bom? É como jogar tênis. Se você jogar com alguém ruim, vai acabar perdendo, errando tacadas ou perdendo saques, mas se jogar com um bom adversário, começa a dominar o jogo e logo começa e executar tacadas surpreendentes.


— Eu não teria como saber disso — retruquei para Peter, me sentindo como a pessoa mais chata e isolada do mundo. — Eu não jogo tênis.


Os dias seguintes passaram como uma névoa obscura. Não fazia a menor ideia do porquê eles colocam o caiaque do lado de fora. Não sobrava nem um tempo para a diversão. Pelo menos não para diversões daquele tipo. Os dias eram extremamente exaustivos. Acordávamos às seis e meia, tomávamos café às sete, três horas de aula particular pela manhã e pela tarde e ensaio com a orquestra antes do jantar.


Eu nunca tinha tocado com mais de cinco músicos antes, então os primeiros dias na orquestra foram terríveis. O diretor de música da colônia, e que também era o maestro, se esforçou muito para nos organizar e o máximo que conseguiu foi nos fazer tocar os movimentos mais básicos por um curto espaço de tempo. No terceiro dia, ele tentou uma das sinfonias de Brahms. Na primeira vez que tocamos foi horrível. Os instrumentos não se harmonizavam, mas sim colidiam, como se fossem pedras em contato com um cortador de grama.


— Horrível! — gritou o maestro. — Como é que vocês esperam tocar numa orquestra profissional se não conseguem nem manter o tempo numa cantiga? Vamos, tentem de novo! 


Depois de mais ou menos uma semana, as coisas começaram a funcionar e eu a sentir o gostinho de fazer parte de uma engrenagem. Aquilo me fez ouvir o violoncelo de um jeito diferente, me fez ver como as notas baixas funcionavam no concerto com as notas mais altas da viola de arco e como o violoncelo fornecia uma base para os instrumentos de sopro que ficavam do outro lado da orquestra. E, embora seja normal pensar que o fato de estar num grupo nos faça sentir mais tranquilos, sem ter aquela preocupação excessiva de como você está tocando já que o seu instrumento está se fundindo com os outros, acontece justamente o contrário.


Sentei atrás de uma violista de dezessete anos que se chamava Elizabeth. Ela era uma das musicistas mais perfeitas da colônia — fora aceita no Royal Conservatory of Music em Toronto — e também era muito bonita, parecia uma modelo: alta, majestosa, pele cor de café e bochechas que pareciam esculpidas no gelo. Eu teria cedido à tentação de odiá-la não fosse pelo fato de ela tocar muito bem. Se o músico não for cuidadoso, a viola pode emitir um som terrivelmente estridente, mesmo quando nas mãos dos instrumentistas mais experientes. Mas nas mãos de Elizabeth o som saía limpo, puro e suave. Ao ouvi-la tocar e observá-la o quanto se perdia na música, eu sentia vontade de tocar exatamente igual. Ou até melhor. Não que eu quisesse simplesmente ser melhor do que ela, mas sim porque sentia que era o meu dever, que devia isso a Elizabeth e ao grupo, a mim mesma. Tinha de tocar no mesmo nível que ela.


— Está muito bonito — disse Simon quando o nosso tempo na colônia já estava no final, ao me ouvir treinando um movimento do Concerto nº 2 para violoncelo de Haydn, uma peça que tinha me dado muito trabalho quando a toquei pela primeira vez na última primavera. — Você vai tocá-la no campeonato do concerto?


Assenti e não consegui esconder um sorriso. Depois do jantar e antes que as luzes se apagassem, Simon e eu levávamos os nossos violoncelos para fora e fazíamos uns concertos improvisados no crepúsculo. Nos revezávamos, desafiando um ao outro para ver quem se saía melhor. Estávamos sempre competindo, sempre tentando observar quem conseguia tocar melhor, mais rápido e de cabeça. Foi muito divertido e talvez tenha sido essa a razão pela qual eu me sentia tão bem em relação a Haydn.


— Ora, vejo que alguém aqui está segura demais. Acha que vai me vencer? — perguntou


Simon.


— No futebol, sem a menor dúvida — brinquei.


Simon contou que ele era a ovelha negra da família não pelo fato de ser gay, nem de ser músico, mas porque era um perna de pau.


Ele fingiu que acertei um tiro no seu peito e depois sorriu. 


— Percebe como coisas incríveis acontecem depois que você para de se esconder detrás desse monstrinho gigante? — perguntou ele, apontando para o meu violoncelo. Balancei a cabeça, fazendo que sim. Simon sorriu. — Mas, olha, nada de ficar aí se achando. Precisa me ouvir tocando Mozart. Parece um coral de anjos cantando.


Nem ele, nem eu vencemos o solo daquele ano. A vencedora foi Elizabeth e, embora tenha levado mais quatro anos, por fim acabei vencendo o solo de uma das competições.


_________________________________________________________.


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Autor(a): LollaVondy

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Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 6



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  • byaoliveyra1 Postado em 03/06/2015 - 23:09:38

    Continua por favor estou amando a fanfic e queria tirar uma dúvida a prévia que você escreveu o capítulo na verdade que está assim prévia ( pra onde ela foi) ponny faz parte da fanfic se eu ficar? Por favor me responde e continuaaaaaa não abandona a fanfic please

  • dudanunes Postado em 25/05/2015 - 15:24:02

    Maissss

  • Evelin✩ Postado em 25/05/2015 - 10:52:28

    Posta Mais <3 PFT *-*

  • dudanunes Postado em 25/05/2015 - 10:20:23

    Posta mais <3

  • Site Una Fénix Postado em 22/05/2015 - 12:34:42

    To lendo <3 <3 . posta mais <3

  • Mikaella Borges Postado em 22/05/2015 - 11:54:57

    Continua pleas, to amando


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