Fanfic: As Crônicas de Nárnia - O Sobrinho do Mago
O que aqui se conta aconteceu há muitos anos, quando vovô ainda era menino. É uma
história da maior importância, pois explica como começaram as idas e vindas entre o
nosso mundo e a terra de Nárnia.Naqueles tempos, Sherlock Holmes ainda vivia em
Londres e as escolas eram ainda piores que as de hoje. Mas os doces e os salgadinhos
eram muito melhores e mais baratos; só não conto para não dar água na boca de ninguém.
Naquela época vivia em Londres uma garota que se chamava Polly. Morava numa
daquelas casas que ficam coladas umas nas outras, formando uma enorme fileira.
Uma bela manhã ela estava no quintal quando viu surgir por cima do muro vizinho
o rosto de um garoto. Polly ficou muito espantada, pois até então não havia crianças
naquela casa, apenas os irmãos André e Letícia Ketterley, dois solteirões que moravam
juntos.
Por isso mesmo, arregalou os olhos, muito curiosa. O rosto do menino estava todo
encardido. Não poderia estar mais encardido, mesmo que ele tivesse esfregado as mãos na
terra, depois chorado muito e então enxugado as lágrimas com as mãos sujas. Aliás, era
mais ou menos isso que havia acontecido.
— Oi — disse Polly.
— Oi — respondeu o menino. — Qual é o seu nome?
— Polly. E o seu? — Digory.
— Puxa, que nome sem graça! — disse ela. — Acho Polly muito mais sem graça.
— Não é, não. — É, sim.
— Bom, pelo menos eu lavo o rosto — disse Polly. — É o que você deveria fazer,
principalmente depois... — e parou. Ia dizer: “Principalmente depois de ter chorado por
aí”, mas achou que isso não seria muito delicado.
— Está bem, chorei mesmo — disse Digory, bem alto. Sentia-se tão infeliz que
nem se incomodava que soubessem que andara chorando. — Você também choraria, se
tivesse vivido a vida inteira no campo, e tivesse tido um pônei, e um rio no fundo do
quintal, e de repente viesse morar nesta droga de buraco...
— Londres não é um buraco — reclamou Polly, indignada. Mas o menino estava
tão aborrecido que nem prestou atenção, continuando a falar:
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— ...e se seu pai estivesse na Índia e você tivesse de viver com uma tia e um tio
louco (quem ia gostar?), e isso porque eles têm de tomar conta de sua mãe... e se sua mãe
estivesse doente e fosse... e fosse... morrer...
Aí o rosto de Digory ficou esquisito, como se ele estivesse fazendo força para não
chorar. Polly falou com doçura:
— Desculpe. Eu não sabia de nada. — E, como não tinha mais o que dizer, ou
querendo animar o garoto, perguntou:
— Seu tio é mesmo doido?
— Ou é doido ou então há um mistério nisso. Ele tem um estúdio no último andar e
tia Leta nunca me deixa ir lá. Isso não me cheira bem. Tem mais: sempre que ele quer me
falar alguma coisa na hora do jantar, ela não deixa, dizendo: “Não aborreça o menino,
André.” Ou então: “Digory não está nada interessado nisso.” Ou: “Digory, acho melhor
você ir brincar no quintal.”
— Mas que tipo de coisas ele tenta lhe dizer? — perguntou a menina.
— Não tenho a menor idéia. Ela nunca deixa ele continuar. Tem outra coisa: ontem
à noite, eu estava passando perto da escada do sótão, indo para a cama, quando ouvi um
grito.
— Quem sabe ele não tem uma mulher louca que ele esconde lá dentro? — sugeriu
a menina. — já pensei nisso.
— Quem sabe ele faz dinheiro falso...
— Também pode ter sido um pirata e agora anda escondido dos antigos
companheiros. — Sensacional! — exclamou Polly. — Jamais podia imaginar que sua
casa fosse tão interessante.
— Você diz isso porque nunca dormiu lá. Não é nada agradável acordar no meio
da noite ouvindo as passadas do tio André no corredor, vindo na direção do seu quarto. E
os olhos dele são de dar medo!
Foi assim que Polly e Digory se conheceram. Era no início das férias de verão e,
como nenhum deles iria viajar para a praia, passaram a encontrar-se quase todos os dias.
As aventuras começaram principalmente por um motivo: era um daqueles verões
muito úmidos e quentes, de modo que, em vez de brincar ao ar livre, eles preferiam fazerincursões dentro de casa. É impressionante quantas explorações a gente pode fazer num
casarão, com um toco de vela na mão.
Algum tempo atrás, Polly havia descoberto que uma portinha no sótão de sua casa
dava para uma caixa-d’água e um lugar escuro. O lugar escuro parecia um túnel comprido
com uma parede de tijolos de um lado e um telhado inclinado do outro. Não tinha
assoalho no túnel: era preciso andar de viga em viga, pois entre elas havia somente massa,
na qual não se podia pisar, sob o risco de se cair do teto no aposento de baixo. Polly utilizava um pedacinho do túnel, perto da caixa, como uma caverna de contrabandista.
Levara para lá tábuas de caixotes, assentos de cadeiras quebradas, coisas que ia
espalhando entre as vigas, para fazer uma espécie de assoalho. Também guardava ali uma
caixa contendo vários tesouros, uma história que andava escrevendo e maçãs. Era ali
também que costumava beber tranqüilamente sua garrafa de soda: as garrafas vazias
ajudavam a fazer o ambiente.
Digory gostou muito da caverna (ela não lhe mostrou a história), mas estava mais
interessado em prosseguir nas explorações.
— Olhe aqui — disse ele. — Até onde vai este túnel? Ele pára onde termina a sua
casa?
— Não, continua. Só não sei até onde.
— Quer dizer, então, que poderíamos andar por cima de todas as casas do
quarteirão.
— Poderíamos, não, podemos.
— Hein?
— Podemos até entrar numa outra casa.
— Ah, é? E acabar na cadeia como ladrão! Não conte comigo.
— Não seja tão espertinho. Eu só estava pensando na casa depois da sua.
— Que tem a casa depois da minha?
— Está vazia. Papai disse que está vazia desde que mudamos para cá.
— Vamos dar uma olhada — disse Digory. Estava bem mais entusiasmado do que
demonstrava. Naturalmente pôs-se a imaginar por que a casa estava vazia há tanto tempo.
Polly se perguntava a mesma coisa. Mas nenhum deles disse a palavra “mal-assombrada”.
E ambos sentiram que agora seria uma fraqueza não ir adiante e descobrir o mistério.
— Que tal se a gente fosse agora mesmo? — indagou Digory.
— Está bem — respondeu Polly. — Não precisa ir, se não quiser.
— Se você topa, eu também topo.
— Como a gente vai saber que está em cima da casa vizinha?
Resolveram descer e contar quantos passos havia em toda a extensão da casa e,
depois, contaram os passos entre uma viga e outra, para saber quantas vigas existiam
sobre a casa. Então, multiplicaram esse número por dois; o resultado obtido
corresponderia ao fim da casa de Digory; dali para frente, só poderiam estar no sótão da
casa vazia.
— Mas não acho que ela esteja mesmo vazia! — disse Digory.
— Como assim?
— Acho que alguém mora lá, escondido, saindo e entrando tarde da noite, com
uma lanterna abafada. Acho que vamos descobrir um bando de assassinos e ganhar umarecompensa. É besteira acreditar que uma casa fique vazia esse tempo todo, a não ser que
exista algum mistério.
— Papai acha que é por causa do mau estado do encanamento — observou Polly.
— Encanamento! Gente grande tem a mania de dar explicações sem graça! —
disse Digory. Agora, que conversavam à luz do dia, não parecia muito provável que a
casa estivesse mal-assombrada.
Não estavam muito seguros sobre as medições e os cálculos no papel, mas, de
qualquer maneira, não havia tempo a perder.
— Não podemos fazer o menor barulho — disse Polly quando subiram e se
encontraram perto da caixa-d’água. Cada um levava consigo uma vela (coisa que não
faltava na caverna de Polly).
Estava muito escuro e empoeirado. Iam pisando de viga em viga, sem dizer
palavra, exceto quando cochichavam um para o outro: “Já devemos estar na metade do
caminho” — ou coisa parecida. Ninguém tropeçou. As chamas das velas agüentaram
firme.
Por fim descobriram uma portinha encaixada na parede de tijolos, à direita. Não
havia maçaneta desse lado, mas havia um pegador, como se vê às vezes na parte interna
da porta de um armário. — Abro? — perguntou Digory.
— Se você topar, eu topo — respondeu Polly.
A coisa estava começando a ficar séria, mas ninguém ia dar para trás. Digory
empurrou o pegador com dificuldade. A porta abriu-se toda e a súbita luz do dia doeulhes
nos olhos. Então, com grande espanto, viram que estavam olhando não para um sótão
vazio, mas para um quarto mobiliado.
Não parecia ter ninguém. O silêncio era tumular. A curiosidade de Polly resolveu a
indecisão: soprando a chama da vela, ela entrou no quarto estranho, quietinha como um
camundongo.
O local tinha naturalmente a forma de sótão, mas estava arrumado como uma sala
de estar. Não havia canto de parede sem estantes, e não havia canto de estante que não
estivesse atulhado de livros. O fogo crepitava na lareira; era um verão muito frio, como
você se lembra. Diante do fogo estava uma poltrona alta. Entre a poltrona e Polly,
enchendo quase a metade da sala, havia uma mesa enorme, repleta de objetos — livros,
cadernos grossos, vidros de tinta, canetas, um microscópio. Mas o que Polly notou em
primeiro lugar foi uma bandeja de madeira contendo um certo número de anéis. Os anéis
estavam colocados em pares — um amarelo e um verde juntos, um pequeno espaço,
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depois outro anel amarelo com um anel verde. Não eram maiores do que os anéis comuns,
e era impossível deixar de olhar para eles, pois eram muito brilhantes e bonitos.
A sala estava tão quieta que se percebia logo de entrada o tique-taque do relógio.
Mas, notava-se agora, não era tão quieta assim. Havia no ar um ligeiro, um muito ligeiro
zumbido. Se os aspiradores de pó já tivessem sido inventados, Polly imaginaria que se
tratava do ruído de um aspirador de pó funcionando lá longe, bem longe. O som era mais
agradável do que o de aspirador, mais musical, mas era tão leve que mal se podia ouvir.
— Tudo bem — disse Polly –, não tem ninguém aqui. — Ela passou a cochichar.
Digory também entrou, piscando o olho, sujo pra valer... Polly também não estava nada
limpa.
— Não estou gostando disso — falou Digory. — Não é uma casa vazia coisa
nenhuma. É melhor a gente cair fora antes que chegue alguém.
— Que é isso? — perguntou Polly, apontando para os anéis.
— Deixe para lá. O melhor é a gente cair...
Não chegou ao fim. A poltrona na frente do fogo moveu-se de repente e dela
surgiu, como um diabo de comédia pulando de um alçapão, a figura amedrontadora do tio
André. Não estavam mesmo na casa vazia: estavam na casa de Digory! No estúdio
proibido!
— Minha nossa! — exclamaram as duas crianças. Tio André era altíssimo e muito
magro. Tinha uma cara comprida, com um nariz pontudo, olhos faiscantes e uma moita de
cabelos grisalhos.
Digory estava mudo, pois tio André parecia mil vezes mais apavorante do que
antes. Polly ainda não estava tão amedrontada. Mas não demorou muito, pois a primeira
coisa que tio André fez foi cruzar a sala e trancar a porta. Voltou-se, fixou as crianças
com seus olhos faiscantes e sorriu, mostrando todos os dentes.
— Ah! Agora a louca da minha irmã não pode mais nos perturbar!
Era terrível, muito diferente de tudo o que se pode esperar de um adulto! Polly
tinha o coração na boca. Ela e Digory começaram a caminhar na direção da portinhola por
onde haviam entrado. Tio André foi mais ligeiro, fechando também essa passagem.
Depois esfregou as mãos, estalando os nós dos longos dedos muito brancos.
— Encantado em vê-los — disse. — Duas crianças! Exatamente o que eu mais
queria neste momento! — Por favor, Sr. André — disse Polly –, está quase na hora do
jantar e tenho de ir para casa. Quer deixar a gente sair, por favor?
— Ainda não — respondeu tio André. — A oportunidade é boa demais para eu
perdê-la. Estou em plena fase de uma experiência importantíssima. Utilizei um
porquinho-da-índia e parece que deu certo. Mas o que pode um porquinho-da-índia
relatar? Impossível explicar para ele como voltar.
— Escute aqui, tio André — disse Digory –, está mesmo na hora do jantar, e daqui
a pouco estarão chamando por nós. Melhor o senhor deixar a gente ir embora.
— Melhor... por quê?
Digory e Polly trocaram olhares aflitos. Não ousavam dizer coisa alguma, mas os
olhares significavam o seguinte: “Que coisa pavorosa!” E também: “Vamos ver se damos
um jeito.”
— Se o senhor permitir que a gente vá jantar — falou Polly –, voltaremos mais
tarde.
— Como posso saber que voltarão realmente? — perguntou tio André, com um
sorriso astuto. Pareceu, no entanto, mudar de idéia.
— Muito bem, se precisam mesmo ir, que hei de fazer? Não deve ser divertido
para dois jovens como vocês conversar com um velhote. — Deu um suspiro e continuou:
— Vocês não podem imaginar como me sinto sozinho às vezes! Podem ir jantar, meus
filhos. Mas antes quero lhes dar um presente. Não é todo dia que encontro uma moça
neste meu velho estúdio, principalmente uma senhorita tão bela como você.
Polly já começava a achar que ele não era tão louco, afinal de contas.
— Quer um anel, meu bem? — perguntou tio André.
— Um daqueles verdes? Quero, sim!
— Um verde, não! — replicou tio André. — Lamento muito não poder dispor dos
anéis verdes. Mas terei o maior prazer em presenteá-la com um dos amarelos: de todo o
coração. Experimente um.
Polly já havia superado o medo e estava convencida de que o velho não era louco.
E os anéis eram de fato atraentes. Caminhou para a bandeja.
— Estranho! O zumbido aqui é mais forte. Parece que vem dos anéis.
— Você está imaginando coisas, cara menina — disse o velho, com uma risada.
Parecia uma risada comum, mas Digory percebera uma expressão quase de gula na face
do tio.
— Polly, não banque a idiota! — gritou ele. — Não toque nos anéis!
Era tarde demais. Polly já tinha pegado um anel. E imediatamente, sem barulho,
sem um clarão, sem nenhum aviso, já não existia Polly. Digory e tio André estavam agora
sozinhos na sala.
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UM DIÁLOGO ESTRANHO
Foi tão repentino, tão horrível, tão diferente de tudo o que já havia acontecido a Digory,
mesmo em pesadelos, que ele deu um grito. Instantaneamente a mão de tio André tapoulhe
a boca.
— Nada disso! Sua mãe pode ouvir, e você sabe muito bem que ela não deve levar
sustos.
Nada podia ser mais desagradável, disse Digory mais tarde, do que lidar com um
sujeito naquelas condições. Mas não gritou de novo.
— Melhor assim — disse tio André. — Reconheço que é chocante quando vemospela primeira vez uma pessoa sumir. É fato: até eu fiquei arrepiado quando vi outro dia o
porquinho-da-índia desaparecer.
— Foi naquele dia que o senhor deu um berro? — Ah, você ouviu? Espero que não
ande me espionando.
— Não fiz isso — disse Digory, indignado –, mas quero saber o que aconteceu
com a Polly.
— Pode me dar os parabéns — replicou tio André, esfregando as mãos. — Minha
experiência deu certo. A menina se foi, sumiu deste mundo!
— O que o senhor fez com ela?
— Enviei a menina para um outro lugar. — Que história é essa?
Tio André sentou-se e respondeu:
— Bem, vou contar-lhe tudo. Já ouviu falar de dona Lenir?
-Não é uma tia-avó ou qualquer coisa parecida? — Não é exatamente isso; era a
minha madrinha. Aquela ali na parede.
Digory olhou e viu uma fotografia amarelada, mostrando uma velha com um
chapéu antigo. Lembrava-se agora de que já vira uma foto dela numa velha gaveta. Tinha
perguntado à mãe quem era, mas esta preferira não tocar no assunto. Não era uma figura
simpática — pensou Digory –, mas a gente nunca tem certeza quando se trata dessas
fotografias antigas.
— Havia alguma coisa... algo errado com ela, tio André? — perguntou o menino.
— Bom — respondeu o tio, estalando os dedos –, isso depende do que você chama
de errado. As pessoas são tão quadradas! Sem dúvida, ficou bastante esquisita nos seus
últimos tempos. Não tinha muito juízo. Foi por isso que a prenderam.
— Num hospício?
— Não! Que é isso?! De maneira nenhuma! Só na cadeia.
— Ah, sim.. Por quê?
— Ah, coitadinha — respondeu tio André –, andou agindo mal. Tanta coisa! Mas
não vamos falar nisso. Sempre foi muito boazinha para mim!
— Escute, tio, que tem a ver uma coisa com a outra? Quero saber se Polly...
— Tudo a seu tempo, rapaz. Eu era uma das poucas pessoas que minha madrinha
gostava de ver quando adoeceu gravemente. Ela não se dava com as pessoas comuns,
ignorantes, entende? Também eu sou assim. Mas ambos nos interessávamos pelas
mesmas coisas. Poucos dias antes de morrer, ela me disse para ir buscar em sua casa uma
pequena caixa, que ela guardava numa velha escrivaninha. No momento em que toquei na
caixa já senti, pelo formigamento dos meus dedos, que tinha nas mãos um vasto segredo.
Deu-me a caixa e tive de fazer-lhe uma promessa: logo que ela morresse, tinha de
queimar tudo, sem abrir, depois de certas cerimônias. Não cumpri minha promessa.
— Não diga! Foi muito feio de sua parte! — exclamou Digory.
— Feio? — perguntou tio André, muito admirado. — Ah, estou entendendo. Está
querendo dizer que os meninos devem cumprir suas promessas. Muito bem, estou
gostando de ver. Mas também deve admitir que essas regras morais, embora excelentes
para as crianças... e para a criadagem... e para as mulheres... e para as pessoas em geral...
não podem ser aplicadas aos grandes estudiosos, aos grandes sábios, aos grandes
pensadores. Não, Digory! Homens como eu, conhecedores da sabedoria oculta, não estão
amarrados a essas regras vulgares... do mesmo modo como estamos distanciados dos
prazeres vulgares. Nosso destino, meu filho, é solitário, mas está acima de tudo.
Suspirou e assumiu uma expressão tão grave, tão nobre, tão misteriosa, que por um
instante Digory chegou a pensar que ele dissera alguma coisa muito profunda. Lembrouse
porém da cara feia do tio um momento antes de Polly sumir, e as palavras perderam a
eloqüência. Pensou: “Ele está querendo dizer é que pode fazer tudo o que quiser para
obter tudo o que desejar.”
— Naturalmente — prosseguiu tio André –, durante muito tempo não ousei abrir a
caixa. Sabia que devia estar guardando algo extremamente perigoso, pois a minha
madrinha era de fato uma mulher fora do comum. Para dizer a verdade, era uma das
últimas criaturas mortais, neste país, que ainda tinha nas veias sangue de fada. (Uma vez
me disse que havia mais duas no tempo dela: uma duquesa e uma arrumadeira.) Sério,
Digory, você está agora conversando com o último homem (muito provavelmente) queteve realmente uma fada madrinha. Que tal? É uma coisa de que você poderá se lembrar
com orgulho quando tiver a minha idade.
“Aposto que era mais uma bruxa do que uma fada”, pensou Digory, acrescentando
em voz alta: — Quero é saber de Polly.
— Que mania de bater sempre na mesma tecla! — exclamou tio André. — Como
se isso fosse a coisa importante! Minha primeira iniciativa foi, naturalmente, estudar a
própria caixa. Era muito antiga. já bem sabia que não era grega, nem egípcia, nem
babilônica, nem hitita, nem chinesa. Era mais antiga do que essas nações. Ah, que dia
fabuloso quando descobri, afinal, a verdade! A caixa viera da Atlântida, quer dizer, era
séculos mais velha do que essas coisas da Idade da Pedra que costumam desenterrar aí na
Europa. Não era uma coisa rústica como aquelas outras. Pois já na aurora do tempo a
Atlântida era uma grande cidade, com palácios, templos e homens cultos.
Fez uma pausa como se esperasse algum comentário de Digory. Mas este, que de
minuto a minuto estava gostando menos do tio, não disse nada. Tio André retomou a
palavra:
— Enquanto isso, eu estava aprendendo um bocado sobre magia em geral (não
seria conveniente contar isso a uma criança). Enfim, cheguei a ter uma boa noção das
coisas que podiam existir dentro da caixa. Depois a de vários estudos, fui apertando o
cerco. E claro: tive de conhecer algumas... bem... algumas pessoas, digamos, à margem da
sociedade... Passei por algumas experiências muito, muito desagradáveis. Foi por isso que
fiquei de cabelos brancos. Mas ninguém pode virar feiticeiro sem pagar um preço. Acabei
perdendo a saúde. Mas melhorei. E acabei conhecendo o segredo.
Embora não houvesse a menor possibilidade de que alguém pudesse escutá-los, tio
André inclinou-se e cochichou:
— A caixa da Atlântida continha certa coisa que fora trazida de outro mundo,
quando o nosso mundo mal começava!...
— Que coisa? — perguntou Digory, que mesmo sem querer já estava curioso.
— Pó. Pó fininho, pó seco. Nada de entusiasmar. Nada que valesse tanto trabalho
— é o que você deve estar achando. Ah, mas quando vi aquele pó (tive o cuidado de não
tocar nele) e pensei que cada grãozinho ali já estivera em outro mundo... Não estou
falando de outro planeta, pois os planetas fazem parte do nosso mundo... Estou falando de
outro mundo mesmo — uma outra natureza, um outro universo –, um lugar onde você
jamais chegaria, mesmo que viajasse eternamente através do espaço deste nosso
universo... Um mundo que só poderia ser alcançado através da magia! Bem...
A essa altura tio André esfregava tanto as mãos que seus dedos estalavam como
fogos de artifício. E prosseguiu:
— Sabia que, se fizesse direito, aquele pó nos levaria ao lugar de onde viera. A
dificuldade era esta: como fazer? Minhas primeiras experiências foram grandes fracassos.
Usei porquinhos-da-índia. Alguns apenas morreram. Outros explodiram feito bombas...
— Que maldade! — exclamou Digory, que ia tinha tido um porquinho-da-índia.
— Como você teima em fugir do assunto! É para isso que as criaturas existem.
Paguei com o meu dinheiro! Onde é mesmo que eu estava? Ah, sim. Afinal acabei
conseguindo fazer os anéis: os amarelos. Surgiu então uma nova dificuldade. Estava
convencido de que um anel amarelo remeteria ao outro mundo qualquer criatura que
tocasse nele. Mas de que valeria isso, se a criatura não podia voltar para dizer o que havia
visto por lá?
— E a própria criatura? — perguntou Digory. — Não podendo voltar, ficaria numa
enrascada!
— Você sempre olha as coisas de um ponto de vista negativo — replicou tio
André, com impaciência. — Não passa pela sua cabeça que se tratava de uma experiência
magna? Só remetemos uma pessoa a outro lugar quando desejamos saber como é esse
outro lugar. Certo?
— Bem, e por que o senhor mesmo não foi? Digory jamais vira alguém tão
surpreso e ofendido quanto o tio, por causa de uma simples pergunta:
— Eu?! Eu?! Esse menino deve estar maluco! Um homem da minha idade, nas
minhas condições de saúde, correr o risco do impacto e dos perigos de um universo
diferente?! Nunca ouvi nada tão disparatado em toda a minha vida! Você sabe o que está
dizendo? Pense bem: trata-se de um outro mundo, onde podemos encontrar tudo... tudo.
— E foi para lá que o senhor enviou a Polly?! — As bochechas de Digory estavam
vermelhas de raiva. — Só tenho uma coisa a dizer: o senhor pode ser meu tio, mas
procedeu como um covarde, mandando uma menina para um lugar aonde o senhor não
tem coragem de ir.
— Bico calado! — ordenou tio André, dando um tapa na mesa. — Não admito que
um fedelho fale comigo dessa maneira. Você não entende nada. Eu sou o grande mestre, omago, o iniciado, o que está realizando a experiência. É claro que preciso de material para
executá-la. Daqui a pouco você vai me dizer que deveria ter pedido licença aos
porquinhos-da-índia antes de usá-los. Nenhuma alta sabedoria pode ser atingida sem uma
dose de sacrifício. Mas a idéia de que o sacrificado deva ser eu mesmo é completamenteridícula. É como pedir a um general para lutar como um soldado raso. Suponhamos que
eu morresse... Que seria do trabalho de toda a minha vida?
— Olhe, é melhor acabar com esse papo — interrompeu Digory. — O senhor vai
trazer Polly de volta?
— Já ia dizer-lhe, quando você me interrompeu com os seus maus modos, que
descobri afinal a maneira de fazer a viagem de volta. Os anéis verdes são capazes disso.
— Mas Polly não levou nenhum anel verde.
— É, não levou — disse tio André, com um sorriso maldoso.
— Se não levou, não poderá voltar! — gritou Digory. — É como se o senhor a
tivesse assassinado. — Poderá voltar se alguém for buscá-la, usando também um anel
amarelo e levando consigo dois anéis verdes, um para si, outro para ela.
Digory percebeu que tinha caído numa armadilha. Ficou olhando para o tio André,
estarrecido, boquiaberto. As bochechas passaram do vermelho ao pálido. Tio André
continuou, agora num tom forte e alto, como se fosse um tio perfeito que tivesse dado ao
sobrinho um dinheirinho e um bom conselho:
— Espero, Digory, que você não acene agora a bandeira branca. Ficaria muito
triste se uma pessoa de nossa família não tivesse a honra e a nobreza de socorrer uma
dama em... em perigo.
— Oh, cale a boca! — gritou Digory. — Se o senhor tivesse um pingo de honra,
iria o senhor mesmo. Mas sei que não tem. Está bem. Já vi que tenho de ir. Só que o
senhor é um monstro. Tudo, tudo cruelmente planejado: ela foi sem saber de nada, e
agora tenho de ir buscá-la.
— É claro — comentou tio André, com seu odioso sorriso.
— Pois muito bem: eu vou. Mas tem uma coisa que faço questão de dizer antes de
ir: até hoje não acreditava em magia. Agora sei que existe. Sendo assim, acho que os
velhos contos de fada são todos mais ou menos verdadeiros. E o senhor não passa de um
bruxo cruel como os que existem nos contos. Escute então: nunca soube de um bruxo quenão acabasse pagando por sua maldade no final da história. É só.
De todas as coisas ditas por Digory, foi esta a única que teve endereço certo.
Sobressaltado, tio André revelou tanto horror na face que, apesar de sua monstruosidade,
era quase possível ter pena dele. Um segundo depois recompôs-se, dizendo com um
sorriso forçado:
— Bem, bem, é natural que uma criança pense dessa maneira, uma criança criada
entre mulheres, como você. Não precisa preocupar-se com os meus perigos, Digory. Não
seria melhor preocupar-se com os perigos por que passa a sua amiguinha? Já há algum
tempo que ela foi embora. Se algum perigo existir lá... bem... seria uma pena chegar um
pouquinho atrasado.
— Até parece que o senhor se importa muito com isso! — disse Digory,
impetuosamente. — Já estou cheio desse papo. Que devo fazer?
— Antes de mais nada, aprender a controlar os seus nervos, meu filho —
respondeu o tio André, com frieza. — Do contrário vai acabar como a sua tia. Vamos.
Levantou-se, calçou um par de luvas e dirigiu-se para a bandeja de anéis.
— Eles só funcionam quando estão de fato em contato com a pele. Com luvas
posso pegá-los à vontade, assim. Se levar um no bolso nada acontecerá. Mas tenha muito
cuidado para não colocar a mão no bolso por distração. No momento em que tocar um
anel amarelo, sumirá deste mundo. Quando estiver no outro lugar, espero que — isso
ainda não foi testado, naturalmente, mas sempre espero –, ao tocar no anel verde, você
desapareça de lá e reapareça aqui. Bem. Pego estes dois verdes e deixo que eles caiam
dentro do seu bolso esquerdo. Não se esqueça do bolso em que estão os verdes. V para
verde e E para esquerdo. V.E., preste atenção, as primeiras duas letras de verde. Um para
você, outro para a garota. Agora pegue um amarelo. Eu — se fosse você — colocaria o
anel no dedo, pois assim é mais difícil perdê-lo.
Digory já estava para agarrar o anel amarelo quando se lembrou de algo
importante:
— Espere um pouco: e mamãe? Se ela perguntar onde eu estou?
— Quanto mais depressa for, mais depressa estará de volta — disse o tio André,
tentando ser animador. — Mas o senhor nem mesmo sabe se eu vou voltar.
Tio André sacudiu os ombros, deu uns passos, abriu a porta e disse:
— Pois muito bem. Como quiser. Desça para jantar. Deixe que as feras devorem a
garota. Ou que ela se afogue. Ou que morra de fome. Ou que se perca no outro mundo. Se
é o que prefere. Para mim dá no mesmo. Talvez fosse bom que, antes do chá, você
avisasse à mãe dela que nunca mais verá a filha... Só porque você tem medo de colocar
um anel no dedo.
— Ai, ai — gemeu Digory –, queria tanto ser grande para lhe dar um murro na
cara!
Abotoou o casaco, respirou fundo e pegou o anel. Pensando, como sempre pensou
mais tarde, que não havia para ele outra maneira de proceder com dignidade.
Confira amanhã o próximo capítulo!
Comenteee!!! xD
O EPISÓDIO DE AMANHA É.... UM DIÁLOGO ESTRANHO
Autor(a): planetaon
Este autor(a) escreve mais 3 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
UM DIÁLOGO ESTRANHO Foi tão repentino, tão horrível, tão diferente de tudo o que já havia acontecido a Digory, mesmo em pesadelos, que ele deu um grito. Instantaneamente a mão de tio André tapoulhe a boca. — Nada disso! Sua mãe pode ouvir, e você sabe muito bem que ela não deve levar sustos. Na ...
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